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02/01/2015

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I

Entre os homens e as humanidades,
de mim mesma alheada, cambaleio
a bordo de conceitos que não colam
e de esmolas que já não me alimentam.
À deriva, faço vénias, faço figas
– longo jogo da macaca nos passeios,
breve jogo da glória nas calçadas
ou da mão que ainda bate morta
mas não toca àquela porta
por ter medo da batota.

Se mulher entre os homens, quase vírus,
se homem entre fêmeas, mutilada
se menina entre adultos, quase bicho
se adulta entre crianças, acossada.

Por isso me lançam à sarjeta,
me atiram às urtigas e eu me coço,
recordando a doçura de hortelã
que sarava quando ardia este meu corpo.

Regina Guimarães, “Lady Boom – as rainhas”, p. 3, ed. Hélastre, Porto, 2009.





REPÚBLICA

Despido o orgulho obscuro
da noite boa conselheira,
algo paira mais leve:
uma aura sem disfarce de aurora,
uma ruga de sorriso longe da boca,
uma mão plantada onde fora árvore
e um cheiro de lençol no mastro da bandeira.

Se aceito sem escolha de arma,
este duelo, este dueto de rajadas,
onde sou testemunha e adversária,
é por natura me ter avariado
até me tornar inelutável,
lutadora,
vária.

Regina Guimarães, “Cantigas de Amigo”, p. 18, ed. Hélastre, Porto, 2009.


20/08/2013

...





FINO TRATO

Avança uma pedra
e as pernas abrem
falência
ou a chuva faz fortuna. Motores.
O mover das pedras pode ser verificado
não o resto,
quanto ao menos
mais.
Atrás não lhe ficaram os braços
que eram
andrajos dum corpinho
sem luz nem valor.
Os sábios não pagam, os galos não cantam.
Vão-nos descontando
dos nossos livros de contas:
lázaros brinquedos
fracos tambores
sapatos.
Oh pernas para que vos quero!

p.13


A FALA DOS CIGARROS

A vida encardiu-se
tocam as sinas
as unhas crescem
em curva, o buraco diz.

Os tiros rentes à ventania
reparam em nós.
Eis-nos ao abrigo
das doenças infantis.

Alguém nos recheou de verd
ades, assim Uma esconde Outra
e esse trabalho ingrato
na folha de papel se deita
e esse suor não molha
e essa pena não fere.

p.14


PENDURAR AS ARMAS

A dança traseira das portas
que nos voltam as costas e
a disciplina de confessar
de vento se fazem.

Mas pena de amor pousa frondosa
e o olhar proíbe os piropos de vento.

Minha dona vive sem casa
seu rol de armas seca
pendurado ao sol e dona minha sabe
dividir opiniões
mudar seus filtros.

p.28


Regina Guimarães in “O Extra-Celeste”, AEFLUP – Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1986.

18/11/2012

Regina Guimarães...



para o Manuel António Pina

é certo que por vezes conversando

lutavas contra luas e olhos baços
semi-cerravas dextras as palavras tuas
como se nos morresses aos poucos
de temor e de ternura
inexplicadas

porém
acostumados ao vaivém do luto
que os teus poemas acendiam
nas duas extremas
do corredor

e em todas as portas do labirinto
ficamos sem saber quem se cansou
da fadiga que te trazia
violentamente inalterado
à nossa presença

pudera eu escrever
com a tinta do frio nas costas
e directamente sobre o tampo polido
de uma mesa do café onde esperar
esse tempo amigo que tu eras
passado a limpo

mas haja noite
haja mais noite

e nós crianças
em perda de sono
envelhecendo cada um na sua voz

Regina Guimarães a 19 de Outubro de 2012