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29/11/2012

...


E antes? Allen Ginsberg passeava num supermercado, eu assobiava a ópera dos três vinténs, a Branca estacionava o carro em frente Escola Técnica, algumas pombas levantavam voo, a Joan Baez cantava para todos nós. Cantávamos.

Eduardo Guerra Carneiro, “Isto Anda Tudo Ligado”, ed. Cadernos Peninsulares, p.41, Lisboa, 1970.


São Lázaro, Fontainhas (a primeira comunhão nos Salesianos, o cheiro a cera e incenso, sòzinho, no grande altar, o padre a cheirar a alho, o sabor azedo da hóstia, o não poder mastigar, vontade de vomitar, o fantasma da Ópera, o cão branco, umas eleições presidenciais, o pão repartido, a caderneta de jogadores roída pelos ratos, a cola feita de farinha, até o Barrigana!, o boininhas, a vergasta, meu pai escrevendo versos na sala cheia de janelas com sol a dar-lhe em cheio).

Eduardo Guerra Carneiro, “Isto Anda Tudo Ligado”, ed. Cadernos Peninsulares, p.43, Lisboa, 1970.


Lumpen, lumpen! Aos baldões vou contigo por essas ruas estreitas a fugir da chuva. Bebo ao teu lado e ouço as tuas sórdidas e morrinhentas histórias. Até futebol comento enquanto esperamos os barcos. Lumpen, lumpen! Meu país de arrabaldes a custo equilibrados na aguardente e nos jornais desportivos. Lumpen, lumpen! Arrabaldados andamos todos nós!

Eduardo Guerra Carneiro, “Isto Anda Tudo Ligado”, ed. Cadernos Peninsulares, p.49, Lisboa, 1970.

16/12/2010

Guerra em Paz


A Barba


A barba é o meu gato. Afago-a

nesse jeito de quem passa os dedos

pelo dorso de um bichano. Eu sei

que estou a tocar num tigre: a barba

encrespa-se, revolve-se mesmo.

Ondas, campos de milho, searas,

também conhecem afago igual.

Mas este gato rebelde, a minha barba

apenas, é agora tudo a que me prendo.

Mestres já me dizem do excesso

de assim me virar para dentro.

Não! É para fora! Mora a barba

noutras eras, noutro espaço. É ela

que me afaga a mim: a última ternura.

Eduardo Guerra Carneiro in Profissão de Fé, p.28, Quetzal Editores, Lx, 1990

26/09/2010

Escritores Esquecidos 7


Eduardo Guerra Carneiro (Chaves, 1942 - Lisboa, 2004)



O PÓ NOS PASSEIOS

O pó nos passeios com vagar
se ergue. A luz é mais nítida.
Os corpos se mostram. Em algumas
praias residem dialectos. Turismo
nos marca com ferro diferente
em costumes e fala. Nas ruas se vende
o jornal da estranja. O burro
ainda merca. Alfarroba em bolsa.
O pó nos passeios com vagar
se ergue. A luz ainda é nítida.
Só de certo modo. Só em certas terras.
Turismo na farda. No bolso o desdém.


Eduardo Guerra Carneiro in "Algumas Palavras", p.16, Porto, 1969.


ISTO ANDA TUDO LIGADO
(...)

O feijão cresce no nariz (o quarto das
traseiras, a boneca de louça despedaçada,
a bola amarela, o guarda-chuva da mãe,
os vidros da Escola pintados de branco,
aqui e além um espaço visível, pessoas no
passeio em frente, um enorme domingo
de pasmo sem tempo).

De novo olha o mapa-cor-de-rosa onde es-
creveu anotações a lápis, pensamentos de
ocasião, pequenos insultos. Onde traçou
muitos itinerários - na sua maior parte
banais, fáceis de realizar. De novo abre
o mapa da cidade, suja, cinzenta, ama-
relecida, sem um parque, nem mesmo um
lago, apenas São Lázaro da infância.
E outra cidade (ou a mesma?) com um
ou outro quarto escondido pelas altas ca-
sas, uma rua de domingo, antigos meses
de Outubro numa Coimbra para sempre
ligada a mistérios (mais tarde a har-
monia - sofrosiné em grego).

Seguro, por exemplo, o teu ombro es-
querdo. Podes sorrir e dizer qualquer
coisa: O último eléctrico. Alguns bolos
e um gelado. Desde as onze. Mas, entre
as palavras, há súbitos silêncios, um es-
tranho olhar, um fósforo que se apaga, a
lembrança de uma infância dourada de
palmas e sorrisos - à maneira de Perse.

Onde estás agora? Disseram-me que a
tristeza se instalou nas cadeiras da tua
casa, nos teus móveis de estilo, entre os
lençóis da tua imensa cama. A tua voz
ainda soa por entre os meus livros, em
alguns discos, no fundo de algumas gar-
rafas. Onde estás agora? Disseram-me
que o vento já não afasta os teus cabelos.
Em alguns descampados ficou a recor-
dação da tua magnífica água-de-colónia,
do shampoo que em certas tardes de
Março íamos comprar ao supermercado
perto do Hotel. Lembro o teu corpo como
quem recorda um navio ou um poema de
Camilo Pessanha.

O feijão é já feijoeiro (as traseiras dos
prédios, as escadas de serviço, o que os
meus olhos viram, tesouras, cimento, es-
cadas, tanques de lavar a roupa, antes
a querra - Coreia? China? -, botas, o
jardim da Estrela em 1949, Naná, a So-
nata a Kreutzer, cartas em caixotes, a
grande solidão, Chiado, Camões, o pre-
sépio de madeira).

Continua...

Eduardo Guerra Carneiro in "Isto Anda Tudo Ligado", pp.26-30, Cadernos Peninsulares, 1970.



PREFÁCIO A UMA HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE

As clarabóias deste lado da cidade acendem-se mais cedo.
sinal que alguém projecta o fogo sobre o bairro
incendiando casas, talvez certas pessoas, as ruas
mais estreitas junto ao Tejo. Em manhãs como esta o sol
entra na mesa e pára junto às teclas. Parece um sorriso;
diria mesmo uma ternura. Poucos são os Palácios, mas imenso
é o espaço. E as águas, no rio e junto às teclas, acendem-se
com o fogo de outras clarabóias.

Depois são as luzes, as indústrias, o último petroleiro.
Descansam moradores em casas altas
enquanto se ergue a cidade nocturna de bares e liamba
e cresce um ou outro clandestino. É tempo de sair
por entre a névoa; rondar as esquinas; sorrir à puta;
apertar o copo; sentir o suor da cidade, corpo a tremer
de frio e febre neste tempo de amoníaco e éter
com ambulâncias lentas a caminho da morgue.

Antes ainda das luzes, quando, à maneira de Cesário,
o fumo se eleva no espaço, o recorte das fachadas
é mais nítido, o vermelho de Lisboa é mais intenso,
podemos imaginar escadas cansadas da madeira,
fogões acesos nas cozinhas,
crianças já com sono,
etc, etc...

Eduardo Guerra Carneiro in "Como Quem Não Quer A Coisa", pp.29-30, &etc, Lisboa, 1978.


DAMA DE COPAS

Entre ases e manilhas
Duque e terno da sueca
As damas são maravilhas
Quem as tem que as não perca

Diz-lhe lá então ó mesa
Qual o nome de eleição
Eu quero ter a certeza
Da carta em meu coração

Naipe já tu o disseste
E cortar com espadas não
Nem com oiros me fizeste
Nem paus te chegam à mão

São copas, venham mais taças
Vamos pois brindar à dama
Só não quero que o faças
No meio da minha cama

Muito agradecido fico
Pano verde onde joguei
Em dinheiro não sou rico
Mas levo a dama do rei

Tem cuidado com a sorte
Ó jogador afamado
Pode a dama ser a morte
E depois ficas parado

Não te saia pé de cabra
Ó meu cavaleiro andante
Procura a chave que abra
O seu coração de amante

A dama de copas canto
Bem alto os copos erguendo
Cuidado não seja tanto
Que a percas anoitecendo

Dama de copas é amor
Vence a morte em qualquer mesa
Não tenhas medo ou temor
O vinho deu-me a certeza

Eduardo Guerra Carneiro


ÁLCOOL

Os álcoois espalham-se em véu
pelas tuas veias. Julgas de alegria
essa névoa baça: divagas na forma
mas nem memória fica. Assim foi
no caminho de outros tempos, outras
horas. Agora vês a névoa, já sem
álcool, e fixas no espaço a demora
para encontrar na vida outros álcoois.
Mais certos para ti, mais remadores
contra a maré que invade
a história tua. Julgas de alegria
essa vida, feiro juiz de fora,
vulgar tonto. Mas esse álcool
te entontece. Desvenda então a vida - revivida.

No teatro mexes, entre as mesas,
repovoado o palco, com as musa.
Moves cordelinhos, entretelas,
e recusas mexilhão quando
não usas, nem abusas,
da bebida. Farturas de teatro
já te dão as divas - divinas
meninas desse palco. Recusas
o drama, entre actos
que povoam tua vida. Comovida,
a outra repovoava esses espaços
onde os álcoois fortes bem sabiam
à miséria doce que gastavas
- medronho eras.


Continua...

Eduardo Guerra Carneiro in "Contra a Corrente", pp.9-10, &etc, Lisboa, 1988.

OS CAFÉS

Nos café desenham os paisanos, vulgares
senhores de bagaço e genebra, raspando o mármore
entre as folhas do jornal. Morrem os cafés
com seu bilhar, bengaleiro e escarrador. Música
de rédio ainda sintoniza a serradura e os vidros
baços quando chove. Recordo cafés
da província, ou da cidade grande,
destruídos por ímpias criaturas do plástico.
Já não servem cevada ou eduardinho e o açúcar
não vem no açucareiro. Alguns ainda assinam
os jornais, o cobre limpam e pagam
aos paquetes. Autorizam cauteleiros, a caixa
do engraxador, a rapariga das violetas. Violentam
os cafés aqueles da usura, ratos do cimento.

Avesso à militança, são os cafés retrato militante
de algumas senhoras de batina e capa, entornando
no pires o leite do caniche. Alvoraçados os velhos
titilam nas retretes e os tabacos esgotam-se em
___ suspiro.
São cafés com espelhos e amarelas luzes onde o néon
ainda não entrou. Também de padres são feitas
essas lojas; de marçanos, rapazelhos e trapistas.
Desenvolvo teorias sobre os ditos. Em tempo de
___ ditadura
era o café a teia da intriga, o bocejar jacobino,
o guarda-chuva pingando tristes ais. Insisto pois
no rádio e radiador. Quem lembra os pianos?
Carambolas secas já cortavam o fumo dos charutos;
no marcador quinze de partido; na mesa ao fundo,
igual à história antiga, dois jogadores de xadrez
___ ou de gamão.


Eduardo Guerra Carneiro in "Contra a Corrente", pp.23-24, &etc, Lisboa, 1988.



II

Em lamas mergulhas e voltas
ao lodo. Dos lameiros da infância guardas
alguns cheiros e já lamentas não teres
no lodaçal entrado. Sabes ladear
o tanque do mosto e viras cangaço
na esperança de saberes. Não sabes
que crescem raízes na lama? Logo
ligarás o negro fundo: deixa
que o lodo marque essa brancura.
O fogo crepita nas margens da lama
e o que tu lixo julgavas era ouro.
Alambiques demonstram alquimias
fáceis. Vais aprender no escuro
sótão: a ravina esboroa-se nos teus olhos.

É oum bairro de barro. Outros preferem
a palavra adobe. Tijolo, por vezes,
entre zinco ou palha. Liga-se a lama
com restos de excrementos e pintam-se
os homens com vermelhão no rosto.
Não sei se é de guerra ou paz esse sinal
nos labirintos miúdos entre as rugas.
Chuva pesada envolve-te as sandálias
e já pensas regressar a cimento e asfalto.
Uma flor irrompe, outra e outra,
nos cactos sagrados, em vermelho vivo.
Desfazes o encanto da paisagem inventada
antes que os padres cheguem e destruam
o voo do condor - o teu voar.

Pesada é a máscara de argila seca.
Aguentas sofrimento para amanhã
voltares a estas festa. Outros
o fizeram, mais ágeis do que tu
e o estalar do barro abriu-lhes
novos rostos. Feiticeiro: quem é agora o príncipe? A resposta fica
à espera que pássaros se ergam
do topo da pirâmide. Abutres
agucam ensanguentados bicos e os corações
latejam nas mãos do sacerdote.
É a altura de ergueres o copo
e beberes as gotas que te restam.
Arranca a máscara - também és Deus.

Eduardo Guerra Carneiro in "Lixo", pp.15-17, &etc, Lisboa, 1993.

A NOIVA DAS ASTÚRIAS

Misturam-se agora as linhas do bordado
e confessa que o enredo foi difícil.
É fácil dizer assim que o fim é isto.
A dor não passa com tantos álcoois fortes e o desejo
arde e marca-lhe as artérias. Misturam-se
as tardes e as ondas ainda batem nesse muro.
Não é fácil, não, esqueçer não basta. Amor
ele julgava que buscava nas ermidas,
e os outeiros ardiam, desesperados. Misturam-se
as noites e ele resolve-se, sem resolver
a história inacabada. Buscou as pedras
e com barro uniu o frágil coração,
mas tão ardente. O coração ardia e o fogo
continuava. Maldição de outros álcoois,
noutras terras, evocava o príncipe, imperfeito.

Sim: era o princípio de um fim anunciado.
Ela dizia-o de início e ele não sabia
do presente envenenado - tantas noites! Misturam-se
as manhãs nesses poentes e ainda o Cantábrico
batia naquele muro. Sonhava com princesas
e rezava, dessa maneira estranha que sabia.

Não é fácil, não, esquecer não basta. Amor
ainda procura noutros corpos. Mas é ela
que vê, entre suspiros, e o ar que ainda respira
é dessa boca. No mar, além, imaginava
as barcas da aurora. Ora!, ora!, tenta ironizar,
nas barras onde bebe o desamor. Resolve-se
nas insónias, desce aos infernos nas barcas
da cidade. Misturam-se as linhas
do bordado e já se desengana de um regresso.
Traça estas linhas e nem sabe quem escreve,
se ele ou o desgosto que o marcou.
Mas volta ao labirinto que escolheu e sabe
já: é isto uma história projectada, um filme
antigo que ele próprio realizou. Desliga
o fio e a luz se apaga. Calma! Não findou.

Rebobina então do fim para o princípio.
Projecta o filme, que outro já ele é.
Mistura príncipe e princesa e às Astúrias regressa,
do passado. Mas sabe bem que o sonhador
sonhado pode estar além no muro.
É isso: recomeçar do nada, o tal bordado.


Eduardo Guerra Carneiro in "A Noiva das Astúrias", pp.7-9, &etc, Lisboa, 2001.


Bibliografia:


* O Perfil da Estátua (poesia, 1962)
* Corpo Terra (poesia, 1966)
* Algumas Palavras (poesia, 1969)
* Isto Anda Tudo Ligado (poesia, 1970)
* É Assim Que Se Faz a História (poesia, 1973)
* Como Quem Não Quer a Coisa (poesia, 1978)
* Dama de Copas (poesia, 1981)
* Contra a Corrente (poesia, 1988)
* Profissão de Fé (poesia, 1990)
* Lixo (poesia, 1993)
* O Revólver do Repórter (crónicas, 1994)
* Outras Fitas (crónicas, 1999)
* A Noiva das Astúrias (poesia, 2001)


Fotografia dos coordenadores da revista Setentrião (nºs 2 e 3), datada de Julho de 1962, vemos da esquerda para a direita, António Cabral, Carlos Loures, Eduardo Guerra Carneiro e Ascenso Gomes






ANTOLOGIA DA POESIA CONTEMPORANEA DE TRÁS OS MONTES E ALTO DOURO

(composto e impresso na Minerva Trasmontana, Vila Real). In-4.º peq. De 95-VII págs. B.

Poesias de Afonso Costa, Alberto Miranda, Alfredo Margarido, António Borges Coelho, António josé Maldonado, António Cabral, Bento da Cruz, Domingos Monteiro, Edgar Carneiro, Eduardo Guerra-Carneiro, Fausto José, Francisco Cordeiro, Granjo de Matos, J. Gonçalinho de Oliveira, José Barcos, José Magem, Manuel Pinto, Maria Augusta Ribeiro, Miguel Montes, Miguel Torga, Nelson Vilela e Nuno Teixeira Neves. Muito invulgar.

Capa de João Dixo e ilustrações em separado de Nadir Afonso, João Dixo e Nuno Barreto.



POEMAS LIVRES (1962-1968)

Coimbra Editora, lda. E Tipografia do Carvalhido, Porto. 3 números In-4º B.

Colaboração de César Oliveira, Ferreira Guedes, Francisco Delgado, Maragarida Losa, Rui Namorado, António Manuel Lopes Dias, Armando da Silva Carvalho, Fernando Assis Pacheco, Fernando Miguel Bernardes, Luís Guerreiro, Luís Serrano e Manuel Alberto Valente. Daniel Pires no seu "Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX», 2º vol., tomo 1º, fornece uma extensa notícia sobre esta publicação, baseada em depoimentos de Margarida Losa, Ferreira Guedes e César Oliveira.