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02/12/2019

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Para uma pequena filosofia do Natal
Ao separar a correspondência, o carteiro encontrou várias cartas dirigidas ao Pai Natal. Como não tinham endereço, ficaram por distribuir. Desejos não endereçados não chegam ao céu!
Resolveu fazer Natal todo o ano. Quando o trataram de maluco, perguntou-respondeu candidamente: – Então o pinheiro não é árvore sempre verde?
Encontrou no sapatinho uma guilhotina de brinquedo.
À porta da loja de brinquedos, o Pai Natal já não podia com o frio. Um senhor teve pena dele e pagou-lhe um copo num bar vizinho.
Proposta (rejeitada) de um vereador amigo da natureza: fazer árvores de Natal nos pinhais (com pinheiros não cortados, evidentemente).
Todos os lugares deveriam ser santos no Natal.
Pelo Natal, um pequeno industrial arruinado decidiu relançar o seu talco invendável sob uma nova marca: NATALCO. «Mas é a pior altura do ano para se vender talco!», disse-lhe um amigo. «Não. É agora que os armazenistas fazem os seus estoques de Verão»», respondeu-lhe o industrial. E cada um parecia muito seguro do que afirmara. Eu pensava nos refegos dos bebés…
O mais triste do após-Natal: pinheirinhos, às portas das casas, como adereços imprestáveis.
Estão à espera de uma graça sobre o Natal e a gasolina, não estão? Então esperem…
– Que tens tu?
– Nada. É Natal.”


Alexandre O’Neill. In “Capital”, 20 de Dezembro de 1973.

19/01/2019

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É favor não sujar o offset!
Grande progresso se anunciou para o nosso «Diário de Lisboa» pela pena do seu Director-Geral Lopes do Souto! Tão grande que o cronista, amodorrado desde há meses, sentiu uma irrecusável necessidade de romper o silêncio, fita de máquina e papel para festejar, na sempre boa companhia que é a deste Jornal, a novidade grande: o offset!
Sim! Vocês já viram bem o que vai ser o offset? Do ponto de vista de quem lê ou, pelo menos, manuseia o jornal, o offset representa, pela primeira vez em Portugal, a possibilidade de não sujar as mãos com notícias frescas. Da fresca data à fresca tinta como as técnicas podem mudar!
Homens de mãos e punhos brancos, o offset não denunciará em vós o hábito de estar a par do que ocorre no mundo e seus quintais. Doravante (melhor: 6 de Outubro chegado) podeis entregar-vos, sem traiçoeira mácula, a esse vício que até agora haveis mantido quase secreto; o da informação. Vietname não sujará a mão! Golos do Eusébio não sujarão a mão! Palavras cruzadas não sujarão a mão (o offset não se responsabiliza pelo eventual derrame do conteúdo da esferográfica…)! Discursâncias (que sacrifício para um jornal que é rápido…) não sujarão a mão!
O OFFSET CONSERVA MAIS BRANCO!
Homens de mãos (honestamente) sujas, não mais podereis mostrar o sujo das vossas mãos como um dramático sinal da luta pela informação! Acabou-se o fadinho, queridos e esforçados autodidactas…
Que bom, que lindo um jornal limpo!
Assim, para rematar esta croniqueta, que ainda suja, propomos que o Diário de Lisboa offseteditado passe a trazer, em cada número, a evidência da sua preocupação de limpeza:
É FAVOR NÃO SUJAR O OFFSET!”


Alexandre O’Neill. In “Diário de Lisboa”, 9 de Setembro de 1971.

25/07/2017

ENTRE BERNARDIM E SÁ CARNEIRO...


Vilancete

Entre mim mesmo e mim
não sei que se alevantou,
que tão meu imigo sou.

Uns tempos, com grande engano,
vivi eu mesmo comigo,
agora no mor perigo
se me descobre o mor dano.
Caro custa um desengano
e pois me este não matou
quão caro que me custou.

De mim me sou feito alheio,
entre o cuidado e cuidado
está um mal derramado
que por mal grande me veio.
Nova dor, novo receio
foi este que me tomou:
assim me tem, assim estou.
 
BERNARDIM RIBEIRO
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Eu não sou, eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

MÁRIO SÁ-CARNEIRO
 
CORRUPTELAS DE O’NEILL E DE VITOR SILVA TAVARES
 
Sá de Miranda Carneiro

comigo me desavim
eu não sou eu nem sou o outro
sou posto em todo perigo
sou qualquer coisa de intermédio
não posso viver comigo
pilar da ponte de tédio
não posso viver sem mim
que vai de mim para o Outro
 
ALEXANDRE O´NEILL
 
 
 
 
 
 
Eu não sou, eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte do Tejo
 
VITOR SILVA TAVARES

30/12/2014




Voguemos
{
a cantar
Vogais



Voguemos
{
devagar
Vogais



Para
{
nós
vós

A brisa é de encantar



Nós embarcamos
{
Com 'sperança
Vós embarcais

Para a doce França



Vivó mestre Ubu!

A Providência

A Providência

É a nossa crença

O céu a recompensa

Sempre a virtude

Tatude, tutu, achas tu?

Turlututu!

A virtude tem sempre recompensa...





Alfred Jarry, “Mestre Ubu”, Editorial Minotauro, versão de Luís Lima e Alexandre O'Neill.

07/02/2014

«DE OMBRO NA OMBREIRA DO SURREALISMO»...

DE OMBRO NA OMBREIRA
DO SURREALISMO
Vitor Silva Tavares

Em nacional português teríamos chegado tarde a tudo, surrealismo incluído, não tivera havido faiscante premonição a tal modo de usar: num jacto de psiquismo discursivo Almada esgalha A Engomadeira dois anos antes (estamos em 1917) de Apollinaire apor o hífen à designação pioneira «sur-réalisme» para o «drama» Les Mamelles de Tirésias.

Arqueólogos, cuidado: a esta luz o próprio André Breton – pára-raios e constitucionalista – chega tarde ao surrealismo!

Capítulo escavações temos entre nós um caso toupeira expedicionária: vai-se à antologia O Surrealismo na Poesia Portuguesa que Natália Correia estampa europa-américa em 1973 e lá surge a inaugurar uma tal Soror Violante do Céu, nada em 1602 e sugada de vez pelo apelido em 1939, Nihil obstat.

Matéria de arautos & trombeteiros, faz-se constar Agostinho de Campos (!) e já agora – pare, escute e olhe – Jorge de Sena, mas a coisa apura em António Pedro, que manifesta «dimensionismo» (!) em 1935 e até fardara surrealista londrino em 36. Também vale.

Ou não. E não, porque o Primeiro Manifesto de 1924 (que manifesta a cosmovisão conceptual e as estradas da intervenção) o surrealismo se entende unicamente acção de grupo, proposição revolucionária que se cumpre em colectivo e dispensa (expulsa) frenesis umbilicais, génios domésticos. Atenção: por enquanto, nisto, nem bufa de Estaline.

Mas teremos de virar folhas e calendários, ultrapassar de Espanha e Segunda Mundial para, agora sim, chegarmos a António Pedro como polarizador, na passada esperta, de um primeiríssimo grupo de iniciados, ou isso. 1947: passe de mágica no círculo do circo cercado e ei-lo primus inter pares – já era mania pessoal, vê-se até na fotografia.

(IN SE RIR FOTO)


Primo que fosse, ou se colasse colaterasse, serve à maravilha para arquivistas do tarde e do cedo.

Que é sempre tarde. E é cedo sempre. Independente do cadáver adiado e da sua circunstância histórica, o real movimento do espírito humano não cultiva relações com cronómetros e calendários, as ondas magnéticas vertiginam por espaços e eras, sem atrás, sem à frente, sem baixo, sem cimo, sem ida e sem volta. O que é que pois importa, nesta irradiação, sublinhar-se primeiro como certificado de valor ou louro de efeméride se de cada «novidade» na anedota dos ismos se desenha apenas o jeito da farpela, o ademane?

Adiante. Temos por assente que Breton e correligionários, saídos da negação pura e dura de dadá, não asparam o surrealismo como estética, mais uma, apesar dos impulsos instrumentais – psiquismo onírico, celebração mágica, discurso sem censura racionalista – e dos modos operatórios da criação artística aqui alavanca (uma delas, e nem por isso aglutinadora) para mudar a vida, mudar mesmo, e transformar, transformar mesmo, o Homem: assim o afirmaram revolução – com ética interventora e revólver dialéctico, pum pum.

Quanto ao comandante de grupo lusitano cheira-nos que afeiçoou ele o surrealismo cheirado via Canal da Mancha ao figurino de bailarico minhoto – e terá sido por consequência, afeito folclore de vanguarda, que o Secretário de Propaganda Nacional, depois Secretário Nacional de Informação (não é de hoje, pois não, a camuflagem da propaganda em informação), todo entregue a modernismos para não mais se sentir só, lhe chamou um figo, lhe abriu salões para expor, pagou catálogos, fez a festa, lançou foguetório e deixou outros a apanhar as canas. Ou nem isso. Porque outros – havia outros – tomavam de assalto a SNBA de Eduardo Malta e, verdinhos muitos da António Arroio, pintavam-se alguns de vermelho tropical, tipo Portinari e muralistas mexicanos, naquela sua ideia deles de porem trombudos trolhas a almoçar de marmita ou a adjectivarem a fome – e oh se esta apertava – com os ossos todos à vista armada. Mas será este um outro filme, se não o mesmo. Porque a polémica «neo-realismo» versus «surrealismo» foi também, se é que não foi de sobremaneira, uma polémica política em tempos internacionais de brutal confrontação entre fascismos e antifascismos, e por cá em conformidade, entre quem colaborava ainda que a toca-e-foge ou não colaborava-de-todo com um regime ditatorial, claramente apoiante dos fascistas espanhóis e das potências do Eixo, que nem a «Política do Espírito» herdada do buliçoso Ferro lograva branquear. Impunha-se uma separação de águas ou territórios, de compromissos tácticos, de comportamentos. Não apenas, note-se, entre os dois lados deste fosso que o tempo forçava a preto-e-branco: pairando como pairava, já nas hostes neo-realistas, a treva do jdanovismo estalinista – que impelia o Mário Dionísio das «Fichas» a confrontar um António Vale que mais não era que o Álvaro Cunhal em embuçado pseudónimo – também no interior do que passava a ser o primeiro grupo surrealista havia quem, houve quem, desde logo se não antes lobrigasse o surrealismo de António Pedro como esturro reaccionário, ou fedor de cadáver-mais-que-esquisito da propaganda estadonovista, álibi d’arte prafrentex, lambidinho em subdesenvolvidas imitações dalinianas e logo convenientemente «onírico». Na literatura, o mesmo: serra d’Arga à vista, em proto-poema hortaliceiro. Estava muito bem assim.


COLAGEM – I

De uma entrevista concedida por Francisco Castro Rodrigues, homem do MUD e co-organizador do volume antológico Bloco (onde neo-ralistas e futuros surrealistas se ombreavam), à revista Abril em Maio, Abril de 2001:
CR – As teorias de António Pedro foram aquelas seguidas imediatamente.
AeM – Eram teorias dissolventes?
CR – Não diria tanto. Mas era: desliguem-se dos comunistas, desliguem-se desses antifascistas todos, e pintem, e façam as vossas obras. (…) Talvez viesse a saber depois que aquilo era o expoente dessa coisa que se chamou surrealismo. Vieram depois juntar-se ao Grupo Surrealista de Lisboa, em manifesta hostilidade a esses patetóides dos realistas, dos neo-realistas, porque ninguém falava ainda em realismo socialista, não se sabia o que isso era.


COLAGEM – II

Do artigo «Antes e depois de 1947», de Alexandre Pomar, inserto no «Cartaz» do Expresso, 2 de Junho de 2001:

Quanto à primeira fase do surrealismo nacional, o carácter de ruptura atribuído à exposição de Pedro e Dacosta na Casa Repe (1940) tem de ser prudentemente contabilizado com a aparição regular da sua pintura nos salões do SPN, desde 39, depois no SNI, em 45, e na SNBA em 46 e 47 (1.ª e 2.ª EGAP), associada entretanto à confusa produção de Cândido Costa Pinto, Por outro lado, é indispensável que ao vanguardismo de pedro em 34 se associe a sua militância fascista (é então comissário da propaganda do «Nacional Sindicalismo» e a ida para Paris é um «semi-exílio» solidário com Rolão Preto, como França ensinou), tal como importa referenciar na extrema direita as figuras de Dutra Faria e Ramiro Valadão, co-autores dos primeiros cadavres-exquis ditos surrealistas.


COLAGEM – III

De Mário Cesariny, in A Intervenção Surrealista (1966), dados referentes a 1947:
a)    Em Lisboa, António Domingues, Alexandre O’Neill, João Moniz Pereira e Mário Cesariny aderem ao surrealismo.
b)    Em Lisboa, Alexandre O’Neill e António Domingues afastam Cândido Costa Pinto do grupo surrealista em formação, ao mesmo tempo que chamam António Pedro a esse propósito.

«Fundador» do grupo lisboeta por usurpação transformada em direito natural, e assim uma espécie de gauleiter do surrealismo-de-montra do Palácio Foz, António Pedro devia exalar ainda, em majestático, o fascínio de um cilindro sedutor (leia-se José-Augusto França, que em recentes Memórias lhe presta sentida homenagem e lhe despe a fardeta negra), daí decorrendo que, perorando pulsões narcísicas sem mais ímpeto ou furor, atrai ao primeiro milho da «subversão artística» uns tantos moços sedentos de ardências outras das da epopeia futurista quanto mais da saga coitadinha de gaibéus e trolhas. E se uns por aí se ficaram, breve deslizando como O’Neill ou Dacosta (que já «pegara fogo» ao atelier de António Pedro em 1944, segundo Cesariny), outros, em clara agonia do mau cheiro, bateram com a porta e foram, literalmente, apanhar ar. O ar que houvesse disponível nos interstícios do pestilento país do respeitinho, dos padres e das polícias.

         Decorre uma saraivada de manifestos, abaixo-assinados, poemas-colagens e por colar, objectos recuperados, cadáveres-esquisitos, picto-abjeccionistas, provocações – o mais intenso, o mais dinâmico, o mais inventivo e interventivo que pulsou entre nós o surrealismo-enquanto-tal, único.


* * *

Enredos e equívocos em malha apertado eis que se chega (47) ao palco do JUBA onde doutores mui curiosos de saber o que era afinal isso do surrealismo ouviram os distintos baptizados e estancaram-se com o mesmo ponto de exclamação sendo depois brindados pelos «outros» com um gato dentro duma caixa de sapatos «tudo rapaziadas» miopou póstumo o Luiz Pacheco enquanto o trolha lá ia melhorando o rancho e a pide refeita do cagaço da vitória dos aliados garantia o emprego o emprego com o novo alento da guerra fria já que os capatazes locais do zé dos bigodes excomungavam de reaccionários todos (por causa do ex-fascista Pedro?) esses rapazes suspeitamente esquizofrénicos e esotéricos e sebosos de caca cuspo e ramela que tendo lido embora e adaptado conforme o Segundo Manifesto da tentação marxista repegavam Rimbaud e Artaud e outros videntes e empanzinavam-se (no papel) de carapaus fritos e pratos de sopa numa recusa telhuda de explicações para a História dos sábios e de carreiras artísticas com vista à enxúndia bancária e assim se estampavam com o nariz na porta dos suplementos culturais e das casas editoras que lá iam cumprindo em elevado espírito de missão & melhor consciência comercial o papel de oposição ao regime, oh Posição.

Esses rapazes que lá fora – ah, lá fora – conseguiam, malgré tout em português, rir de tudo.

* * *
COLAGEM – IV
     De Mário Cesariny, in A Intervenção Surrealista, dado o referente a 1951: Alexandre O’Neill publica: Tempo de Fantasmas, primeira recolha de versos. Apresentando, diz estar o surrealismo «reduzido, como merece, às alegres actividades de dois ou três aventureiros». Os surrealistas respondem com o folheto: Do Capítulo da Probidade.

Propriamente dita (não contando a zona de transição entre uma atípica influência neo-realista – batuta Pinheiro Torres? – e os primeiros bosquejos experimentalistas), a aventura surrealista «ortodoxa» de Alexandre O’Neill pouco mais dura que o amor de um estudante: máximo quatro anos e as colagens d’A Ampola Miraculosa (1948), somando sim senhor – entre penúrias, angústias, vagabundagens, paixões de cair à cova –, uns tantos objectos-esculturas, alguns cadáveres-esquisitos e abaixo-assinados, cartas e repentes poemáticos. Tudo o que vem a escrever e publicar depois (incluindo Tempo de Fantasmas) não o considera ele «surrealista» – e disse.

Após o acne do achamento e a imediata sintonização com o novo espírito de rebeldia – que aliás ia ao encontro do seu pendor iconoclasta –, breve se enreda nas manigâncias e intrigas e conspirações grupais gerados pela bafienta erosão do tempo e do lugar, navega à bolina e a desnorte, cava um fosso com outras radicalidades porventura mais consequentes e parte enfim solto de obediências sacerdotais, nunca deveras assimiladas, rumo à autenticidade própria, ao auto-retrato, Certo que do surrealismo como ele o entendia « herdou certa tentação pela ambiguidade (fuga do real) e um formalismo que o leva, num ou noutro poema, a soluções de evidente mau gosto», ele o diz em 51 mas não é de levar à letra para todo o sempre, o poeta amuara. Outro, sem dúvida, é o sentido eu dá à vida ou à «vizinha» e se deixa ler no seu corpus poético, o regresso à base do «real», os escolhidos ou recuperados vultos tutelares (Tolentino, Bocage, Gomes Leal), o olhar (escarninho, lúcidomerda) sobre o ser Português no Portugal das três sílabas e dos três efes, também o percurso – em boa medida ditado pelo virtuosismo vocabular e pela agilíssima imaginação – que o conduz ao pãozinho da publicidade e lhe vem a contaminar, pungente embora no autocriticismo derisório, o aplicado rigor da oficina e a mundividência da inspiração.

     Caso arrumado, em surrealista (também como os outros) condenado a solitário? – Pois não senhor.
    
 Na «Biografia Cronológica de Alexandre O’Neill», estabelecida por Ana Maria Pereirinha nas Poesias Completas (ed. INCM, 1990), pode ler-se:


COLAGEM – V

1945-1950

Anos da «aventura surrealista», balizados por dois encontros fundamentais: em 1945 o encontro com Mário Cesariny, no café A Cubana, determinante para a formação dois anos mais tarde do Grupo Surrealista de Lisboa: em 1950 o encontro com Nora Mitrani. A partir deste último ganhará corpo o mito do amor puro, do «amor louco», nunca maculado pelo «sórdido amor mesa-de-família-cama-de-casal» contra o qual O’Neill se rebela num questionário acerca dos porquês da adesão ao Surrealismo inserido no catálogo da 1.ª exposição do G.S.L.

O'Neill com Nora Mitriani

     Cristalizado e imortalizado na beleza pungente de Um Adeus Português, na ternura infinita da elegia que são Seis Poemas Confiados à Memória de Nora Mitriani, será este o amor dorido do poeta. O homem real encontrará na vida outras concretizações do amor, todavia menos absolutas.

     Sublinhe-se: todavia e menos absolutas.

     Alexandre O’Neill projecta-se surrealista em Amor Absoluto.


À LAIA de P.S.

     Surrealismo, revolução surrealista, na feira cabisbaixa? Máxima liberdade para o Homem quando por cá se coarctava, para além da liberdade cívica, a própria livre expressão do pensamento e da vivência poética, também esta forçada em literário a camuflagens, alegorias, extrapolações simbólicas, audácias caligráficas? Que grandes transparentes iluminados em tal opacidade? Sendo como era a retaguarda, que vanguardas outras distintas das recreações do espírito e das guerrilhas do alecrim e da manjerona?

     Alexandre O’Neill – a sua agudeza crítica – nega-se a um surrealismo desde logo confinado a erupções de meneio artístico e sequer se presta a espectador ao postigo do abjeccionismo, proposição de Pedro Oom como paisagem adequada (empestada) a um impossível surrealismo cá: vejam a merda em que sufoca o sonhador espacializado. Com ele se deu o que se dá com os revolucionários sem revolução: acabam por se devorar, suicidados da sociedade – sendo os próprios a apresentar a certidão de óbito, fuligem de um incêndio onde, num breve encontro, puderam crepitar com outros.

     Os seus dentes todos, se desejavelmente «lavados e muitos» como os de Cesariny a rir «lá fora», foram, com o continuado tempo de fantasmas, ficando apodrecidos pela cárie da amargura. Vi-os eu com estes olhos a castigarem de cínica ironia – essa gabardina fingidamente protectora das chuvas ácidas que a muitos encharcavam, degradavam, no cinzento da pátria salazarenta e no depois do ledo engano que Abril abriu. Vê-los luzir seria terapêutico não fosse, no asséptico real quotidiano, penoso. Por ele. Por mim nós. Pelo dessorar de uma utopia revolucionária feita corpo visível noutras latitudes ou, em mais próximo e pequenino, por uma adeus (infinito) português que a língua – a literatura – por si só pode iludir mas lá travar não trava.


Prefácio de Vitor Silva Tavares in Alexandre O’Neill – Anos 70 Poemas Dispersos, Assírio & Alvim, 2.ª ed., Fevereiro de 2009.

27/09/2013

«Os Convencidos da Vida»...


OS CONVENCIDOS DA VIDA

                Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear.

                Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas,  críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força.

                Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios, eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista.

                Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas o espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?

                Os convencidos da vida só se isolam, por assim dizer, quando atingem uma certa cotação. As expressões «deixou de frequentar» ou «passou a frequentar» podem muito bem indicar, na desprevenida conversa quotidiana, subidas ou descidas de cotação ou, mais simplesmente, mudanças de estratégia do convencido da vida. O convencido que se isola não o faz por desgosto da sua pessoa, se não perderia o estatuto e a prática de convencido da vida e correria o risco de se tornar um homem vulgar. Fá-lo para, arteiramente, tomar as suas distâncias. Por isso, quando isolado, o convencido «vai soprando notícias», «vai fazendo constar»… Maneira de, ausente, estar presente. Não há, nesse estudado isolamento, nenhum Val de Lobos.

                No seu corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil.

                Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro. Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida – da sua, claro – para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal… sempre foi.

Alexandre O’Neill in “Uma Coisa em Forma de Assim”. pp.21-22, Presença, 1985.


05/08/2013

Diz aquele poema do 'mancho as noites e troco os dias'!...


Nada na mão
algo na v’rilha
remancho as noites

e troto os dias
entre tabaco
viris bebidas
fraco mas forte
de muitas vidas.

(Que eu já dormi
co’as duas mães
e as duas filhas
que vão à missa
com três mantilhas.)
Bebo contigo
cerveja, whisky
p’ra que se veja
mais rubra a crista.


                               Alexandre O’Neill

14/08/2012

...


Alexandre O'Neill, em Marco de Canaveses.

ALEXANDRE O’NEILL POR ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE

A meio do século passado já me apercebera, confusamente, que tanto ou mais do que eu estavam doentes as palavras. Uma terapêutica, a do alambique, levaria à meditação do branco sobre o branco, e nos melhores dos casos ao silêncio. A da ignição, se permitia revelações – nos teus bonitos, banais, olhos castanhos, o favor do seu «verde secreto» - carregava ainda as execráveis maiúsculas «Amor, Aventura, Poesia», e com elas a fantasmagoria do sagrado, a «vida mentirosa, mental». Outra começava em No Reino da Dinamarca, dura e feroz como a abrir nos fora dito: «diamante cruel». Supunha um diagnóstico: o destino como «solidão e mágoa», o «quotidiano “não”», a vida que «não vivemos», a vizinhança do grotesco normal, do vil decente, e ainda, contudo, o beijo do «jovem amor que recebeu/ mandado de captura ou de desejo». Sobretudo, par quem lia ou, pior, escrevia versos, mandava romper com «a poética poesia», afastar os «cabeleireiros de palavras, /pirotécnicos do estupor», lutar contra o «bonito» para fazer «bom». Noutra aparentemente diversa circunstância, quanta merecida e salutar bofetada nos dá O’Neill. Ir, ao contrário, buscar saúde à linguagem doente, no sarcasmo e no jogo, no sem-cerimónia e no impuro; e a meio, dizer serenamente algumas verdades decisivas, algumas emblemáticas: que o medo «tudo vai ter», ou o «remorso de todos nós». Mallarmé, – «a tristeza é que não há por lustro um», decerto sob o lustre – não se limitava, não se limita para nós, a reduzir o pobre mundo nosso às sobras do poema; diz-nos antes que a poesia pode e deve atravessar a realidade toda, até ao singular e insignificante, e ao impossível que lhe resiste, tipo mosca Albertina. Tornar-se livro o mundo, é tornar-se mundo o livro, e ainda, não coincidirem nunca. Com perdão das maiúsculas: dessa exigência, ética, Alexandre O’Neill é exemplo, que não segue só quem o imita.

António Franco Alexandre, “Editorial”, A Phala, nº88, Setembro, Assírio & Alvim, 2001.


«Grupo Surrealista de Lisboa»: (Em cima) Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira;
(Em Baixo): António Pedro, Alexandre O'Neill e João Moniz Pereira, 15 de Maio de 1948.

«Já não corro atrás de miragens»

Chega-se a um escritor como quem parte de viagem. Eu nunca tinha falado com Alexandre O’Neill quando fui entrevistá-lo. Decidira a entrevista de repente, sozinha, pensando que um homem que escrevia aquelas coisas ou era muito igual a elas ou muito diferente delas. Certas entrevistas a autores muito admirados acabam em verdadeiros naufrágios da imaginação. O que eu sabia, com a certeza das evidências, é que era um grande, um tremendo poeta. Como diria Bocage no Nicola, «zoilos tremei, posteridade és minha». Nunca me passou pela cabeça que aquele poeta não fosse visto como um dos maiores por quem ama a letra e a língua portuguesa. No entanto, sobejava na reputação de O’Neill, no país dos zoilos, uma incidência brejeira e uma nota satírica à Tolentino, como se o grande Alexandre se esgotasse no dichote e no mote, no fraseado dos espertinhos e na facilidade do trocadilho e da aliteração. Para mim, O’Neill era o lirismo lusitano na excelência do seu desapontamento. E havia os amigos que falavam dele de outro modo, confirmando a admiração. O José Cardoso Pires e o Vasco Pulido Valente sabiam do O’Neill e tinham dele a opinião que eu tinha, o homem era brilhante. Lá fui, e encontrei dentro das paredes da casa na Rua da Escola Politécnica uma grande solidão, espessa como o tempo, um grande cansaço de viver de costas voltadas ao vento. A entrevista foi longa, transformou-se numa conversa, a minha curiosidade de quem começa a escrever aliada à curiosidade de quem encontra quem goste de escrever. Tínhamos os dois o ódio da «vidinha» medida em colherinhas de café, como dizia o Eliot. Trocámos poetas admirados, e lá vinha o Eliot entre eles, que eu considerava intraduzível para português, sobretudo o Prufrock. Ele ofereceu-me uma edição brasileira que trazia o Prufrock numa tradução que considerava menos má, quase, quase boazinha. O O’Neill não se enganaria numa destas. Regressei com o meu Prufrock tropical e a minha admiração intacta, mesclada de tristeza. Alexandre O’Neill tinha falado da morte e eu apreciava o tema, que desagua em melancolias de crepúsculo. Não soube logo que aquela seria uma dessas famosas últimas entrevistas. Ou talvez tenha sabido. O que sei de certeza é que tenho pena de não poder conversar com ele hoje, quando o tempo também sobre mim passou e mais coisas aprendi. Nunca se lê o mesmo poema duas vezes e o sofrimento ajuda muito. Roubei a O’Neill muita coisa, que é o que os escritores fazem embora cubram a nudez do acto com a palavra influência. Em Portugal Eça e O’Neill são os meus mestres. O título da minha coluna no Expresso, «A Pluma Caprichosa», é de um verso dele, a pluma caprichosa com que o destino escreve. Lembro-me que quando ele morreu, o Vasco Pulido Valente e eu peregrinámos pelos bares de Lisboa e apanhámos uma bebedeira épica em homenagem ao falecido, que sabia o significado de uma «torpe alegria».


ENTREVISTA DE CLARA FERREIRA ALVES, (21-9-1985)

Alexandre O’Neill tem andado arredado dos lugares da fama. Se o homem se confessa solitário e «meio-morto», o poeta – presente em reedições e traduções – está mais vivo do que nunca…
                Quiseram dar-lhe uma medalha, a Ordem de Santiago e Espada. Respondeu, por escrito, que não aceitava porque se havia entre ele e o país uma dívida, era ele quem devia. «Sou contra, era a forma mais simpática de dizer não». Vive num prédio descascado da Rua da Escola Politécnica, rodeado de livros, desordem e solidão. É poeta, publicitário nas horas não vagas. Chama-se Alexandre O’Neill e tem 60 anos de idade.
                A quem o ignore, quem o tenha por «blagueur», quem o considere um dos «maiores poetas vivos portugueses», na fórmula habitual. Não sei se é, se não. Sei que gosto muito de alguns poemas dele, palavras «escorraçadas como pobres amantes», «de um tempo sem amor nenhum». Citei, utilizando fora do poema, palavras do poeta. Um poeta que não publica há algum tempo, apenas reedita. Uma segunda edição (Imprensa Nacional), das suas Poesias Completas, em Junho de 1984, revista e aumentada. E a reedição (Presença) de Uma Coisa em Forma de Assim, em Abril de 1985. Porquê a entrevista? Espanta-se. Ele, que nem sequer «está na moda»… consta dos manuais que os entrevistados têm de fazer coisas actuais, dar nas vistas. No caso do Alexandre O’Neill não é preciso, porque a sua pessoa é discreta a sua poesia não. Entrevemos nela uma qualidade que se vai tornando rara. Não é também para isso que servem as entrevistas? Para entrever? Pressentir?
 Alexandre Pinheiro Torres e Alexandre O'Neill,
 Amarante, 1944.

                No seu livro A Saca de Orelhas, de 1979, há um poema chamado precisamente «Entrevista». Começa assim: «diz-lhe que estás ocupado / a entrevistar-te a ti mesmo / mesmo porque se não / o pões desde já porta / fora […]». Tem raiva às entrevistas?
                Não, não! Esse poema fazia parte de um filão de poemas que eu estava a explorar na altura, um contínuo… não tenho qualquer preconceito contra as entrevistas.
                De qualquer modo, não tem dado muitas entrevistas na sua vida. Como poeta, o que é que tem andado a fazer?
                Poemas, poemazinhos, e provavelmente vou publicar outro livro, para o ano que vem ou coisa assim.
                E os poemazinhos onde é que estão? Na gaveta, prontos a serem editados? Os seus poemas são de gestação rápida ou lenta?
                Estão a repousar. É fazê-los, guardá-los e esquecê-los. Mais tarde volto a pegar neles, porque o mais difícil é saber se se aguentaram ou não. A gestação é rápida, faço um poema em dois ou três dias, e só depois do pousio faço as modificações, o tal ofício de marceneiro, para usar uma imagem gasta.
                Não vai a lançamentos de livros (dos outros), não frequenta «soirées» nem tertúlias, não aparece em festas nem recepções… na televisão ninguém o vê há muito tempo, na rádio tão pouco se ouve alguma vez a sua voz. Não escreve longos artigos de opinião em jornais. Isolamento deliberado, reacção contra o «establishment» literário?
                Não saio quase nunca. Estou na segunda linha, não tenho nada contra o «establishment», continuo a fazer poesia e é em relação à minha poesia que se cometeram alguns exageros. O meu objectivo nunca foi fazer pouco, diminuir, satirizar, embora os poemas emanem de um certo número de trivialidades.
                Numa entrevista ao JL, ao Assis Pacheco, publicada há uns anos, você dizia que estava tão doente que nem podia caminhar contra o vento…
                Sim, sim, eu tive um enfarte há nove anos e o meu médico proibiu-me de caminhar contra o vento, aconselhando a virar-me e caminhar sempre no sentido do vento.
                E desde aí, ficou sempre a favor do vento, metaforicamente falando? Nos seus primórdios artísticos, gostava muito de caminhar contra o vento…
                Estou bastante mais a favor do vento, sim, o que não quer dizer que seja uma imagem de conformismo.
                Ultimamente voltou a falar-se na sua doença…
                Já estou meio morto. O ano passado tive outra vez problemas de saúde que me deixaram abalado. A partir daí tenho que inventar o meu próprio interesse pelas coisas. Alheei-me um bocado de coisas inutilmente cansativas.
                Alheou-se da vida? A vida de que é feita, afinal, a sua poesia?
                A vida interessa-me, o que não me interessa é a vidinha.
                A vidinha?
                Videirar, ou videirunha. O «viviter» francês, ou seja, ir vivendo.
                Desiludido consigo com os outros? Nada o faz correr?
                Já não corro atrás de miragens, como todos os jovens bem-intencionados. E quase não posso correr, tenho uma ligeira oscilação quando ando, até uso uma bengalinha.
                Dá um certo «panache»…
                Dá, dá imenso. Posso oferecer-lhe um café, sumo de laranja?
                Nada de bebidas alcoólicas, portanto. O whisky, a cerveja, que apareciam nalguns poemas…
                Só posso beber um copo por dia, de vinho branco ou tinto.
                Sempre me deu a impressão que gostava de cumprir itinerários lisboetas que incluíam os copos, os amigos… com que se entretém?
                Escrevo, leio. Até tenho um fraco que estou a ver se mudo, que é aquela crónica no Jornal de Letras, quero ver se deixo de a escrever, porque é uma espécie de rom-rom.
A crónica, exercida muito tempo, mata qualquer um, nunca pensou escrever um romance, um romance a sério, inteiro, e não pequenas prosas, textos dispersos?
Já escrevi, até escrevi seis, só que não os publiquei. Como dizia o Aragon, quando um cretino é automático é provável que também o romance seja cretino.
Então porque é que não se abalançou ao romance? Seria normal, dada a sua tremenda facilidade verbal, o seu gosto das palavras.
Romance? Nem pensar! Acho que não tenho jeito para isso. Escrevi um livro de crónicas. E depois, há muita concorrência.
Uma vez disse, publicamente, que não escrevia um romance porque não estava para contar a vidinha, que é o que fazem muitos romancistas portugueses. No entanto, o Eu, na sua poesia, é forte. O pendor autobiográfico, o inventário interior. Que Eu é esse, o do poeta? É, ainda, o do homem?
O Eu da poesia é o meu Eu crítico, o meu Eu inventado, embora esteja por vezes bastante perto do outro.
Tem o vício de escrever?
Realmente tenho. E é cada vez mais difícil, porque se vai ganhando uma certa consciência da dificuldade de escrever.
É metódico? Tem rituais de escrita? É capaz de se levantar a meio da noite para ir escrever?
Faço na cabeça e então é que escrevo. Não tenho método nenhum, mas levanto-me muitas vezes a meio da noite para ir ao papel, para não esquecer no dia seguinte.
Em criança, como é que era? Escrevia?
Era um chato, uma tristeza. Estava quase sempre em casa, era filho de gente que não me deixava sair à rua. Era um menino fechado, um bocado triste, e passava muito tempo à janela, bem perto daqui por sinal, na Rua da Alegria. É curioso porque morava na Rua da Alegria e ela provocava-me um sentimento de tristeza, quando via subir as carroças com os trabalhadores de aspecto cansado… interessava-me o espectáculo das pessoas.
A sua infância não repassou para a poesia.
Sim, é verdade, talvez porque não foi uma infância feliz, nem infeliz. Foi um tempo cinzento, sem relevos, não o distingo de outros.
Na adolescência, se continuava fechado e espectador de janela, devia ler muito. E escrever poemas de adolescência.
A partir dos quinze comecei a ler. Lia Júlio Verne, aqueles livros da altura que todos os rapazes liam. E escrevia verso.
Recordações particulares?
Andei em colégios particulares. Lembro-me que quando fui para o liceu, a partir do 2.º ano começou a segregação de sexos, meninos dum lado e meninas do outro. Uma chatice!
Já se interessava pelas mulheres?
Tenho alguma bossa de femeeiro? Bom, do liceu fui para a Escola Náutica, queria ser piloto, achava um modo de vida simpático. Só que durante as férias do 1.º ano fui à capitania de Lisboa pedir a cédula marítima para navegar como praticante de piloto sem carta e aí eles disseram-me: nem pense nisso, você tem uma miopia desgraçada! Arrumei o curso. É preciso ver que, burocraticamente, não havia inspecção médica para entrar para a Escola Náutica. Tinha que fazer a prova de que sabia nadar, e que via para nadar, e pronto. Por isso não fui apanhado. Até já escrevia a propósito: «Já andei para marinheiro mas pus óculos e fiquei em terra.»
Deve gostar do mar, no entanto ele quase nunca aparece na sua poesia, ou na prosa. Aparece o azul, mas é o azul do céu, aliás uma cor quase obsessiva em certos poemas…
Talvez haja aí um certo recalcamento, por não conseguir fazer do mar a minha profissão. O azul é, de facto, o do céu.
Já deu por si a analisar os seus poemas?
Oh, sim. Os poemas iniciais acho-os sujamente quotidianos, demasiado comprometidos com uma poesia que não é autobiográfica mas finge sê-lo. Acho, assim, uma coisa…
Por volta de 47 e dos seus 20 e poucos anos, já andava metido na fundação do Grupo Surrealista de Lisboa. Devia andar pelos cafés, as tertúlias, ser politicamente contra. Quando é que conheceu o Cesariny?
Conheci-o através do Lopes Graça que tinha um grupo coral chamado «Amizade», ligado aos movimentos juvenis da política. O Cesariny era membro do desdobramento juvenil desse coral. Nos andávamos pelo Barreiro, pelas colectividades, a cantar em grupo. Politicamente claro que era contra, era MUD juvenil.
O surrealismo, claro, era de importação. Mas os surrealistas já existiam há muitos anos. Porque é que estavam tão atrasados? O Cesariny já devia estar mais avançado do que vocês nesse campo…
Não, não. Fui eu que comprei a História do Surrealismo do Maurice Nadeau e disse que tínhamos de fazer uma coisa daquelas: Foi uma descoberta de 1948, através do livro e da antologia que ele publicou. Foi um alvoroço, o surrealismo surgia-nos exaltante e libertador. O Cesariny fez a descoberta na altura, embora já escrevesse umas coisas com muito humor, que eram uma «charge» ao neo-realismo. O nosso surrealismo era, aliás, uma reacção ao neo-realismo da época.
E que é que achavam do neo-realismo e dos seus mentores?
Uma chateza! O Mário Dionísio, o Cochofel! Na poesia não havia quase ninguém. Havia o Joaquim Namorado, que era fanaticíssimo. Havia até uma piada que se contava a propósito do Cochofel. Dizia-se que quando chegasse a revolução, o Cochofel chamava a criada e gritava: «Maria, traz a bomba!» E depois da criada, toda ataviada em renda, lhe trazer a bomba numa bandeja de prata, ele atirava a bomba pela janela… afinal de contas, o Cochofel até era um bom tipo.
Nesta sala há muitos livros em grande desordem. O que é que jaz nesta desarrumação?
Coisas muito boas. E tenho mais estantes assim, pelo resto da casa. Há de tudo, poetas americanos, franceses…
Poetas ingleses, não? É estranho, mas quando reli outro dia dois ou três poemas seus, havia um vestígio de Eliot, um afloramento de Prufrock.
Tenho-o neste momento à cabeceira, embora não possa dizer que seja um autor de minha cabeceira. Comecei-o a ler tarde, mais tarde do que é costume. Por volta dos 26, 27 anos.
Onde eu noto um paralelismo acentuado entre a poesia de O’Neill e a de Drummond de Andrade é na recuperação, num certo tratamento do que é pueril, transformando-o em sublime. Uma certa captação do real. Já sei que detesta que lhe apontem influências, mas é uma herança que não está em condições de negar, parece-me. Essa e a do Manuel Bandeira…
É verdade e também é verdade que nunca se disse publicamente em Portugal o quanto o surrealismo português deve a Drummond de Andrade. E ao Bandeira, que tenho a fraqueza de considerar um bom poeta.
Fraqueza?
Dele se disse que é um grande poeta menor.
E acha que esses rótulos dos sacerdotes da crítica metem na poesia devem influenciar a sua opinião? O que é, afinal, um grande poeta menor? Não é um rótulo?
Sim, tem razão, não passa de um rótulo, embora tenha vindo de uma pessoa amiga. Para mim o Bandeira é simplesmente um grande Poeta. Se há poetas menores, ele é dos maiores.
Acha que existem bons críticos de poesia em Portugal?
É possível, mas nunca vi. Às vezes há um acerto, é tudo.
Parece-me que está a jogar à defesa, a remeter… Ainda o «par delicatesse j’ai perdu ma vie»?
«Delicatesse» não há. Hoje passo tudo pela refinadora, é diferente.
Depura as palavras, as ideias? A espontaneidade (aparente) da sua poesia soa a falso. Quando calha, alia magistralmente a arte e a técnica, ou busca essa precisão, trabalhando o verso?
O verso é muito trabalhado, é um processo lento de dizer uma coisa. E agora estou cada vez mais exigente. É um trabalho minucioso, e mesmo quando parece desataviado, é um desatavio voluntário. Não acredito na poesia… bom… vamos lá a ser modestos… o que quero dizer é que a grande, a boa poesia, percebe-se logo. Desconfio do que é fechado, hermético, chamemos-lhe assim.
                Já se emocionou com um poema seu, muito depois de o ter escrito?
                Tantas vezes! Há poemas privilegiados em que isso acontece com certa frequência. Também acontece o contrário, aqueles que são falhanços. Há um poema sobre fogos-postos de que gosto muito, considero-o um dos mais bem acabados que escrevi até hoje. E emociono-me.
                O que o emociona é, em última análise, a forma, não o conteúdo. E a memória, a recordação de momentos?
                Sim, emociono-me por estar bem feito. Claro que há poemas que têm a ver com memórias de situações que não tinham nada a ver com o poema em si mesmo, e são poemas de amor. Também aí pode existir emoção.
                Saindo da emoção para o calão. Muitas vezes lhe é atribuído um conhecimento profundo da linguagem lisboeta de rua, do «bas-fond». Chegou mesmo a inventar palavras de calão, como Onassis, para dizer dinheiro. Frequentava os lugares verdadeiros dessa linguagem? Era uma pessoa da noite?
                Era mais fama do que outra coisa, embora essa do Onassis seja verdade, também não pegou. Nunca fui pessoa da noite, frequentador de tabernas ou alfurjas, e os que as frequentam devem estar mais dentro do assunto do que eu.
                Acredita em gerações?
                Não acredito.
                O tempo é uma das abstracções mais terríveis que permitem os seus versos. O que é, aos 50 anos, o tempo? A sua passagem?
                Até há pouco tempo não dei pela passagem do tempo, fui vivendo, fiz do corpo alavanca sem pensar no futuro. Há pessoas que passam a vida a pensar na reforma, aos 20 anos já pensam na reforma, aguentam empregos terríveis para chegarem lá. Há muita gente com essa mentalidade de funcionário público, nunca foi o meu género. Também nunca fui poeta de pensar no meu currículo. Recusando estas coisas, cheguei aqui.
Acha que actual poesia portuguesa foi invadida pelo academismo?
Nitidamente. Os académicos apossaram-se da poesia portuguesa e puseram-na ao serviço do currículo.
Faz sentido a frase de que Portugal é um país de poetas?
Nunca fez sentido para mim. A não ser se se identificar poeta com distraído, lunático. Lá que somos um país de lunáticos, somos. No outro sentido, nada.
Lê poetas portugueses contemporâneos?
Poucos. Só dois ou três. O João Miguel Fernandes Jorge, o Herberto Helder, o Eugénio de Andrade.
Nunca se sentiu injustiçado, em relação ao seu valor poético? Não acha que o puseram de parte apesar da sua qualidade?
Sei que não estou na moda. Pode ser sem intenção, talvez certas ideias tenham sido, por mim, mal desenvolvidas ou expressas, e por isso não foram compreendidas e tornaram-se desinteressantes para os outros.
Será que falhou, aí, um certo trabalho de auto-promoção? A moda precisa da auto-promoção hábil, do «marketing»
Não quero fazer acusações. As pessoas que me lêem gostam dos que lêem e algumas têm surpresas agradáveis: olha, aquele fulano é um poeta! E ficam a conhecer-me de novo.
Como é que é conhecido?
Como «blagueur». Um tipo com graça. E é o contrário porque se graça existe, ela é um bocado amarga. Até me arrumaram apressadamente com o Tolentino, o Junqueiro.
Quem o arrumou?
A crítica. Voltamos, simpaticamente, à crítica.
Arrumaram-no bem ou mal, em sua opinião?
O Tolentino era um grande poeta, não me importava de ser parecido com ele mas não sou. No tempo da crítica impressionista havia a mania de estabelecer parentescos. As pessoas tinham de ter pais, avós, ascendentes e descendentes.
Prefere ser bastardo ou filho legítimo? Se tivesse que escolher um «pai» quem é que escolheria? Cesário Verde?
Gostava do Cesário, sem dúvida.
Digo-lhe duas palavras e quero que responda o que lhe vier à cabeça, automaticamente. Intertextualidade…
É muito importante saber praticá-la inteligentemente.
… psicanálise…
Não acredito muito. É acomodatícia, o seu papel foi acomodar as pessoas a uma sociedade intragável. À parte isso, deve ter tido certo valor terapêutico.
A sociedade é intragável?
Sim, porque nos propõe fazer consumir coisas que, conscientemente, não faríamos nem consumiríamos. A vida na cidade, os autocarros a transbordar, os refrescos de anúncio…
Essa é engraçada vinda de alguém que ajuda a vender coisas, que inventa mensagens de consumo. Você trabalha em publicidade. Já se viu a consumir algo que tivesse proposto publicitariamente?
É boa! (Risos). Não, acho que não.
Como muita gente que não pode viver exclusivamente da escrita, teve que se arrimar a uma profissão onde as palavras importam. Porque escolheu a publicidade e não os jornais por exemplo?
Não sei como fui lá parar mas fui. Fiz-me aprendiz de publicidade porque era uma maneira pouco trabalhosa de ganhar para o sustento. Talvez fosse essa a razão. Já lá vão 30 anos.
Não será essa mentalidade semelhante, afinal, à do funcionário público a sonhar com a reforma? Você sonhava com o fim do mês?
Não. Com o fim do mês sonha toda a gente. E mudei tantas vezes de empresa e de trabalho, de forma tão livre, que nunca tive a proposta da reforma no final do túnel.
Tem ou não direito a uma reforma?
Deve dar para morrer alegremente.
Ganhou dinheiro com a poesia?
Sim, em Itália, e aqui, na Imprensa Nacional.
O que é mais importante: a relação com os outros ou com as palavras?
A relação com as palavras é fundamental e a relação com os outros depende da relação com as palavras. Mas não sacrifico um jantar com um amigo para acabar um soneto.
E um jantar social?
Nunca.
Não o convidam?
Não vou.
Tem muitos amigos?
Não, para aí um ou dois.
Podemos falar de solidão?
A procurada é boa, a não procurada às vezes é chata.
Faz parte da mitologia de criação artística, a solidão…
Estar sozinho não é a solidão. Às vezes está-se sozinho porque se quer e isso pode dar um bom monólogo, uma meditação. O facto de eu viver só é que, às vezes, é chato e vou até ao barbeiro da esquina só para falar com alguém.
Não usa o telefone? Nunca ficou agarrado ao telefone, à espera que tocasse, a quebrar uma ansiedade solitária?
Já fiquei, mas ele não tocou.
O que é a velhice?
Não é nada, não a sinto a não ser nas limitações que o estado de doença me impõe. Com alguns cuidados evita-se.
E o medo da morte?
Curiosidade, como é que isto tudo vai desfechar.
Não se detecta no poeta O’Neill qualquer misticismo, panteísmo, nem mácula de sentimento religioso. Porquê? É um ateu puro e duro?
Não possuo qualquer sentimento religioso. Não sou ateu porque nem sequer me defino em relação a uma crença qualquer.
Teve uma educação religiosa tradicional, católica, com missas e comunhões?
Primeira comunhão, comunhão solene, baptismo, tudo. Não sou contra, acho que até fez bem. Não se tornou repressiva e aprendi a detestar a hipocrisia.
Já esteve à beira da morte. Apelou a quê ou a quem?
Ao bom senso. Lembro-me que senti que o universo minguava, as preocupações do dia a dia desocupavam a cabeça e ficou, só, a espera… Mais um bocadinho de vida, ou então de morte.
Acredita na imortalidade literária? E se não acredita em que é que acredita?
Não acredito. Acredito naquilo que escrevo.
Isso confere-lhe algum sentimento de superioridade? Já se sentiu muito inteligente, ou até genial?
Nenhuma superioridade, mas já me senti muito inteligente. Genial, nunca. Se posso fazer a classificação de mim mesmo então sou o grande poeta menor a que me referi há pouco.
Já utilizou a sua facilidade verbal contra alguém, numa disputa? Ou para ferir alguém?
Ao longo da vida, tenho-o feito e algumas vezes com arrependimento. Dizer uma graça pode significar uma crueldade para com os outros.
Componente lírica, componente satírica, qual a mais forte?
Ambas são fortíssimas. Uma vez um padre jesuíta, o padre João Maia, escreveu que eu tinha um lirismo envergonhado.
Leio-o há muitos anos. Agora, parece-me só um entrevistado envergonhado. É capaz de me dizer que se acha um bom, um grande poeta?
Acho! Pois sou, sou um bom poeta.
Pagou algum preço para chegar aqui?
Incomunicação a nível do quotidiano.
Tenho na minha frente um publicitário incomunicado e um satírico triste. Como é isto?
A lei. Os que funcionam no reino do riso, do humor, são todos muito tristes. Não conheço nenhum humorista que seja alegre na vida de todos os dias, exactamente por ser humorista.
Vai ao cinema?
Rarissimamente. O cinema foi uma arte que se traiu, talvez por ter de ser também uma indústria. Traiu o que prometia com um Griffith, com tantos outros. O Spielberg, aquele dos Salteadores e do ET, apresenta um produto comercial muito bem vendido e muito imaginativo e não mais.
E televisão, vê? Viu os debates políticos?
Vi. Vejo televisão. Achei aqueles debates melancólicos.
Fé política, alguma?
Tenho uma fezada. Tendo para uma coisa que todos execram – esperemos que se diga execram – e que é o PS. Com todos os seus defeitos. Até fiz um «slogan» que andou por aí: ele não merece, mas vota no PS.
Diga outro «slogan» famoso cuja paternidade lhe pertença.
Há mar e mar, há ir e voltar.
Devia ter ganho uma fortuna com esse…
Devia mas não ganhei. Estou a fazer diligências junto da Sociedade de Autores para ver se ao menos de 1983 para cá, consigo alguns direitos. O «slogan» até já consta de um dicionário de provérbios portugueses. Mais uma prova de como eu sou desarrumado e nunca penso nas consequências, a não ser quando escrevo.
A tradução da sua poesia em italiano como foi, acompanhou-a de perto?
Apareci numa prestigiosa colecção da Eunaudi, que tinha o Cavafy, o João Cabral de Melo Neto… mas a tradutora, a certa altura, não suportou que eu interferisse e acabou por traduzir «o dito está dito» por «il díto resta díto». Este «díto» não era o meu «dito» mas «dedo», veja-se a confusão. Noutro ponto, onde eu dizia «não deve a literatura ao absinto em quantidade mais que ao tinto», ela traduziu tinto por tinta de parede. A do dedo era óptima, cada vez que eu ia a Itália cumprimentavam-me com o dedo.
Tem filhos?
Um de 25 anos e um de 9, que é o meu «neto».
O mais velho gosta do seu trabalho poético?
Lê e gosta. E gosta que eu lhe leia certas coisas. Outro dia queria por força que lhe lesse a Morte à Tarde, do Hemingway.
Foi você que lhe passou os livros para as mãos, na adolescência? O Hemingway, entre outros?
Sim, passei-lhe o Cabral de Melo Neto, que ainda hoje o faz ficar espantado.
Gosta de Hemingway, hoje?
Conforme a fase. Tenho um poema em que digo género Hemingway, fase kitsch. O Velho e o Mar acho um horror. Mas tem coisas muito boas. A aventura, o cabotismo, são recuperados.
Era capaz de dar um tiro na cabeça, como ele deu, quando achasse que já não conseguia? O suicídio é uma vocação eminentemente poética, pensa o vulgo…
Não vejo grande mal em uma pessoa poder contribuir para a sua morte decisivamente, quando nada resta a fazer. O Koestler e a mulher fizeram isso. Acho que era capaz, sim.
Há na sua poesia, disfarçadamente às vezes, outras não, uma preocupação da justiça social, com o verso a servir de factor corrector dessa situação. Os pobres incomodam-no, entristecem-no?
Tenho má consciência. Dou sempre esmola. Pode ser o maior bêbado, dou sempre esmola para os copos dele, acho que tem direito aos seus próprios vícios e a alimentá-los.
Estas perguntas parecem «fait divers» mas faço-as porque quando no romance do Kundera, de que agora todos falam e todos retiram citações e ilações, ele teoriza sobre o «kitsch». Os portugueses acharam fabulosa essa teorização do «kitsch» mas, na sua poesia, você fez notáveis comentários do «kitsch» nacional. E tratou-os a preceito…
Não me faça um especialista do «kitsch». O «kitsch» começa por ser uma hipocrisia e acaba por ser um subproduto de uma sociedade que se apieda de si mesma, em demasia. Entre o que se deve sentir e o que se sente, às vezes, vai uma grande distância. E depois o «kitsch» é a fancaria. Como eu escrevi, é ter o Guernica que liga com as cortinas… isso não!
Nunca teve crises de autopiedade? Não as deixou penetrar a poesia?
Então não tive?
Humor negro: diga um epitáfio que gostasse para si mesmo. Mão me diga que nunca fez nenhum, preparado para aquele momento bem português em que morre um artista e lhe caem em cima os vampiros das homenagens, dos amigos, dos depoimentos, das desculpabilizações, dos discursos e dos engrandecimentos. A gloríola – a palavra é sua –, em Portugal, é muito póstuma.
Não gostava nada que me caíssem em cima, nem que dissessem nada sobre mim. Epitáfio… eu até tinha um:

Aqui jaz Alexandre O’Neill
Um homem que dormiu
Muito pouco
Bem merecia isto

Fiz este epitáfio aos 30 anos.


in A Phala, Suplemento, nº88 de 2001
Alexandre O'Neill e António Tabucchi (fotografia de Noémia Delgado)