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29/04/2015

Fernando Assis Pacheco...


BAH!


Fora os livros não vejo
muita outra coisa
a que possa chamar
minha propriedade


a gilete? O pente
imitação tartaruga? a tesoura
das unhas?


nem mesmo a roupa
enchendo todo um armário
que se queima com o suor
gasta rasga
desfia em pouco tempo
condenada
por um corpo infeliz
e quando nova a estrear
faria talvez já
as delícias do adelo


álbuns de fotos?
estojo caneta-lapiseira?
pesa-papéis
deitando a sua neve falsa
sobre o castelo alemão?


inclusive o carro
envelhece mês a mês
sem uso: o prazer de guiar
é coisa dos anúncios


e a gasolina cara
e para quê tirá-lo da rua
para arrumá-lo aonde?
guiem agora as filhas


Lisboa, 15.2.94
Vilagarcía de Arousa, 31.8.95

Inédito de Fernando Assis Pacheco, na revista Espácio / Espaço Escrito – revista de literatura en dos lenguas, número 15 y 16, pp. 27-8, Badajoz, 1998. 
 
José Cardoso Pires, A. Guerra, Assis Pacheco.
Aniversário de 'O Jornal', 21 de Maio de 1982.

FELIZES PUTAS (Jerez/ Lisboa, 1995/96, Laus Deo)
Às prostitutas da Avenida da Liberdade:


Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena


vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz o mando
do director fatal que lhe ordena


essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena


mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho vinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena


Fernando Assis Pacheco, in revista Espácio / Espaço Escrito – revista de literatura en dos lenguas, número 15 y 16, pág. 17, Badajoz, 1998.


12/03/2015

Fac's do FAP...

Fernando Assis Pacheco, "Nausicaah!", ed. autor, 1984.

A Profissão Dominante (1982); Nausicaah! (1984); A Bela do Bairro e Outros Poemas (1986)

08/08/2012

POETA NO SUPERMERCADO




POETA NO SUPERMERCADO

1

Indignar-me é o signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.
Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte…
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2

Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
– um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.
Cheio de luz – como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.

Fernando Assis Pacheco in ‘Cuidar dos Vivos’. 

28/04/2012

ó Coimbra...




Coimbra
Coimbra universitária, bem entendido!
Odeio-te!
finges de cabeça
e não és senão o lugar dela.
A única vez que me referi a Coimbra disse:
os palermas de Coimbra
É a minha opinião.
A única pessoa de interesse que conheci em Coimbra
foi a dona de uma casa de mulheres
todos os outros eram cultos
admiravam os grandes vultos
e desconheciam os pequenos
como se estes não fossem uma projecção dos grandes.
Coimbra
Coimbra universitária, bem entendido!
Tu consegues não ser estúpida
nem inteligente
és Coimbra.
Tamanha identificação urbana
jamais no mundo se viu.

José de Almada Negreiros in “Poemas”, p.129, Assírio & Alvim, Lx, 2ªed., 2005.


COIMBRA EM FORMATO POSTAL

E então
lá tive numa pasta azuis as fitas
de escolar de Letras e não valiam nada
não prestavam pra nada nesse ano de ‘59
não torciam o pescoço à morrinha herdada de trás
“ai adeus acabaram-se os dias”
cantei tão pouco e só em tom menor

eu ensurdecia nas aulas durante o Inverno
o focinho metido na samarra um vago
olho emergindo como do poço uma rã
tanto sono que dava o Hölderlin em tudesco de mestre!
e às esconsas lia o meu Qui je fus

Coimbra tapada pela capa da névoa
Um rastro de cegonhas sobre as ínsuas
Chegam barcos da lenha de Penacova
Limoeiros floridos a quinta
do avô com sardões nos muros de pedra solta

ai adeus formado em Germânicas este rapaz
o que sabe ele da vida este rapaz? Coisa nenhuma
chora baba e ranho à menção puizia
e escrevi cartas de amor sempre solenes
e a melancolia é uma doença nefasta

eu tinha uma janela no último andar
de onde o Senhor da Serra em tardes claras
e traduzi muito verso pré-romântico para as colegas
’59 confesso não me ensinou nada de nada
belas são as narcejas nos arrozais quando voam sobre
                um fundo de sol como o cobre batido

Fernando Assis Pacheco in ‘Variações em Sousa’, pp. 16-17.


LOUVOR DO BAIRRO DOS OLIVAIS

Não tive nunca nada a ver com as
guitarras estudantes: eu vivia
num lento bairro da periferia
onde a chuva apagava os passos das

pessoas de regresso a suas casas
fazia compras na mercearia
e algum livro mais forte que então lia
já era para mim como um par d’asas

amigos vinham ver-me que eu servia
de ponche ou de Madeira malvasia
para soltar as línguas livremente

um que bramava um outro que dormia
eu abria a janela e só dizia
ao menos estas ruas têm gente

Fernando Assis Pacheco in ‘Variações em Sousa’, p.11.