Mostrar mensagens com a etiqueta Patrik Ouředník. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Patrik Ouředník. Mostrar todas as mensagens

02/05/2019

...

“Mas com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação a vida das pessoas na Europa ia ficando cada vez mais igual em todo o lado e alguns sociólogos e historiadores achavam que reflectir em conceitos nacionais era algo que estava ultrapassado e diziam que a característica mais saliente da sociedade ocidental desenvovida era o cosmopolitismo e que no fundo não existia nada como Alemães ou Romenos ou Suecos e que tudo isso não passava de autoprojecções sobre estereótipos e preconceitos sociais. Mas outros sociólogos não estavam pelos ajustes e diziam que com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação as pessoas foram perdendo a maior parte dos pontos de orientação e que de um modo paradoxal a comunidade nacional se tinha tornado mais importante que nunca. E que os estereótipos eram imprescindíveis para a preservação da memória colectiva e histórica sem a qual a sociedade ocidental perderia a sua unidade porque a unidade não podia ser heterogénea. E que a memória colectiva era uma interacção de compromisso entre o passado e o futuro e que os estereótipos e preconceitos tinham a vantagem de envelhecer mais devagar que a história e as novidades tecnológicas etc. e que representavam a última área e ao mesmo tempo a mais activa em que se preservava a identidade social. Os etnólogos e os antropólogos diziam que a historicidade podia assumir duas formas e que uma era própria das sociedades que queriam manter-se na sua existẽncia simbólica e a outra das sociedades que vão buscar à história a acção e a energia. E que tradicionalmente a sociedade ocidental fizera parte do segundo grupo mas que no momento actual talvez estivesse a meio de uma transição para o primeiro. E os filósofos diziam que a aceleração da história que ocorreu no século XX conduzia à indiferença relativamente ao tempo e ao desaparecimento da historicidade na sua forma tradicional e se devesse aparecer uma nova forma de historicidade era preciso refrear a história e alguns deles exigiam que à Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse acrescentado o direito do Homem ao tempo.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 138-9 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

26/03/2019

...

“E nos países ocupados pelos Alemães organizaram-se após a guerra grandes operações de caça aos colaboracionistas e traidores da pátria e outros que tais e às mulheres que tinham andado a dormir com alemães cortavam o cabelo e um prisioneiro de um campo de concentração voltou para casa de cabeça rapada e foi a um bailarico com uma amiga da sua irmã a que os cidadãos locais tinham cortado o cabelo porque tinha andado enrolada com os ocupantes alemães e dançaram junto e encostaram as cabeças uma à outra e as outras pessoas acharam a sua atitude pouco apropriada e quase repugnante.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 137-8 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

12/03/2019

...

“Alguns filósofos diziam que a ordem do mundo corresponde aos mecanismos do discurso que tem os seus símbolos mutáveis mas simultaneamente dados e que a bem dizer o ordenamento dos símbolos não dá grande sentido e que tudo não passa de um jogo e de um acaso e de anarquia e processo e desconstrução e intertextualidade etc. mas que o símbolo por si só é no fundo um portador de sentido embora não saibamos bem qual. Mas outros filósofos diziam ainda que os símbolos dos quais o discurso e o mundo são construídos carecem de sentido e que com a ausência de significado desaparece o sujeito e a própria realidade e que a história não passa de um movimento ininterrupto e informe que nada exprime e que tudo é ficção e simulação. E que a decadência do humanismo tinha entrado num beco sem saída precisamente porque tinha conseguido o que tivera a conseguir e tinha imposto os valores que lhes eram próprios a liberdade e o individualismo e o pluralismo e a transparência etc. E que os humanistas estavam a colher os frutos da sua própria sementeira um mundo individualista e interactivo e positivo e translúcido e operacional que se extingue com a sua própria simulação e cuja resolução final é a troca da realidade pela hiper-realidade. E alguns matemáticos diziam que a realidade era uma ilusão e que na realidade tudo não passava de uma construção matemática no cérebro humano que interpreta as frequências vindas de uma outra dimensão qualquer e que esta transcende o espaço e o tempo e que o cérebro é um holograma que reflecte o Universo que por seu lado também é um holograma. E em 1993 uma velha senhora que outrora tinha sido nazi convicta legou o seu cérebro a um laboratório em Copenhaga para que as imagens nele armazenadas fossem projectadas aos seus netos e netas porque nunca tinha sido capaz de lhes relatar a sua vida.

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 130-1 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

28/01/2019

...

“(…) e em 1945 os Americanos inventaram a bomba nuclear e largaram-na sobre uma cidade chamada Hiroxima. O avião chamava-se ENOLA GAY e o piloto explicou mais tarde aos jornalistas que lhe tinha dado esse nome em honra da avó irlandesa porque ela tinha um nome tão engraçado. A explosão varreu a maior parte das casas num raio de três quilómetros e no céu criou-se uma nuvem de fumo que ao longe teve o aspecto de um cogumelo. Para os feridos foi criado na escola local um centro de primeiro socorros e os alunos que tinham sobrevivido à explosão andaram com pauzinhos a retirar vermes das chagas dos pacientes e depois dos pacientes terem morrido levavam-nos em carrinhos de mão até ao crematório. E mais gente foi morrendo nos meses subsequentes de doenças chamadas de enfermidades nucleares leucemia astenia etc. As pessoas que tinham sobrevivido à explosão e também às doenças nucleares metiam medo à população restante porque tinham o aspecto de leprosas e se comportavam como loucas. Muita gente pensou mais tarde que tinha sido uma crueldade escusada da parte dos Americanos terem lançado a bomba nuclear mesmo no fim da guerra mas os estrategas militares diziam que se não a lançassem os Americanos outro qualquer o teria feito porque pelo menos uma vez ela tinha de ser experimentada em condições reais para que no mundo pudesse estabelecer-se o equilíbrio do terror que garantiu que não houvesse uma terceira guerra mundial. E em 1944 os americanos inventaram um boneco em tamanho real chamado RUPERT. O Rupert estava vestido como um pára-quedista e estava recheado de granadas e explosivos e os Americanos lançavam-no de aviões atrás das linhas inimigas e quando os Alemães ou membros da resistência viam o Rupert a descer corriam para junto dele e quando o Rupert embatia no solo explodia e matava todos os que estivessem à sua volta. E em 1918 os Alemães inventaram um canhão que se chamava GRANDE BERTA e tinha um alcance de 128 quilómetros e em 1944 inventaram um míssil teleguiado chamado VERGELTUNGSWAFFE que alcançava uma velocidade de 5800 km/h e devia decidir a vitória final da Alemanha. E em 1947 os Americanos inventaram o avião supersónico e em 1957 os Russos inventaram o satélite artificial e em 1961 mandaram o primeiro homem para o espaço e em 1969 os Americanos mandaram três astronautas para a Lua e quando o primeiro astronauta desceu o escadote para pisar a superfície lunar proferiu a frase histórica ISTO É UM PEQUENO PASSO PARA O HOMEM MAS UM SALTO GIGANTESCO PARA A HUMANIDADE. O engenheiro principal do programa espacial foi um antigo coronel das unidades especiais do exército alemão SCHUTZSTAFFELN que em 1944 tinha inventado o míssil teleguiado chamado VERGELTUNGSWAFFE. Mais tarde houve disputas em torno de saber se o astronauta tinha inventado a frase histórica ele próprio ou se não lha tinha inventado de antemão algum especialista de relações públicas. O míssil teleguiado VERGELTUNGSWAFFE foi fabricado no campo de concentração em Dora e 528 milhões de telespectadores seguiram a alunagem em directo e os políticos e peritos em relações públicas diziam tratar-se de um passo importante para uma comunicação global e para a concórdia universal.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 132-4 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

26/01/2019

...

“Os prisioneiros de guerra que regressaram à União Soviética foram 2,27 milhões e passaram nos campos de concentração uma média de dez anos isto é se não morreram de exaustão nem foram vencidos por doenças e epidemias. No entanto a causa de morte mais frequente nos campos de concentração foram as frieiras e as gangrenas nos pés porque as pessoas tinham medo de que alguém lhes roubasse os sapatos durante a noite e então dormiam com eles calçados.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 127-8 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

01/01/2019

...


“E em 1999 os amish venderam doze vezes mais moinhos (de café) e velas e batedores de claras etc. do que era costume porque as pessoas temiam que o BUG DO MILÉNIO paralisasse os electrodomésticos e o fornecimento de energia eléctrica. Os sociólogos diziam que o medo de avaria dos sistemas electrónicos que pusesse fora de serviço as televisões e os micro-ondas e as caixas de multibanco era fruto de um milenarismo subconsciente e recalcado e algumas pessoas presumiam que iria tratar-se de um momento fatídico na história da civilização ocidental que levaria ao caos e a convulsões sociais e outras coisas que tais e haveria de permitir à sociedade ocidental libertar-se da ditadura tecnológica e entrar numa nova era que seria harmónica e espiritual e mística. E nalguns países os governos imprimiram reservas de dinheiro e no Canadá o governo organizou exercícios de evacuação de populações e em Inglaterra e na Dinamarca os cidadãos armazenaram reservas de açúcar e farinha na banheira e na Finlândia os farmacêuticos esgotaram os stocks de iodo cuja utilização era recomendada no caso de uma catástrofe nuclear e os Finlandeses temeram que o BUG DO MILÉNIO pusesse fora de serviço os sistemas de segurança nas centrais nucleares russas. Os sociólogos diziam que o BUG DO MILÉNIO fazia parte da lógica do imaginário social da era moderna e que no século XX o mal tinha assumido a forma de algo infinitesimal e que as pessoas já não tinham medo das coisas grandes e complicadas como a locomotiva etc. mas dos átomos e vírus e genes e priões. E os psicanalistas diziam que o BUG DO MILÉNIO no fundo desempenhava na vida da sociedade o papel do parricídio que haveria de permitir o prazer e a luxúria à nova geração tecnológica.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 114-15 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

28/12/2018

...

“(…) os Americanos inventaram a Internet porque temiam que os Russos nalguma próxima guerra mundial pudessem reter quaisquer informações vitais para a liberdade e a democracia. E trezentos e setenta milhões de pessoas tinham acesso à Internet e podiam comunicar os seus pensamentos e desejos em liberdade e sem inibições. E algumas agências de viagens propunham através da Internet e por preços moderados excursões virtuais a países longínquos de acordo com os desejos pessoais de cada hipercidadão. E as mulheres podiam encomendar pela Internet o esperma de um dador anónimo e alguns laboratórios propunham o esperma de homens de qualidade superior como astrofísicos e engenheiros e jogadores de basquetebol etc. As mulheres podiam escolher o esperma de acordo com cento e cinquenta critérios diferentes nacionalidade de origem raça religião habilitações académicas preferências e passatempos pessoais profissão altura peso grupo sanguíneo cor do cabelo pilosidade circunferência dos testículos etc. e podiam por exemplo comprar esperma de um biólogo americano de trinta e seis anos e origem afegã de cabelo negro e olhos azuis ou o esperma de um engenheiro de aviação de quarenta e dois anos do Kansas de religião baptista e de origem holandeso-ucraniana ou o esperma de um xadrezista talentoso de dezassete anos e origem chinesa com testículos pequenos. Uma dose de esperma custava em média 1050 dólares americanos já com portes incluídos e as mulheres também podiam encomendar com ele uma gravação com a voz do dador do esperma. Na gravação dizia ORA VIVA! HOJE É UM DIA DEVERAS BELO COMO SE FOSSE FEITO PARA DAR UMAS PASSEATAS PELA NATUREZA. ESPERO QUE FIQUE CONTENTE COMIGO. E uma mulher que mandou vir a gravação quis saber se não poderia obter um desconto de dez por cento sobre o esperma porque o dador do esperma rolava os erres.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 108-9 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

21/12/2018

...

“E os comunistas ciaram uma língua especial a que as pessoas chamaram de pau e que se devia falar na nova sociedade até que se começasse a comunicar pela força da ideia revolucionária. Os linguistas diziam que a língua de pau servia o fim de curto-circuitar a comunicação na esfera pública e fora dela e assim apagar da consciência humana as estruturas linguísticas cognitivas. A língua de pau caracterizava-se por nela as palavras entrarem num complicado sistema de conotações que remetiam para os mecanismos de poder da sociedade. Desta forma as palavras iam perdendo o seu sentido original que era substituído por um significado que era tanto mais lato quanto mais firmemente o orador estava ancorado na hierarquia política. E quando um comunista encontrava outro comunista dizia por exemplo COMO É QUE AVANÇAM AS COLHEITAS NO VOSSO CONSELHO? E o outro dizia CONVOCÁMOS OS AGRICULTORES PARA PARTICIPAREM NO CUMPRIMENTO DO PLANO DESTE ANO ou OCUPÁMO-NOS ENERGETICAMENTE DAS TAREFAS FINAIS ou OS CAMARADAS APRESENTARAM PROPOSTAS DE MELHORAMENTO. Inicialmente essa língua foi utilizada sobretudo para falar do trabalho e das decisões políticas do Estado mas com o passar do tempo as pessoas aprenderam a falar nela de tudo do tempo das férias de programas televisivos ou do facto de a mulher se ter posto a beber e não querer ir às reuniões da associação de pais.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 106-7, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

10/12/2018

...


“No final do século as pessoas queriam manter-se jovens e dinâmicas mas também ser política e sexualmente correctas ao mesmo tempo o que significava não seduzir mulheres nem sorrir para elas de uma forma lúbrica nem coisa que o valesse nem contar piadas de Judeus e de Alemães e de homossexuais. E algumas mulheres apresentavam queixa contra os seus superiores por estes terem tido uma conversa de conotações eróticas ou lhes terem proposto levarem-nas a casa e no acto terem feito uma cara moralmente dúbia e em 1997 um advogado americano teve de pagar quatro milhões de dólares à secretária por lhe ter despejado no decote uma mão-cheia de bombons de chocolate. E em 1998 alguns americanos quiseram destituir o seu presidente que mantinha relações pouco correctas com uma estagiária e lhe apalpava os seios e lhe enfiava charutos cubanos na vagina e ela fazia-lhe sexo oral por exemplo quando ele estava ao telefone com um representante governamental e os Americanos entretanto bombardeavam o Iraque e os Iraquianos diziam que era para desviar as atenções do comportamento sexual pouco correcto do seu presidente.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 97, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

07/12/2018

...

“Os jovens consideravam que era necessário voltar às raízes da sabedoria e que a sociedade industrializada e a escolaridade obrigatória tinham alterado a relação do Homem com o verdadeiro conhecimento. E diziam que o que dantes qualquer criança sabia hoje já só era do conhecimento de meia dúzia de especialistas e que antigamente as crianças conheciam diversas plantas medicinais e sabiam fazer armadilhas para apanhar coelhos e fazer bolas de erva fresca entrelaçada e enrolar cigarros com folhas de morangueiro e bochechar a boca com uma decocção de urtigas para não lhes darem uma seca em casa. As pessoas mais velhas por seu lado diziam que o que dantes só meia dúzia de especialistas tinha conhecimento hoje qualquer criança sabia por exemplo a raiz quadrada etc. Mas os jovens consideravam que a raiz quadrada de nada servia e passaram a viajar para a Índia e para o Nepal para se familiarizar com a sabedoria oriental e diziam que a moral cristã escravizava as pessoas e que as pessoas na Europa só sabiam contar as árvores ao passo que os Indianos viam a floresta. E não queriam viver num mundo violento e miserável e poluído e partiam para zonas desabitadas na América ou na Escócia ou em França onde fundavam comunas e fumavam haxixe e marijuana e copulavam e entoavam cânticos e ensinavam aos filhos como viver em harmonia com a natureza e defendiam as tradições e tamborilavam em pandeiretas e dançavam à volta de fogueiras e apregoavam ideias.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 94-5, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

04/12/2018

...


“No final do século as pessoas nos países democráticos começaram a ficar com a impressão de que a democracia e a sociedade de consumo de certa forma também contribuíam para o eclipse da memória e diziam que o excesso de informação era tão perigoso como a censura comunista e que as pessoas estavam alheadas das tradições e das raízes etc. e que a sociedade de consumo tendia inevitavelmente para o esquecimento devido ao seu hedonismo. E que a longo prazo o excesso de informação acabaria por ser ainda mais perigoso que a censura comunista porque não provocava uma reacção e a vontade de resistir mas o cansaço e a resignação.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 93, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

02/12/2018

...

“Os sociólogos diziam que a neurose e a depressão eram reflexos da transformação cultural da sociedade ocidental no século XX. E que a neurose era o reflexo de uma sociedade em que dominavam a disciplina e a hierarquia e as proibições sociais e que se tratava de uma expressão patológica do sentimento de culpa. E que a depressão era uma expressão patológica do sentimento de impotência e da consciência do vazio. E que primeiro as pessoas ficavam neuróticas porque teriam gostado de fazer coisas proibidas mas não puderam porque eram proibidas e quando violaram a proibição sentiam-se culpadas. E mais tarde quando tudo era permitido começaram a ser depressivas porque não sabiam o que queriam no fundo fazer e transformaram-se em novos sujeitos patológicos e os psiquiatras diziam que o sujeito patológico tinha mudado completamente de figura. E os sociólogos diziam que a depressão era uma compensação para um mundo em que a liberdade individual já não representava um ideal a alcançar de forma dolorosa mas um obstáculo que devemos dolorosamente ultrapassar. E que a neurose era a angústia de violar as proibições e a depressão a angústia perante o peso da liberdade. E algumas pessoas queriam procurar em tudo algum sentido e padeciam de frustração existencial. E os psicólogos diziam que a procura do sentido da vida se deve à necessidade de expulsar dela o vazio e a morte e que isso permitia viver mais intensamente. E no final dos anos oitenta a Organização Mundial da Saúde emitiu uma declaração dizendo que a depressão era a patologia mais comum no mundo ocidental. Mas dos Estados Unidos da América começaram a infiltrar-se na Europa novas proibições sociais por exemplo que não se deve fumar ou abusar do sal ou contar piadas sobre homossexuais ou viver ociosamente etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 77-8, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

30/11/2018

...

“Quando as pessoas deixaram de acreditar em Deus começaram a procurar uma forma de exprimir que o mundo era absurdo e inventaram o futurismo e o expressionismo e o dadaísmo e o existencialismo e o teatro absurdo. E os dadaístas quiseram acabar com a arte e faziam obras de arte com base em coisas com que antigamente não se faziam como arames e fósforos e palavras de ordem e títulos de jornal e listas telefónicas etc. e diziam que se tratava de uma arte nova e absoluta. Os futuristas escreviam versos cheios de interjeições como por exemplo KARAZUK ZUK ZUK DUM DUM DUM e faziam a apologia de uma tipografia expressiva e os expressionistas e os dadaístas escreviam versos em línguas novas e desconhecidas para mostrar que todas as línguas se equivaliam fossem ou não compreensíveis por exemplo BAMBLA Ó FALLI BAMBLA e os surrealistas por seu lado apregoavam a escrita automática e metáforas pouco habituais como por exmplo A MINHA BANHEIRA DE CORTIÇA É COMO O TEU OLHO DE MINHOCA e explicavam porque o sentido desse verso jorrava dele de forma espontânea e que era precisamente isso que era físico e metafísico ao mesmo tempo. Os existencialistas diziam que a metafísica estava em decadência e tudo era subjectivo mas que a objectividade ainda assim existia e que lidávamos mal com a situação porque o mais importante era a intersubjectividade. E que o que estava em causa era que tudo fosse autêntico e que a história e o seu curso decorriam da questão filosófica de saber se o Homem é capaz de comunicar de forma autêntica e se fosse esse o caso a história poderia fazer mais sentido que até então nomeadamente se fosse renovada a instância transcendental. E os linguistas diziam que a comunicação era apenas uma questão do modo de desconstrução e que há maneiras diversas de desconstruir. E as pessoas idosas diziam que a comunicação estava em maus lençóis porque as pessoas já não eram capazes de se olharem nos olhos e que desviavam o olhar mal se encontrava com o de outra pessoa e que hoje em dia as pessoas já só olhavam nos olhos os cegos.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 71-2, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.


29/11/2018

...

E em 1942 os representantes da Cruz Vermelha suíça ficaram a saber das câmaras de gás nos campos de concentração mas decidiram não publicar a notícia porque temiam que os Alemães poderiam abusar disso como pretexto para desacreditar as organizações humanitárias e vedar-lhes o acesso aos campos de prisioneiros e hospitais. E em 1944 os Alemães rodaram para os representantes da Cruz Vermelha e diversas comissões internacionais um documentário sobre a vida no campo de concentração de Terezín. No filme entraram 270 actores e 1600 crianças e vários milhares de figurantes adultos dos quais se excluíram à partida os de cabelo claro porque não tinham um ar suficientemente judeu. O título do filme era QUE BEM QUE SE ESTAVA EM TEREZÍN e neles os judeus iam ao café e cultivavam legumes em pequenas hortas e saltavam à água de cabeça na piscina e iam ao banco levantar dinheiro e aos correios para receber encomendas e escutavam óperas e na biblioteca local debatiam sobre o sentido da civilização europeia. E quando as filmagens terminaram os Alemães organizaram onze transportes especiais e mandaram todos os que participaram no filme para o campo de extermínio em Auschwitz.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 64-5, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

28/11/2018

...


“Nos anos cinquenta os protagonistas dos filmes copulavam sobretudo em campos de trigo porque os campos de trigo estavam associados à juventude e à nova vida que esperava os jovens protagonistas e o vento acariciava as espigas e no horizonte punha-se o Sol e os seios das mulheres inchavam e nos anos sessenta os protagonistas dos filmes copulavam nas ondas da maré nas margens do oceano porque isso era romântico e a areia colava-se-lhes à pele e viam-se-lhes os traseiros e acima da água levantava-se a maresia. Nos anos sessenta também surgiram os primeiros filmes pornográficos em que se copulava quase o tempo todo e nos lugares mais diversos. E nas revistas para jovens raparigas as redactoras mais experientes explicavam como fazer sexo oral bem feito etc. E nas revistas para jovens rapazes os redactores mais experientes explicavam como evitar a ejeculação precoce e como enfiar o preservativo sem que a rapariga o notasse. E as agências de publicidade inventavam anúncios para preservativos e reflectiam sobre a melhor forma de se interpelar os jovens espectadores (aqui está um bom exemplo de como seria confuso usar o novo acordo ortográfico: “jovens espetadores” Nota RAR) e houve uma agência que se lembrou de fazer clipes publicitários em que copulavam diversas figuras dos contos de fadas como a Branca de Neve e a Cinderela e princesa Pele de Burro e Xerazade. Também em filmes artísticos cada vez mais se copulava mas os críticos diziam que não era a mesma coisa porque o que estava em causa não era a cópula enquanto tal mas a sua representação. E quando nalgum filme artístico a cópula era abundante diziam que esse filme expressava a nossa actividade entomológica perante o amor e que estava bem assim porque tal nos permitia reflectir melhor sobre o papel da cópula não só no contexto antropológico cultural ou político mas igualmente na vida humana. Nos anos setenta os protagonistas dos filmes copulavam sobretudo dentro de automóveis porque isso era original e a vida não parava de acelerar e os jovens espectadores que não tinham carro podiam assim imaginar o que os esperava na vida. E cada vez mais os homens estavam deitados por baixo e as mulheres estavam montadas em cima deles porque entretanto se tinham emancipado. E nos anos oitenta surgiu o sexo por telefone e os homens marcavam diversos números onde mulheres lhes diziam ao auscultador ESTOU A FICAR MOLHADA ou ENFIA-MO ATÉ AO FUNDO ou DEIXAS-ME SABOREAR? etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 60-1, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

23/11/2018

...


“Os sexólogos diziam que a boneca Barbie era o primeiro instrumento para a construção de uma identidade feminina em rapariguinhas de tenra idade e que o êxito da boneca comprovava que existe uma sexualidade infantil. A sexualidade infantil deu muito que falar no século XX quando se chegou à conclusão que as rapariguinhas de tenra idade gostariam era de ter um filho do papá e que esse filho era no fundo um sucedâneo do pénis porque as rapariguinhas também gostariam de ter um pénis e que a boneca era como um filho do papá e um pénis em simultâneo. Durante muito tempo as bonecas eram unicamente fabricadas como rapariguinhas mas depois também começaram a ser fabricados bonecos rapazinhos e as bonecas rapariguinhas tinham entre as pernas uma fenda e os bonecos rapazinhos um pirilau. E nos anos setenta também começaram a fabricar-se bonecas negras ou castanhas embora a maior parte dos casos quem as comprava fossem pais brancos que assim queriam dar a entender que não eram racistas. O racismo era uma teoria do século XIX que dizia que as raças humanas tinham as suas especificidades inalteráveis e se encontravam em diversos graus de desenvolvimento e que os mais desenvolvidos eram os brancos que tinham um sentido inato para a organização da sociedade e o pensamento abstracto e convívio popular e um racista era uma pessoa que temia que a miscigenação das raças iria pôr em causa as especificidades brancas e minar o potencial genético que permitia aos brancos marcharem na vanguarda da humanidade. As pessoas que não gostavam dos Judeus não eram racista mas anti-semitas porque bem vistas as coisas os Judeus não eram considerados inferiores como por exemplo os Indianos ou os Ciganos etc. A palavra anti-semita apareceu no final do século XIX e designava uma pessoa que não desejava que os Judeus dominassem o mundo e instigava ao seus concidadãos à resistẽncia. O racismo tornou-se um importante problema social após a Segunda Guerra Mundial porque nos países europeus ricos se estabeleceram grandes minorias étnicas que a sociedade tinha de absorver. Existiam dois modelos de absorção de minorias étnicas a integração e a assimilação e a integração era posta em prática por aqueles países que acreditavam que na sociedade civil podem coexistir diversos modelos culturais e que mais vale não misturar um com o outro e preservar as especificidades de cada um e a assimilação era promovida nos países que acreditavam no universalismo e julgavam existir um interesse superior da sociedade a que se encontram subordinadas as especificidades étnicas e culturais. Durante muito tempo o modelo da assimilação era mais bem-sucedido que o da integração porque nos países que o promoviam não havia revoltas raciais como em Inglaterra ou na América mas no final do século quando se começou a falar em globalismo e mundialismo o universalismo passou de moda e cada um queria ter a sua própria identidade e ter orgulho na sua raça não no sentido de raça mas de civilização e viver de acordo com as tradições e voltar às raízes etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 56-8, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

18/11/2018

...


“A ideia de deportar os Judeus para Madagáscar tinha surgido pela primeira vez em 1905 no livro de um exegeta vienense que tinha estudado o Velho Testamento e zoologia e inventado uma especialidade chamada teozoologia. E tinha chegado à conclusão de que Deus não existia e que o mundo tinha sido criado por deuses que eram da mesma estirpe que os humanos mas que sabiam emitir sinais eléctricos e dominavam a telapatia e eram imortais e espirituais e que com o avançar do tempo tinham começado a cruzar-se com os seres humanos e os animais e se tinham tornado mortais. E dizia que quem estava mais próximo dos deuses e da primeira geração dos homens divinos eram os Arianos nos quais ainda se podiam detectar vestígios da força electrónica e dos neutrões telepáticos e propunha a deportação dos Judeus para Madagáscar e o estabelecimento na Alemanha de ZUCHTKLÖSTER de conventos de criação onde mulheres alemãs seriam fecundadas por machos arianos e assim haveria de se recriar pela selecção genética o Homem-deus que iria comunicar telepaticamente pela força do pensamento e das descargas eléctricas. Os nazis acabaram por concluir que a deportação para Madagáscar iria custar dinheiro que seria necessário para custear o esforço de guerra e em 1942 decidiram que a partir daí a solução final iria consistir no extermínio dos Judeus por todos os meios ao seu dispor.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 42-43, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

12/11/2018

...


“O primeiro genocídio do século XX ocorreu na Turquia em 1915. O Governo começou por prender e fuzilar seiscentas famílias arménias que viviam em Constantinopla e depois desarmou e fuzilou os soldados de origem arménia que prestavam serviço no exército turco. E todos os arménios receberam ordens para abandonar as cidades e aldeias num prazo de vinte e quatro ou quarenta e oito horas e o exército turco ocupou posições junto das portas da cidade e quando as pessoas saíram fuzilou todos os homens e mandou as mulheres e crianças para o degredo em regiões desérticas na Mesopotâmia. E as mulheres e crianças tiveram de percorrer de trezentos a quinhentos quilómetros a pé sem comida e a maioria pereceu. E os Franceses e os Ingleses e os Russos apresentarem uma nota de protesto em que pela primeira vez na história se escrevia tratar-se de um crime contra a humanidade. E um oficial alemão que nessa altura estava com o exército turco como instrutor levou para a Alemanha sessenta e seis fotografias do genocídio arménio e enviou-as ao imperador alemão e escreveu-lhe que a Alemanha haveria de escolher melhor os seus aliados porque a vergonha da Turquia não deixava de manchar também a Alemanha. E entre 1928 e 1949 os Russos deportaram seis milhões de cidadãos de nacionalidade suspeita arménios e lituanos e ucranianos e polacos e alemães e moldavos e gregos e calmucos e curdos e inguches etc. e 30 por cento deles pereceram pelo caminho e 20 por cento morreram no ano seguinte. Os comunistas diziam mais tarde que não se tinha tratado de deportações mas de optimização do espaço geográfico e do primeiro passo rumo a uma nova sociedade supranacional onde já não teria importância quem vivia onde mas quão afincadamente trabalhava para o bem de todos. E em 1934 inventaram uma reserva para os Judeus e convidaram todos os judeus soviéticos a mudarem-se para lá. A reserva encontrava-se na fronteira com a China na região de Khabarovka e no Inverno a temperatura descia até aos -40º C e os comunistas diziam que não era uma reserva mas uma região autónoma onde os Judeus podiam estar entre os seus e gerir a sua própria vida. E em 1944 deportaram para o Cazaquistão e para o Quirguistão 477 mil chechenos em 12525 vagões para o transporte de gado e 190 mil chechenos morreram pelo caminho de fome e gelo e em 1999 inventaram para os chechenos suspeitos campos especiais denominados campos de desterro temporário. E em 1948 acusaram jornalistas e médicos e engenheiros de origem judia de cosmopolitismo e de uma mentalidade burguesa e mandaram assassinar a maioria deles e mandaram outros para campos de concentração. O número de vítimas do genocídio arménio foi estimado em um milhão a milhão e meio mas os Turcos diziam que o genocídio arménio não tinha sido um verdadeiro genocídio e a maioria dos Judeus assim pensavam também.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 45-47, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

10/11/2018

...


“E em 1916 foi executado perto de Juvincourt um soldado que não trazia as calças regulamentares e que não quis vestir as calças de um camarada morto porque estavam sujas e cheias de sangue.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 39, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

06/11/2018

...


“A grande desilusão do século XX foi que a escolaridade obrigatória e o progresso técnico e a erudição e a cultura não levam o Homem a ser melhor e mais humano como tanto se acreditou no século XIX e que hordas de assassinos e torturadoress e chacinadores foram amantes das artes e assistiram a espectáculos de ópera e visitaram exposições e escreveram poemas e estudaram humanidades e medicina etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 30, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.