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09/04/2012

«Habitante in-concluso»...


DIÁRIO DE HOJE

Eis o corpo buscando um vaso para o coração
- por ruas e travessas de silêncio:
p’los quatro cantos da mágoa -,
desfibrada a carne do Espaço…
- Eis o corpo no centro de um encontro,
encontro rasgado entre mãos
de um deserto aberto atá ao nada;
Transviado voo dentro de um eco –
mil paredes abatidas, cem mil casas…
Eis o corpo alargando as fronteiras
de um destino sem alvo e o mais incerto –
as mãos e a raiva perfurando a Terra!

Eis o corpo atravessado ao Tempo,
desfolhando a Rosa do Espaço.
Uma casa habito, porém lábil –
como se de neve e pólvora construída a sua base,
onde náusea acesa derretendo-a…
E eis o Cântigo Cirúrgico
                que nenhum grito se abre e o seu pranto –
corpo corda ao vento na tensão de um arco,
harpa talvez de fogo (a de Heraclito) e ponto
no “Diário de Hoje” (amanhã abra-se).

J. O. Travanca-Rêgo in “Habitante in-concluso precedido de n poemas de Natal & outros”, ed. Universitária Editora, p.15, col. «universitária poesia/ 37», Lisboa, 1999.


18/06/2011

Hiatos

EROS

Há um momento
-em meio das tuas pernas-
em que se está sem crâneo:
Em que se está suspenso
entre o Céu e a Terra,

claramente sabendo-se
que a Terra não é sítio
para os filhos do Homem...

J. O. Travanca-Rêgo in "Hiatos", p.32, Editorial Diferença, Leiria, 1998.





USOS DA MATEMÁTICA

Depois de haver escavado inteira a Noite,
seu vasto Império-Podre sem raiz,
palavras sei: palavras aprendi.
- E hoje aqui estou
                            como da primeira vez
que aportei à Margem-Negra e a temi,
não a temendo agora, é certo, que as Hipóteses
do Milagre não deixam de ter número
(e tudo o que é contado tranquiliza-me)...

E, do temor, então direi
                que não passou
de mar-e-barco para a Verdade-
praia que  não colhi!

J. O. Travanca-Rêgo in "Hiatos", p.30, Editorial Diferença, Leiria, 1998.

Mais aqui

05/04/2011

Escritores Esquecidos 9

J. O. Travanca-Rêgo (1940-2003)



SUBSTÂNCIA

Perdeu-se, perdeu-se talvez a vida
no que ela tinha de válido –
no que ela tinha de grande:
No que ela tinha de próprio,
como (de um corpo) é próprio
ter cabeça  membros  tronco
e a alma de um gigante
com asas para o infinito!

- Um desespero GLORIOSO…
Recomeço eu escrevendo,
como quem num adjectivo
fosse encontrar o perdido –
sua alma omnipresente,
tão leve como alguns ventos
quando são sopro da Vida…
Mas, lembro-me logo:

“Os adjectivos são acidentes,
- diz Margarida, amiga minha,
na senda do Aristóteles -:
Não implantam dentro ao Homem,
a semente que lhe escapa…
E apenas por fora pintam
umas asas que não abrem
no seu tronco que vai cego
como um Ícaro perdido!”

Olha que não, olha que não
- redigo eu inconformado -:
De desespero, estou farto:
de desespero simples como o dos cães,
sem duas pernas
– sentados…
Agora se for GLORIOSO, e com maiúsculas escrito,

talvez alma dê-me um pouco –
dê-ma de novo e eu possa
gozar da vida a substância,
como antes de ter perdido
o que era grande (ou era louco):

- Umas asas de gigante,
minha alma sem distância
do Longe e do Invisível!

Travanca-Rêgo, Da Poesia: dois segmentos, pp. 18-19, Black Sun Editores, Lx, 1999.