19/02/2013

Do homem da bicicleta...



Alfred Jarry

pormenor de OLFACTO dos "Cinco Sentidos" de Alfred Jarry ed- 100 cabeças da Landscape d'Antanho

OS CINCO SENTIDOS de Alfred Jarry
Tradução Luís França
Impresso por Luís Henriques, Luís França, Manuel Diogo e Ricardo Castro
edição 100 Cabeças

Ubu Rei
Pequena resenha: Alfred Jarry (1873-1907), escritor, poeta e dramaturgo francês, foi aluno de Henri Bergson, e o criador da 'Patafísica' definida no 'Gestos e Opiniões do Dr. Faustroll, Patafísico' como "a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as excepções", algo que nem a física nem a metafísica podem responder. Depressa o caracterizaram como um homem sempre acompanhado por três atributos: a bicicleta, o revólver e o absinto (mas «merdre!», é preciso sempre desconfiar das caricaturas). Serviu de personagem a André Gide no romance «les Faux-Monnayeurs». A peça teatral "Ubu rei" é sem dúvida a sua obra literária mais conhecida. 

"- Merdre!" exclama o pai Ubu à mãe Ubu. «Merdre» é o termo que Jarry cunhou, um neologismo, milhares de vezes repetido. É também o décimo mês de treze no calendário patafísico.

18/02/2013

Ao contrário daquela editora que manda ler com um ípsilon...

A partir de hoje pode-se encontrar na Livraria Alfarrabista Chaminé da Mota títulos das Edições 50Kg. O que é um privilégio raro, pois segundo o Sr. Pedro Chaminé da Mota, "isto não é vocacionado para o  livro novo"... (Então para 'aqueles novíssimos' penso mesmo que «jamé!»). Tem bom gosto, mas isso já lhe advinhava...



16/02/2013

Sena dizia: a «Poetaria»...


cinco

poetria
sempre a poetria
a delicada hora da poetria
de preferência antes de jantar
porque a seguir
poetria bebe do fino
e depois às vezes
não sabe o que diz

de qualquer modo
a poetria
a que embala
as donas de casa
e tem banca no templo
ou vice-versa

essa
faz parte dos ciclos
menstruais nacionais
até o ministério gosta dela
porque ela é boa
doce como o porco e
trata as alterações biológicas
como coisa do espírito santo

quem aprecia congelados
tem ainda o festival
da poetria
pode-se vir
há muitas disputas
em directo
e também em playback

ah
aquela vida de artista
solene e graciosa
viajando com a mala
cheiinha de poetria
e de mash-ups
mais um grande festival
promete muitos rabos e orelhas

alguém disse uma vez
que a poetria está a anos-luz
que é uma supernova
quer dizer
brilha muito
aos olhos de todos
mas na verdade
já não existe

de facto ela
ainda dá ares de existir
meia moribunda
porque a sua função
era ampliar o mundo
não
reduzi-lo ao tamanho de cromos

não
não é uma supernova
tem a vida artificialmente prolongada

o que nos momentos próprios
chegou a fazer faísca
agora só faz bocejar
como andar em topless
entre nudistas
tal e qual queridos

adorais a valeta
a dos outros
a doença terminal
a dos outros
a loucura
a dos outros
daí a vossa melancolia de classe
a vosso medo de não ganhar
maior que a vossa tristeza de perder

a nós outros
o tempo
passa-nos por cima

a vocês
parece que não passa
fica em cima como o de Proust
o que costuma acontecer
nessa posição
é sabido
e é vossa conquista

se restassem deste mundo
só os livros de poesia
os arqueólogos mais tarde
pensariam
que neste tempo
não aconteceu nada
a não ser afiar os cabos das facas

as vossa leituras
são a ver o mar
mas a vossa poesia olha o mundo
como um ecrã de televisão
com um grande vazio de árvores

os pássaros quando aparecem
pousam no chão

com Schubert no ouvido
uma elegia
ao pássaro em cima do rochedo
podia vir a calhar
com os ecos uns dos outros

era bom
que o pássaro voasse

o problema é esse mesmo
ele não levanta voo

quando passar este tempo
de sombra total
do corpo e do espírito
vocês partirão
sem haver no cais
a despedir-se
nem terão já a quem acenar
com o vosso lenço de papel
manchado
de tinta de choco

o que nos divide é um véu espesso
não
não podemos ser amigos


Alberto Pimenta,
in “De Nada”, Boca – palavras que alimentam Lda., pp. 73-76, 2012.

«de nada»...


15/02/2013

«TRANSMIGRAÇÕES»


Perguntou-me outro dia uma jovem estudante – interpretando a minha indiferença pelos confortos e glórias do mercado como indiferença pela publicação – por que motivo não guardava eu os manuscritos na gaveta.
                
«As pobres criaturas iriam sufocar» – respondi. Esta frase ganhou entoações de susto. Para uma mera hipótese, pareceu-me bastante capaz de assassinatos. Descrevi a paisagem ressequida, as casas com bolores e vigas rebentadas, e as personagens hirtas, com as carnes desfeitas sobre esqueletos verdes, de boca aberta naquele grito uivante que sempre solta os emparedados já depois de lhes ter parado o coração.
                
Há algures, de onde emanam os poderes criadores, uma ficha trocada, um cabo mal metido. E essa gente, essas terras, essas cóleras, esses lugares transtornos amorosos – em vez de acontecerem no tempo e na matéria, com a sua existência benigna e humanal, vêm nascer parasitariamente dentro da minha ideia, desarranjando de tal modo as ordens, os fios naturais do pensamento, vivendo com tal folga à minha custa que o único remédio é atirar com elas para cima do papel, pô-las a circular e deixar que mereçam ternura, os despiques, o desprezo das várias sociedades que frequentam. Eu, quanto a mim, suspiro com alívio e penso nelas como em maçadores que no entanto alguma vez amámos: desejando que possam ser felizes e que não mais nos saltem ao caminho.
             
   Bem sei que isto parece perfeita impertinência: primeiro, porque vem a despropósito falar assim da escrita num tempo em que ao trabalho e à inteligência – e não à possessão por astros ignorados – é que usa atribuir-se a feitura de um texto; segundo, porque soa a desatino e de certa maneira a má educação pôr esta voz, num mundo em que as literaturas se transformam em coisas respeitáveis, a queixar-se da grande sem-cerimónia com que as personagens e os enredos se apresentam e dizem, tendo do bolo de Alice o modo imperativo: «Conta-nos». E eu, tão rapidamente quanto posso., lá as conto e as empurro para longe de mim.

Hélia Correia 
na nota introdutória a “Montedemo”, pp.9-10, Relógio D’Água, Lx, 1987. 

14/02/2013

Para Hoje e o Amanhã...

(...)
Doidejam besouros e abelhas nas rosas
volitam nas plantas as mariposas,
enquanto num tronco gargalha a cigarra.

José Apolinário Ramos, "Ontem e Hoje", p.38, Livraria Portugal, Lisboa, 1979. 

12/02/2013

«QUARTA-FEIRA DE CINZAS»...


Sonolências de palhaços,
Desvirgadas a chorar,
Olhos lentos, longos, lassos,
Serpentinas aos pedaços
Sonhos parados, cansaços,
Olhos de morta a cismar

– Pedaços de coisas mortas,
Esquecidos pelas portas –
Olheiras densas, cansadas,
Olhos de noites perdidas,
Serpentinas esmaiadas,
a baloiçar molemente,
E um frouxo riso murchando
Na boca de toda a gente.

António Pedro
in “Antologia Poética de António Pedro”, p.5,  Angelus Novus Editora, Braga, 1998.

10/02/2013

NATURAE, lembrar Olga Gonçalves...

Olga Gonçalves (Luanda, 1929 - Lisboa, 2004)

30 de Janeiro

                Os troncos afundam-se na escadaria no declive sumptuoso da superfície branca. São fantasmas, de costas geladas, vejo o lugar inteiro recolhendo os passos vagarosos da neve.

                A neve traz sucessivos dedos, figuras maiores como amantes fluídos que se concentram, se metem a caminho, para encontrarem fora dos astros a origem da fábula, da paródia, da tragédia do vaudeville.

                A neve escuta, e olha, regressa das cadeias abstractas onde também havia corações e noites de Agosto e a infância dos nomes em transformação.

                Na senda reclusa, o pinheiro argênteo feneceu. Dois homens hão-de chegar para cortá-lo. Desistiu, pensei. Cansou, atalhei remediando. Seria nas primeiras névoas de Novembro, foi nas branduras de Outubro. O pinheiro tornou-se num ramo de cabelos sem odor, irrompido de intrépida mudez. Mas agora, tão cândido por entre a cerração, grito de alvura, à despedida, sem nada já saber do apelo e da velocidade dos minutos, ainda os membros rendidos para o carambelo, asas púrpura de um cardeal a entrarem-lhe no corpo, ainda um pintarroxo a ver-se nos seus galhos, como em alcácer, como obra-prima no sítio de nascer.

                É meio-dia, bateu meio-dia no velho relógio sobre o jardim dos Prosoros. À distância, o sonho, com Moscow e a estonteada floresta passam, passa o limite lôbrego do rio. Abalada e giratória a luz vinda de todos os lados, a luz acordará Nicolai Lvovitch Tusenbach: «Uma árvore secou, mas eis que balança, a par das outras, tocadas pela brisa. Isto me diz que farei parte da vida mesmo depois de morrer»[1].

                O tempo caminhando, a flecha do tempo a consumar o fogo e a rebentar as trevas, tudo é terrível de ambíguo enojo, vamos decerto arder depois de florirmos íngremes de mensagens, voar na planície ignota, mas não seremos esquecidos, Olga Prosorov, o pintarroxo além, como em alcácer, a nossa ressurreição, vê.

Olga Gonçalves, ”Olotolilisobi”, pp. 65-66, Edições Afrontamento, col. Fixões/7, 1983, Porto.



[1] In “As Três Irmãs” de A. Tchekhov
Tradução livre de A.

06/02/2013

Novidades 50kg...


Título:  Bombo.
Autor: Rui Azevedo Ribeiro.
Editora: Edições 50kg
Local: Porto
Ano: Janeiro de 2013.
ISBN: 978-989-97891-3-5
Depósito Legal: 354145/13
PVP: €5
Tiragem: 100 exemplares

Pormenor de Bombo pág. 6

05/02/2013

04/02/2013

A Badalhoca vai abrir sucursal na rua da Picaria, brevemente

sucursal da mítica taberna do Porto na Rua da Picaria... BREVEMENTE

Taberna 'A Badalhoca

"Se é apreciador de bom presunto, esta histórica taberna não o vai desiludir. Desde 1929 que a "Badalhoca" faz as delícias de clientes de todos os estratos sociais, que apenas procuram uma coisa: o pão estaladiço recheado com o saboroso presunto fatiado. Os preços são convidativos e o ambiente é descontraído. A decoração é rústica, com pernas de presunto penduradas no teto e não faltam referências ao Boavista, o clube da casa."

Fonte do texto: http://escape.sapo.pt/porto/taberna-badalhoca-4014891

19/01/2013

«Este é o meu nome»...


No início não havia
mais que uma raiz de lágrimas          isto é, o meu país
e a distância era o meu cordão. Desatei-me
e no verdor árabe afundou-se-me o sol.
A civilização é uma maca, uma padiola,
                                                                              a cidade
                                                                              rosa pagã,
                                                                              tenda:

Assim começa ou termina o relato.
A distância era o meu cordão. Juntei os meus vínculos
eu, cratera astral,
e escrevi a cidade
(quando a cidade era uma caravana atracada e os seus lamentos
                                                                              fúnebres eram as muralhas da Babilónia),
escrevi a cidade

como ressumbra o alfabeto,
não para turvar as feridas
não para ressuscitar as múmias
antes para reviver as diferenças…          O sangue
une a rosa ao corvo          Para reduzir as pontes
e lavar os rostos tristes
exangues pelos séculos .
Escrevi a cidade

qual profeta que caminha até à morte
                                                               quero dizer, o meu país
o meu país eco
eco, eco…

A letra ba tirou o véu da cabeça
a xim é um montão de cabelos, fenece, fenece.
O álif, a primeira letra, fenece, fenece.
Ouço soluçar a ha.
enquanto a ra, como o crescente lunar,
afunda-se nas areias e com elas se funde,
fenece, fenece,
sangue coagulado que subitamente flui no deserto das palavras.

Sangue que tece desastres e trevas
Definha, desaparece,
esgotada já a magia da tua história!
Concede-nos o vosso perdão e a vossa graça,
ai, chifres das gazelas,
redondos olhos dos antílopes…

Vacilo, a cada instante te vejo, país meu,
                numa imagem.

Agora levo-te à minha frente, entre o meu sangue
e a minha morte: és rosa
                ou sepulcro?

Vejo-te, uma fileira de crianças arrastam
as suas entranhas, escutam e obedecem,
prosternam-se diante dos cadeados, mudam
de pele com cada golpe de chicote… Rosa
                ou sepulcro?

Feriste-me de morte, mataste as minhas canções
                És revolução?
                ou matadouro?
Vacilo, a cada instante te vejo, país meu,
                numa imagem…

Ali, com a tua história assassinada às costas,
vais perguntando à luz de choça em choça:

                «Disseram-me que tenho uma casa
como a minha casa em Jericó,
que tenho irmãos no Cairo
que a fronteira de Nazaré
está em Meca.
                Como é que se transformou o conhecimento
em grilhões
e a distância num cerco de fogo, em vítima?
Por isso rejeita o meu rosto a história?
Por isso não vejo nenhum sol árabe
no horizonte?»
Ah, se tivesse conhecido a comédia, a farsa!
(Podes chamá-la de sermão do califa, podes nomeá-la
vésperas ou Carnaval).
Têm dois maestros de coro:
um afia o gume à guilhotina
outro rebola no pó. Se tivesses conhecido
a farsa…

Como? Por onde resvalas-te
entre a nuca do decapitado e a lâmina da guilhotina? 

Adónis, in "Éste es mi nombre", pp.29-35, Allianza Editorial, Madrid, 2006
versão da tradução Castelhana de Frederico Arbós Ayuso por RAR.

15/01/2013

De «O Sentido da Neve»...


Nos últimos meses reli algumas das minhas novelas e foi estranho, não me lembrava dos demónios, demónios e anjos que nascem uns dos outros como numa gravura de Escher (e não me lembrava que os livros são feitos de tempo, alguns livros e estamos velhos, mais alguns e estamos mortos). O que terá acontecido à jovem que no fim de uma história entrava na vivenda do outro lado da rua? E quando passo na casa que há dois anos era a Villalilla (os lilases estão de novo em flor), lembrou-me de como me senti nos meses que se seguiram à escrita da novela, estava perdida e não consegui encontrar o caminho de volta, nunca consegui, não sei se eles ainda estão lá, sentados no muro do fundo do jardim, descendo o caminho nas rochas para mergulharem no mar. E Jane Frost, onde estará agora? No lugar onde a deixei, ela não podia escapar. Sentada junto à lareira no seu paraíso reencontrado, enquanto a neve cai lá fora. Acho que ela tinha algo de uma personagem de Ray, talvez o andar de vagabundo que sabe que não pode voltar a casa (como Robert Mitchum no princípio de The Lusty Men). E, no entanto, é possível voltar a casa, Jim Wilson e Jane Frost encontraram o caminho para casa… Mas eles são apenas fantasmas, por momentos esqueci-me de que eram eles os fantasmas. E vou ver novamente In a Lonely Place, ele chama-se Dixon Steele, é escritor, tem toda a solidão das personagens de Ray (e a amargura, e a violência, e o cansaço), sabe que a vida é impossível, mas ainda procura alguém, ainda acredita que o amor pode salvar. E, como Laurel Gray, eu gosto muito do seu rosto.

Ana Teresa Pereira, “O Sentido da Neve”, pp. 40-41, Relógio D’Água, Lisboa, 2005.

31/12/2012

Pormenor de 'Cornadas' de Rui Caeiro in "Ruindade".

Pormenor de 'Cornadas" de Rui Caeiro, in "Ruindade".

Título: Ruindade.
Autores: Rui Caeiro, Rui Pires Cabral, Rui Pedro Gonçalves, Rui Miguel Ribeiro e Rui Azevedo Ribeiro.
Editora: Edições 50kg
Local: Porto
Ano: Dezembro de 2012.
ISBN: 978-989-97891-2-8
Depósito Legal: 372713/12
PVP: €7,50

30/12/2012

Fotografia de Aurélio Paz dos Reis no dia de inauguração da LIVRARIA LELLO, em 13 de Janeiro de 1906, na Rua das Carmelitas, Porto.

28/12/2012

...


LISBOA

No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas subidas.
Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões
que acenavam através das grades.
Gritavam, queriam ser fotografados.

“Mas aqui”, disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,
“aqui estão os políticos.” Olhei para a fachada, a fachada, a fachada,
e no último andar, a uma janela, vi um homem
com um binóculo a olhar para o mar.

Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
“Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?”
(1966)
p.21


O BARCO – A ALDEIA

Uma traineira portuguesa, azul, enrola um bocado do Atlântico.
Bem ao longe, um ponto azul, mas eu estou lá. Onde seis homens a bordo não veem que nós somos sete.

Assisti à construção de um barco destes, parecia um alaúde enorme sem cordas
na ravina de pobreza: a aldeia onde lavam e lavam sem parar, com fúria, paciência, melancolia.

A praia apinhada de gente. Era um comício que fora dispersado, os altifalantes confiscados.
Soldados levaram o Mercedes do orador por entre a multidão, apupos rufavam contra as chapas do veículo.
(1978)
p.29

Tomas Tranströmer, “50 Poemas”, Relógio D’Água, Lisboa, 2012.
Trad. Alexandre Pastor.

27/12/2012

HERMES JÁ NÃO INTERPRETA...


9.

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
A torre, o cemitério, o devaneio,
Tudo existia já, mas cada coisa
Desconhecia as outras, nada então
Albergava um projecto nem sequer
Um desígnio amoroso. Eram apenas
Coisas: pedras, doenças e paisagem
Cuja condição viva se traduz
Pela exalação da humidade
E por alguma quase imperceptível
Elevação do peito. Sossegado
Parecia o mundo.
p.15

16.

     Ele conhecia
A Grécia pela ardência, pelo toque.
E ocultava de todos o terrível
Esplendor da mão da escrita,
O que lhe enchia as noites de ilusão,
Fazendo-o crer, fazendo-o derramar
Sobre o papel um chamamento como
Se chama um prisioneiro, suplicando
Que nos faça algum sinal.
p.22

17

Para que servem poetas se não podem
Nem delirar, se os textos do delírio
Serão tomados pelo seu contrário?
A bela rapariga dos cabelos
Cor de violeta, Atenas, onde está?
Quem escavará o monte até aos ossos
Para que dele ressurjam esses que
Nos deixaram sozinhos?
p.23


20.

E veio outra miséria, em interlúdio:
A miséria da interpretação
Que tudo trai. Os textos, os tão belos
Carregavam os sacos dos soldados
Como pães doces, abolorecidos,
Alimentavam quem? Persas, de novo.
Persas vindo do Norte, equivocados
Com o som do poema, com a ira
Formosa do poema.
p.26

23.

A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
p.29

Hélia Correia, “A Terceira Miséria”, Relógio D’Água, Lisboa, 2012.

20/12/2012

...

O Rapto da Europa - Rubens


COMEÇO A PERCEBER…

Começo a perceber. Nestes filmes
pornográficos de Europa não há nada
senão facas e gestos. As mulheres
não mostram mais que as tetas
e os homens nunca tiram as calças
mesmo ao fingir que as montam. Isto
é feito para quem acabe em casa
no doce imaginar da mão que aperta.
Na América vê-se tudo e a sério.
É feito para rapistas cujas mãos
só tocam apertadas os pescoços
das suas vítimas. Na Rússia
não há, é claro, estas coisas podres
do mundo ocidental que deixam
ou tudo ou nada ao doce imaginar.
Lá, as pessoas nem fazem nem pensam
tais coisas, credo. Como em Portugal
Pelas razões opostas nada sobra
de mais valia da cintura para baixo.
As facas (ou canivetes lusitanos)
fizeram previamente o seu ofício
mental, de sacristia.

 Londres, 4/2/73

Jorge de Sena, “40 Anos de Servidão”, 2ªed. rev., Moraes Editores, p.140, LX, 1982.

Outra espécie de Rapto da Europa!... de João Fonte Santa

16/12/2012

Poema 20


...

Entre o chio e a queda do pano, o sobressalto,
a antiquíssima verruga dita umbigo,
atávico regresso ao menos que um,
ao estrondo desmemoriado do silêncio.

Eram a sanguessuga e a toalha de rosto,
mas o poeta creu-as a gestação e o big-bang,
teve medo, tem sempre, e carcomiu-se
rente à folha A4, sua covardia.

O poeta é um feto assustado, um logro
rasteirando a sua espécie,
espécie de coisa, mais confusa que as reses,
e os ruídos são o seu Demónio.

Anseia, nostálgico, pelo silêncio que não lembra,
sossobra, passo a passo, a tudo o mais,
escrevinha, pouco lúcido, a derrota,
tosquia-se e morre com palavras nas mãos.

Miguel Martins

12/12/2012

NOCTURNO



Venho da rua. Subo a escada. Fecho a varanda
Acendo a luz. Abro a varanda. Apago a luz.

Porque ladram, sempre, todos estes cães?
E se calam, um após outro, até ao derradeiro
ladrido, agora subitamente submisso?

A noite acolhe-me, engalanada de águas,
e desdobra a praia, tão longe, do sono,
com cavalos negros que pisam a cintilação
da areia molhada.

A noite é âmbito, tiedro, silêncio.
Eh! Tu!

A voz de estanho me chama,
mortiça, do fim da rua
e o candeeiro que parece apagar-se.
A árvore e o vento escondem-o e devolvem-no
entre feixes de escuridão.

O estanho, o peltre, o zinco,
uma prata velada, rouca,
aquela rouquidão de sangue antiga.
Cristais, carvão.

Cada onda relincha e flameja crinas.

Eu finjo-me surdo. Ou também
sou o estorvo de estoupa na garganta do vento,
a rouquidão da prata.

– Se não fosse por mim…

Fecho a varanda. Acendo a luz.

Jordi Sarsanedas, “Quinze Poetas Catalães, pp. 31-32, Limiar, Porto, 1994.
Trad. Egito Gonçalves

NÃO POSSO DESESPERAR DA HUMANIDADE…



Não posso desesperar da humanidade. E como
eu gostaria de! Mas como posso
pensar que há povos maus, há maus costumes?
A américa é detestável. Mas deu – americanos –
Walt Whitman e Emily Dickinson. Posso
não confiar neles? A Rússia é
detestável. Mas Tolstoi é tão russo!
São maus os japoneses? Como podem
sê-lo, se têm Kurosawa e o Snr. Roberto
que me vendia hortaliças no Brasil?
E o meu Brasil tão infeliz amor, e tão
ridículo? Mas não são os brasileiros Euclides
e o coração dos meus amigos? E
Portugal, como pode ser mau e detestável
se mesmo eu que amo sobretudo o vário mundo,
o amo – ao mundo – como português?
A humanidade e as pátrias são uma chatice, eu sei.
Mas como posso desesperar delas, desde que
não sejam para mim o gesto ou as sardinhas,
o feijão ou o sirloin, ou a terrível capa
dos usos e costumes, da vaidade,
mas uma forma de ser-se humano e solitário
acompanhadamente?

Madison, 30/10/65

Jorge de Sena, “40 Anos de Servidão”, p.103, Moraes Editores,2ªed., Lisboa, 1982.

11/12/2012

A MORTE DO PAI...


A MORTE DO PAI

Toda a mulher adora um fascista…
Sylvia Plath


Aquela parte de mim que adorava um fascista
– ou o adora, quem sabe? –
jaz contigo, jaz contigo.

O túmulo não a espanta. Desde sempre chamada
ao mais escuro domínio,
morre contigo, vive de ti.

Oferenda trémula, sabe apenas seguir-te
e agasalhar-se no teu mal
como no porto mais seguro.

Medusa desossada, o que de mim resta
luta por completar-se
sem ti, longe de ti.

O bisturi vacila. Quem vive mais além?
E como poderei pensar-te
como se eu não fosse tu?

O meu amor sem casa.
A bala que atravessa a sombra do meu amor sem casa

As folhas que cobrem a bala que atravessa a sombra do meu
amor sem casa.
O vento que arranca as folhas que cobrem a bala que atravessa
a sombra do meu amor sem casa.
Os meus olhos que se agarram ao vento que arranca as folhas
que cobrem a bala que atravessa a sombra do meu amor sem casa.
O meu amor que se reflecte nos olhos que se agarram ao vento
que arranca as folhas que cobrem a bala que atravessa a sombra
do meu amor sem casa.

Maria Mercé Marçal, “Quinze Poetas Catalães”, pp. 75-76, Limiar, Porto, 1994
Tradução de Egito Gonçalves

Sísifos...



6. NOITINHA


Seca a saliva à boca do dia, seca,
nem para colares um selo no postal a tua mãe
e o pó colado às unhas e aos olhos
como o amargor à pele da memória.

Subimos-e-descemos a montanha
carregando às costas a pedra e a morte
sob a injúria e o chicote,
cantámos a água e a pedra,
a vida e a morte – acostumámo-nos,
minorou o infortúnio,
até mesmo a raiva minorou,
somente a determinação não minorou.

Por entre a picareta e a pá da noite
repousam os camaradas
com os dentes cerrados,
com o punho por travesseiro.


Giánnis Ritsos, “Antologia”, ed. Fora do Texto, pág.63, Coimbra, 1993
Tradução de Custódio Magueijo

07/12/2012

"MEMÓRIA DE LUÍS ABEL FERREIRA"...

António Barahona



MEMÓRIA DE LUÍS ABEL FERREIRA

Vejo-te, nessa noite, à beira do telhado
da clínica, tão perto das nuvens mais altas;
oiço o teu coração, o deslizar de lágrimas
                no silêncio suado.

Leio o teu pensamento…, último calafrio:
o murmúrio, de quem depressa se despede,
reflecte a luz frontal da morte que já mede
                o salto no vazio.

Morreste só d’amor, surpreso e imaturo,
menino apaixonado, ansioso, inocente
(sem norte o coração, talvez quase demente)
                tão grave, bom e puro.

Ao que morre d’amor, o Deus perdoa tudo.

20.VI.012

António Barahona,  in Telhados de Vidro nº.17, Novembro de 2012. 

06/12/2012

Homenagem...

Papiniano Manuel Carlos de Vasconcelos Rodrigues 
(1918-2012)

IMPROVISO NA MORTE DO SEMEADOR

Carregavas em teus ombros um navio
de relâmpagos, em teu coração a pedra
e a voz das cidades insubmissas.

Levavas em teu rastro uma aurora
de espigas, em teus lábios as palavras
que não temem fogo, frio ou morte.

Submerso no ódio e no terror, chegavas
em cada noite e, feroz, reconstruías
uma vez mais a esperança.

A terra semeavas e, por amá-la tanto,
(transforma-se o amador na coisa amada)
és agora, ó semeador, a própria semente
oculta e violenta.

Papiniano Carlos in "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa...", pp.68-69, 1973.

29/11/2012

...


E antes? Allen Ginsberg passeava num supermercado, eu assobiava a ópera dos três vinténs, a Branca estacionava o carro em frente Escola Técnica, algumas pombas levantavam voo, a Joan Baez cantava para todos nós. Cantávamos.

Eduardo Guerra Carneiro, “Isto Anda Tudo Ligado”, ed. Cadernos Peninsulares, p.41, Lisboa, 1970.


São Lázaro, Fontainhas (a primeira comunhão nos Salesianos, o cheiro a cera e incenso, sòzinho, no grande altar, o padre a cheirar a alho, o sabor azedo da hóstia, o não poder mastigar, vontade de vomitar, o fantasma da Ópera, o cão branco, umas eleições presidenciais, o pão repartido, a caderneta de jogadores roída pelos ratos, a cola feita de farinha, até o Barrigana!, o boininhas, a vergasta, meu pai escrevendo versos na sala cheia de janelas com sol a dar-lhe em cheio).

Eduardo Guerra Carneiro, “Isto Anda Tudo Ligado”, ed. Cadernos Peninsulares, p.43, Lisboa, 1970.


Lumpen, lumpen! Aos baldões vou contigo por essas ruas estreitas a fugir da chuva. Bebo ao teu lado e ouço as tuas sórdidas e morrinhentas histórias. Até futebol comento enquanto esperamos os barcos. Lumpen, lumpen! Meu país de arrabaldes a custo equilibrados na aguardente e nos jornais desportivos. Lumpen, lumpen! Arrabaldados andamos todos nós!

Eduardo Guerra Carneiro, “Isto Anda Tudo Ligado”, ed. Cadernos Peninsulares, p.49, Lisboa, 1970.

28/11/2012

PERPLEXIDADE DA POESIA...




                Recentemente, um crítico que muito prezo perguntava: «Estarão os novos poetas portugueses em mau caminho, como se tem afirmado algumas vezes? Ou sofrerá antes a nova poesia duma simples crise de crescimento?»
                Porque o pudor convencional da crítica literária impede cada qual de falar de si próprio – quando somos poetas e críticos, o leitor deve sempre, ao contrário do que lhe têm ensinado e é desconfiar, meditar um pouco na transferência que, nessas condições, o exercício da crítica implica. Não direi que vejamos nos outros as nossas virtudes, se as tivermos (embora, quantas vezes e por generosidade, acabemos vendo-as), mas posso afirmar que, talvez mais agudamente que os outros em si – próprios, discriminamos neles quantas perplexidades sofremos quotidianamente neste exercício de agudeza em prol do advento humano que a actividade poética de certo modo é. E assim, se não defendo o ponto de vista do poeta anglo-saxónico T. S. Eliot, segundo quem só o poeta pode bem interpretar os poetas, inclino-me a crer que a experiência pessoal, ainda que fruste, prolonga todavia a outras regiões do conhecimento a análise que um apenas crítico porventura estruturaria melhor. E sem dúvida que essa extensão, implicando profundidade, será preferível a uma estruturação tanto mais perigosa para a compreensão da poesia, quanto mais longe desta se erguerem os postulados em que assenta. Acho oportuno esclarecer que esta distância, que acabo de insinuar, não é um biombo para, por trás dele, eu me repoltrear, desdenhosamente, na famigerada «intuição», e gozar pelas frinchas o aliás real espectáculo de a razão estorcendo-se nas dores de barriga, que são o resultado inevitável da poemofagia.
                A mim próprio podem recordar-me que sou dos que mais tem vociferado contra certos caminhos da novíssima poesia. Não nego: serei sempre, a menos que o demónio  incubo do academismo se apodere de mim, inimigo da cantiga dormente, da lamúria pessoal, ou da convicção apenas intelectual com que os novos mundos são por vezes invocados. Primeiro, porque, em defesa da qualidade real da cultura, devemos combater todos os compadrios e agrupamentos escolares, inclusive os que se formam em torno das boas intenções. E, em segundo e principal lugar, porque me parece que a poesia, para possuir aquela eficiência que lhe desejamos, para afinal ser poesia, necessita de uma veemência, de uma paixão, de uma força convocatória das mais primárias volições do homem, o que é incompatível, quer com os trenos mais ou menos amáveis, quer com a expressão de superioridade satisfeita de quem tem os paraísos por sua conta.
                Há pouco tempo o mundo em guerra encarou com espanto, que me permitirão que chame simulado, a ferocidade de que o ser humano é capaz, a degradação que pode baixar e ser rebaixado, e é de todos os dias a exibição impudente de um rol de falsidades, que, ainda que as suscitam. Em face de tudo isto, como aos estudos de sociologia do conhecimento pertence mostrar a que ponto são «independentes» as apregoadas verdades, assim à poesia cabe, sob todas as formas de criação formal, mostrar, não em pílulas retóricas a miséria em que é confinada a vida, mas em ritmos densos de horror a fraca medida humana que a tais confins corresponde.
                As visões idílicas do futuro, quando esse futuro se demora dolorosamente, roubam, à acção da poesia sobre as massas susceptíveis de a receberem, o desejado vigor; porque nem tem ânimo suficiente para esperar com paciência e com determinação, e de antemão sabendo que não haverá idílios. Ora, entendo que a desilusão duradoura é preço demasiado caro para uma ilusão fugidia.
                Os poetas não têm direito de alimentar os sonhos cómodos, e nem são cómodos certos sonhos burgueses. Se há perplexidade, se há essa crise de crescimento (de que falava o crítico que citei), é esta: a de estarem quase todos pagando à sua própria consciência o preço dos entusiasmos fáceis.
                Depois, que haja crises de crescimento, falhas, dúvidas e perplexidades, é o melhor que à poesia devemos desejar. Se nada disto houvesse que haveria? Por certo que uma frutificação imensa, muita laranja, muita cereja, muito pilrito, consoante as árvores forem laranjeiras, cerejeiras ou os pilriteiros da cantiga. Por certo que, além disto, as conservas de Alcobaça de tudo isto. Por certo, quem sabe?, uma multidão sequiosa esgotando os livros de versos.
O essencial é que as nossas próprias perplexidades nos não levem a generosamente considerar igualmente a sério aqueles que são e aquele que querem ser. E, em consequência, a julgar perplexidade autêntica o que apenas será pacata desistência de alguns realejos cansados ou curteza de reportório de outros que se não cansaram ainda.
1948.

Jorge de Sena, “O reino da estupidez”, Livraria Morais Editora, pp.35-38, Lx, 1961.

Let's 'play' com a língua mãe...

"É através dos países de expressão portuguesa onde estamos, nomeadamente do Brasil, que temos a escala necessária para crescermos e sermos um 'player' a nível internacional. Por isso, a nossa aposta na promoção da língua portuguesa."

Zeinal Bava, presidente da Portugal Telecome na entrega do prémio
fonte: JN (28/11/2012)

27/11/2012

[ALFA, BETA, GAMA]..


24. α. β. γ
[ALFA, BETA, GAMA]

Três grandes letras
escritas a cal na rochosa-ossatura de Macrónissos.

(Quando chegámos de barco
encurralados entre mochilas e os nossos temores
líamo-las do alto da coberta
sob as injúrias do guarda, líamo-las
naquela serena manhã de Julho,
e a maresia e o perfume do orégão e o tomilho
não entendiam mesmo o que significavam estas três letras de cal).

α – 1º Batalhão
β – 2º Batalhão
γ – 3º Batalhão

MACRÓNISSOS

E o mar Egeu era azul como sempre
muito azul, só azul
α –
Ah! sim, falávamos por vezes duma poesia egeopelágica,
β –
do peito nu da saúde bordado como uma âncora e uma górgona,
γ –
da luz marinha que tece os cortinados das gaivotas

α. β. γ.
300 mortos.

Falávamos, sim, duma poesia egeopelágica –
e o caranguejo que sonha na húmida rocha,
de caras com o doirado poente,
como uma pequena estátua de bronze do Oceano

α. β. γ.
600 loucos.

(Os vítreos camarões perseguindo nos vaus a sombra de estrelas matutinas
o doirado e azul estio apedrejando com pinhões a sesta das raparigas,
os velhos pinheiros arranhando sua copa na caiada cerca).

α. β. γ.
900 coxos.
Viva
o rei Pavlos.

(E a Virgem do mar bronzeada pelo crepúsculo
a deambular descalça no areal
arrumando as casas dos pequenos peixes
pregando com uma estrela-do-mar sua trança de-luar).

α. β. γ.

α. β. γ.

(Falávamos duma poesia egeopelágica, sim, sim).

MACRÓNISSOS –
MACRÓNISSOS – MACRÓNISSOS

E o mar continua azul como sempre
e a esquadra americana percorre o Egeu
serena, serena, bela
e as estrelas acendem todas as noites pequenas fogueiras
para que os Anjos cozinhem a sopa-de-peixe da Virgem.

α. β. γ.

α. β. γ

E por sob as estrelas passam
barcos-e-barcos de deportados;
e de sacos com pernas cortadas
e de sacos com braços cortados
e de sacos com mortos
fervilham as ondas nas praias do Lávrio.

(Egeopelágica paisagem
doirada e azul)

α. β. γ.

Nestas fragas foram fuzilados os 300 do 1º Batalhão,
estes sargaços são uma madeixa de cabelos arrancados com a pele
do crânio dum camarada que se recusou a assinar a declaração

α. β. γ.

Os aramados
Os mortos
Os loucos

α. β. γ.

(Azul, o mar – muito azul.
Doirada egeopelágica paisagem.
As gaivotas).

α. β. γ.

Negro, todo-negro mar
negra, toda-negra paisagem.
Os aramados.

α. β. γ.

Negra, toda negra paisagem de cerrados dentes,
vermelha, toda-vermelha paisagem de cerrado punho,
negro e vermelho coração coalhado em seu sangue
e um sol vermelho coalhado dentro do seu sangue.

α. β. γ.

Os aramados.
As guaritas, negras dentro da noite.
E as vozes das guaritas, negras toda a noite:

ALTO – ALTO
QUEM VEM LÁ?
QUEM VEM LÁ?
QUEM VEM LÁ?

OS COXOS
OS MANETAS
OS CEGOS
OS LOUCOS
OS MORTOS

ALTO – ALTO

ALTO

QUEM VEM LÁ?

OS MORTOS

OS MORTOS

Voltam atrás em busca do pão que não comeram.
Em busca do sol que lhes roubaram.
Em busca da vida que lhes cortaram.

ALTO – ALTO
das guaritas da noite
toda a noite

ALTO

– QUEM VEM LÁ?

– OS MORTOS.

– QUEM VEM LÁ?

– OS LOUCOS.

– QUEM VEM LÁ?

– NÓS.

ALTO – ALTO – ALTO.

NÃO PÁRAM

Os mortos buscam a sua vida.
Os loucos buscam o seu sol.
Os coxos buscam as suas pernas.
Os cegos buscam os seus olhos.
Todos buscam a sua liberdade.

α. β. γ.

Pelo princípio aprendemos o alfabeto.
Pelo princípio aprendemos o medo e a dor.
Pelo princípio aprendemos a vida e a morte.

α. β. γ.

α. β. γ.

α. β. γ.

E agora que aprendemos, camaradas, a morrer
aprendemos também a viver, camaradas.
A liberdade está próxima.

α. β. γ.

SOL

α. β. γ.

LIBERDADE

α. β. γ.

Alfa-beta – Em frente, em frente.

Giánnis Ritsos, “Antologia”, ed. Fora do Texto, pp.81-87, Coimbra, 1993
Tradução de Custódio Magueijo

EPITÁFIO DE BEJA...


EPITÁFIO DE BEJA

Quem quer que sejas, caminhante, quando
passares por este túmulo e no epitáfio
leres que da vida me parti só tendo
uma vintena de anos, tu, sem dúvida,
haverás de lamentar-me. Se porém
pensares em que esta paz que gozo agora
te seja, a ti cansado, assim tão doce
como será para mim, eu farei votos
de que mais vivas e envelheças tarde,
gozando a vida que me não foi dada.
Mas se o chorar te é gosto, porque não
hás-de chorar? Por Nise. Jaz aqui.
Viveu só cinco lustros. Lhe fizeram
este moimento Inacos, o seu pai,
e Io, sua mãe. Vai-te, ou melhor,
ó caminhante, voa, que se agora
és tu quem lê, não tarda serás lido.

Perpignam/30/Agosto/1974

Jorge de Sena, “Sequências”, Moraes Editores, p.55, Lx, 1980.