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Estatueta Cicládica do 'escultor Kontoleon',
c. 2000 AC. |
É UM ROSTO PURO…
Há
um instante olhei-me atentamente ao espelho e, mesmo examinando-me de perto,
achei-me melhor de cara – é verdade que era à luz da tarde e que tinha a fonte
luminosa atrás de mim, de forma que só a penugem que me cobre a orla das
orelhas estava verdadeiramente iluminada – do que sou segundo o meu próprio
conhecimento. É um rosto puro, harmoniosamente modelado, de contornos quase
belos. O negro dos cabelos, dos sobrolhos e das órbitas brota como uma coisa
viva da massa do rosto que está na expectativa. O olhar não é de modo nenhum
devastado, não há o menor indício disso, mas também não é infantil, dir-se-ia
antes incrivelmente enérgico, a menos que não tenha sido muito simplesmente
observador, já que eu estava precisamente a observar-me e que queria meter-me
medo.
F. Kafka
(Diário, pág. 310).
É
VERDADE QUE FAÇO TEATRO…
Kafka
tem grandes olhos cinzentos sob espessos sobrolhos escuros. O seu rosto moreno
é cheio de vida. Kafka exprime-se através do rosto. Quando pode substituir a
palavra por um movimento dos músculos do rosto, fá-lo. Um sorriso, a
aproximação dos sobrolhos, o enrugamento da testa estreita, o avanço ou o recuo
dos lábios – são movimentos que fazem as vezes duma frase pronunciada.
Franz
Kafka ama os gestos e é por isso que os mede. A sua mímica não constitui uma
duplicação das palavras ou o acompanhamento duma conversação, mas a palavra
duma espécie de linguagem móvel, um meio de comunicar, não um reflexo passivo,
mas bem pelo contrário uma expressão voluntária e adaptada aos seus fins.
Cruzar
as mãos, apoiar as palmas sobre o mata-borrão da secretária, recostar
confortavelmente mas não obstante sem abandono a parte superior do corpo contra
o espaldar da cadeira, adiantar a cabeça e levantar ao mesmo tempo os ombros,
levar as mãos ao coração, eis alguns meios de expressão que emprega com
economia, acompanhando-os sempre dum sorriso que se desculpa, como se quisesse
dizer: «É verdade, confesso que faço teatro, mas espero que o meu teatro lhe
agrade. E não faço teatro senão para criar durante um curto instante uma
cumplicidade entre você e mim…»
GUSTAV JANOUCH, (Kafka
m’a dit, trad. do francês de Clara Malraux).