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15/02/2013

«TRANSMIGRAÇÕES»


Perguntou-me outro dia uma jovem estudante – interpretando a minha indiferença pelos confortos e glórias do mercado como indiferença pela publicação – por que motivo não guardava eu os manuscritos na gaveta.
                
«As pobres criaturas iriam sufocar» – respondi. Esta frase ganhou entoações de susto. Para uma mera hipótese, pareceu-me bastante capaz de assassinatos. Descrevi a paisagem ressequida, as casas com bolores e vigas rebentadas, e as personagens hirtas, com as carnes desfeitas sobre esqueletos verdes, de boca aberta naquele grito uivante que sempre solta os emparedados já depois de lhes ter parado o coração.
                
Há algures, de onde emanam os poderes criadores, uma ficha trocada, um cabo mal metido. E essa gente, essas terras, essas cóleras, esses lugares transtornos amorosos – em vez de acontecerem no tempo e na matéria, com a sua existência benigna e humanal, vêm nascer parasitariamente dentro da minha ideia, desarranjando de tal modo as ordens, os fios naturais do pensamento, vivendo com tal folga à minha custa que o único remédio é atirar com elas para cima do papel, pô-las a circular e deixar que mereçam ternura, os despiques, o desprezo das várias sociedades que frequentam. Eu, quanto a mim, suspiro com alívio e penso nelas como em maçadores que no entanto alguma vez amámos: desejando que possam ser felizes e que não mais nos saltem ao caminho.
             
   Bem sei que isto parece perfeita impertinência: primeiro, porque vem a despropósito falar assim da escrita num tempo em que ao trabalho e à inteligência – e não à possessão por astros ignorados – é que usa atribuir-se a feitura de um texto; segundo, porque soa a desatino e de certa maneira a má educação pôr esta voz, num mundo em que as literaturas se transformam em coisas respeitáveis, a queixar-se da grande sem-cerimónia com que as personagens e os enredos se apresentam e dizem, tendo do bolo de Alice o modo imperativo: «Conta-nos». E eu, tão rapidamente quanto posso., lá as conto e as empurro para longe de mim.

Hélia Correia 
na nota introdutória a “Montedemo”, pp.9-10, Relógio D’Água, Lx, 1987.