RICARTE-DÁCIO DE SOUSA «Um acto de amor e posse»
Cem anos não tinham passado sobre a data de publicação da Bíblia de Guttenberg (1455) já os documentos chegados aos nossos dias apontavam para a existência, no decorrer do séc. XVI, de coleccionadores da letra impressa, a erguerem pacientemente as primeiras bibliotecas particulares. Poderemos salientar na época a livraria reunida pelo humanista alemão Willibald Pirkheimer (1470-1530), amigo de Dürer, cujos livros viriam mais tarde a pertencer à família inglesa dos Duques de Norfolk, e os três mil volumes de Jean Grolier de Servières, Visconde d’Aiguisy, Tesoureiro-mor e Embaixador de França (1479-1565) e talvez o maior bibliófilo de Quinhentos. Coleccionar é um acto de amor e posse. Exige discernimento e cultura e é incompatível com a ligeireza. Bibliofilia e bibliomania não são, logicamente, uma e a mesma coisa. Lembro-me com nitidez da entrevista concedida pelos escritores Roger Stéphane e Bernard Pivot, para um dos seu famosíssimos programas «Apostrophes» da televisão francesa. Stéphane, célebre autor do livro Portrait de l’Aventurier (1.ª ed. 1950) com capítulos inovadores e pioneiros sobre T. E. Lawrence, André Malraux e Ernest von Salomon, ao ser interpelado sobre os seus «amores» das primeiras edições, respondia: «Claro que sim. Amo as tiragens originais, mas atenção, só adquiro as raridades dos escritores que admiro». Neste ponto entra em cena a cumplicidade com o texto que lemos, a corrente estabelecida entre nós e o outro, e o rasgar de horizontes que podem modificar a perspectiva da vida. A bibliofilia poderá nascer nesse instante, na tentativa extrema de captar, através do objecto, no qual está inserida uma aventura do espírito, a sensação de partilha. O objecto em si (pelo menos na 1.ª edição) tem um formato, uma qualidade de papel, um aspecto tipográfico a traduzir certamente o consentimento ou a escolha do autor. Muitas vezes as tiragens reduzidas e o grau de raridade aumentou com os anos e a nossa vontade de posse, essa, centuplicou com o refrear do desejo! | Por vezes as ironias e as leis de mercado, vingam-se na posteridade do mau passadio que o poeta suportou no seu tempo, e de forma implacável exigem o dízimo acumulado! Recordo o caso de Benjamin Péret, num viver (quase sempre) endiabrado e de risco, com mil carências permanentes e cujas primeiras edições (nas tiragens especiais) valem fortunas, estando apenas ao alcance de milionários. Um exemplar da tiragem especial, papel do Japão, do au 125 du Boulevard Saint-Germain, Paris, 1923, com desenhos de Max Ernst, chega facilmente aos dois mil contos! Muitas das suas «plaquettes» são autênticas obras de arte. Alguns dos companheiros da prodigiosa aventura surrealista foram grandes bibliófilos. Aragon. Eluard e Tzara. E o próprio André Breton possuía preciosidades (escolhidas a dedo) do Romantismo, e ainda traduções francesas (raríssimas) do Romance Gótico inglês dos fins do séc. XVIII. Na nossa terra falava-se nos quarenta mil volumes de Afonso Lopes Vieira. Ainda existem? Onde Param? Coleccionar pode levar ao desatino egoísta e feroz, e em certos casos limites, o desequilíbrio mental não anda longe. No séc. XIX português existe um exemplo medonho. Agostinho Vito Pereira Merello, espantosos bibliómano, reuniu, dezenas de anos a fio, sumptuosas biblioteca, na qual possuía peças únicas, e entre elas, o manuscrito inédito do poema de «Santa Maria Egipsiaca» atribuído a Sá de Miranda. Esta personagem, quando ilustres investigadores (Teófilio e Carolina Michäelis) lhe pediam para ver a obra, respondia: «Gosto tanto dela que não a mostro, seja a quem for!!!» Só depois da sua morte foi possível editá-la! Talvez a solução esteja no conselho do homem que mais admirei nestas lides, Pascal Pia, grão-senhor dos livros antigos: «O ideal, dizia ele, seria possuir três exemplares do que amamos. Um para o acariciar. Outro, para trabalhar. E o terceiro para emprestá-lo aos amigos, e é preciso que o mereçam!» Ricarte-Dácio de Sousa In ‘A Phala’, n.º 23, Abril/Maio/Junho, Assírio&Alvim, Lx, 1991. |