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09/08/2011

Oficiosamente d’ Agosto


OSSOS DO OFÍCIO
“Às vezes, se me encosto a esta terra, sinto um embate impetuoso que me arrebata como uma enxurrada e quer submergir-me. Uma voz, um odor, bastam para prender-me e atirar-me quem sabe para onde. Sou feito pedra, humilde, estrume, suco de fruta, vento. Do limite humano não me resta mais do que o instinto de me coagular em palavras, mas estas já não são nada e debato-me como uma árvore ou uma fera que tivesse sido homem e agora é incapaz de se exprimir. Cedo relutante porque sei que a minha natureza é outra e de cada vez encontro no fundo deste ímpeto uma vã saciedade. Todo o esforço para entumecer os sentidos mantendo a consciência conduz a esta derrota. Em suma, é um pecado, como a libertinagem, como o sadismo e a embriaguez.
                O limite humano – o meu – traz em si esta norma: o que quer e não se pode exprimir é pecado. Pior: é futilidade. É-lhe consentido só este perdão: a recordação. Através da recordação o que era desumano e bestial pode talvez resgatar-se e produzir um som de clara razão. Mas logo se tornando recordação deixa de ser tumidez dos sentidos.
                Falo aqui de tentações actuais. Paro diante de um campo desmemoriado, de um céu claro, de um curso de água, de um bosque, buscar a palavra que o traduza todo, até aos fios de erva, até ao odor, até ao vazio. Eu não existo; existe o campo, existe o céu. Existem os meus sentidos, escancarados como bocas a devorar o objecto. Duas naturalidades se defrontam: uma tensa, espasmódica; outra inexorável e bruta. Repito que fico todo tendido para o exterior. Não me sigo a mim próprio, não palpo uma ideia fugidia; em contrapartida, por dentro, o espírito está-me como que estrangulado. Na sua brutalidade este estado é, embora fútil, um esforço de endeusamento através da besta. Como beber ou matar. Se parece ser mais venial e quase meritório porque tende, em suma, para um fruto espiritual, é, todavia, mais venenoso porque é inexplicável da genuína vida interior e por isso sempre pronto a estragar o trabalho legítimo. É uma crise, um motim das faculdades boas que, enganadas por um choque de sentidos, julgam ganhar abandonando-se às coisas. E estas agarram, arrastam, tragam como um mar agitado, ilusórias, inagarráveis por seu turno, como espuma. Há nelas qualquer coisa de obsceno: exactamente o mesmo abandonar-se ao sexo e querer-lhe narrar as sensações secretas.
                Na recordação o tumulto se aplaca. Isto diz-se, bem entendido, da recordação-renúncia, da recordação que soube tornar-se senhora das coisas através da separação, a assunção do natural ao absoluto. De aqui em que o mais seguro viveiro de símbolos é o da infância: sensações remotas que se despojaram, macerando-se longamente, de toda a matéria e assumiram na memória a transparência do espírito. De aqui vem que aos talentos contemplativos nunca se recomendará suficientemente que tapem os sentidos diante da realidade e se contentem da que, filtrada pelos anos, aflora do fundo da fechada consciência. A ilusória riqueza do real não pode ser justamente avaliada senão por aqueles que sabem que só é nosso o que sempre possuímos; e isto explica porque são tão inenarravelmente aborrecidos os livros de viagens ou, como se diz, documentais. Um só documento nos interessa sempre e resulta novo: o que sabíamos desde crianças.
Por que, deveras, na infância éramos outra coisa. Pequenos brutos inscientes, o real nos acolhia como acolhe sementes e pedras. Nenhum perigo que então admirássemos e quiséssemos mergulhar no seu sorvedouro. Mas a história secreta da infância é feita precisamente de sobressaltos e dos arrancos que nos extirparam do real, pelos quais – hoje uma forma, amanhã uma cor –, através da linguagem nos contrapusemos às coisas e aprendemos a avaliá-las e contemplá-las. No fundo o que é preciso para nós é, portanto, esta concórdia discordante de encontros, de descobertas, de desenvolvimento. A tentação de reatingir como num abraço antinatural o universo pré-infantil das coisas, é o pecado. Se é possível, cabe-nos exercitar no oposto, repelir aquela naturalidade que à volta lhe restar, repeli-la para poder possuir. Mas bem pouco a vida adulta pode acrescentar ao tesouro infantil de descobertas. Pode-se, porém, trazer para a luz aquelas formas primitivas e contemplar-lhes o viço, como raízes que o terriço dos dias continuou a nutrir. Depois, de coisa coisa nasce e os dias futuros germinarão nestas cepas.”

Cesare Pavese, “ Férias de Agosto”, pp. 162-164, trad. Ana Hatherly, Quasi, Famalicão, 2008.