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Alexandre O'Neill, em Marco de Canaveses. |
ALEXANDRE O’NEILL POR ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE
A meio do século passado já me
apercebera, confusamente, que tanto ou mais do que eu estavam doentes as
palavras. Uma terapêutica, a do alambique, levaria à meditação do branco sobre
o branco, e nos melhores dos casos ao silêncio. A da ignição, se permitia
revelações – nos teus bonitos, banais, olhos castanhos, o favor do seu «verde
secreto» - carregava ainda as execráveis maiúsculas «Amor, Aventura, Poesia», e
com elas a fantasmagoria do sagrado, a «vida mentirosa, mental». Outra começava
em No Reino da Dinamarca, dura e
feroz como a abrir nos fora dito: «diamante cruel». Supunha um diagnóstico: o
destino como «solidão e mágoa», o «quotidiano “não”», a vida que «não vivemos»,
a vizinhança do grotesco normal, do vil decente, e ainda, contudo, o beijo do
«jovem amor que recebeu/ mandado de captura ou de desejo». Sobretudo, par quem
lia ou, pior, escrevia versos, mandava romper com «a poética poesia», afastar
os «cabeleireiros de palavras, /pirotécnicos do estupor», lutar contra o
«bonito» para fazer «bom». Noutra aparentemente diversa circunstância, quanta
merecida e salutar bofetada nos dá O’Neill. Ir, ao contrário, buscar saúde à
linguagem doente, no sarcasmo e no jogo, no sem-cerimónia e no impuro; e a
meio, dizer serenamente algumas verdades decisivas, algumas emblemáticas: que o
medo «tudo vai ter», ou o «remorso de todos nós». Mallarmé, – «a tristeza é que
não há por lustro um», decerto sob o lustre – não se limitava, não se limita
para nós, a reduzir o pobre mundo nosso às sobras do poema; diz-nos antes que a
poesia pode e deve atravessar a realidade toda, até ao singular e
insignificante, e ao impossível que lhe resiste, tipo mosca Albertina.
Tornar-se livro o mundo, é tornar-se mundo o livro, e ainda, não coincidirem
nunca. Com perdão das maiúsculas: dessa exigência, ética, Alexandre O’Neill é
exemplo, que não segue só quem o imita.
António Franco
Alexandre, “Editorial”, A Phala, nº88, Setembro, Assírio & Alvim, 2001.
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«Grupo Surrealista de Lisboa»: (Em cima) Mário Cesariny, José-Augusto França e Vespeira; (Em Baixo): António Pedro, Alexandre O'Neill e João Moniz Pereira, 15 de Maio de 1948. |
«Já não corro atrás de miragens»
Chega-se a um escritor como quem parte de viagem. Eu nunca tinha falado
com Alexandre O’Neill quando fui entrevistá-lo. Decidira a entrevista de
repente, sozinha, pensando que um homem que escrevia aquelas coisas ou era muito
igual a elas ou muito diferente delas. Certas entrevistas a autores muito
admirados acabam em verdadeiros naufrágios da imaginação. O que eu sabia, com a
certeza das evidências, é que era um grande, um tremendo poeta. Como diria
Bocage no Nicola, «zoilos tremei, posteridade és minha». Nunca me passou pela
cabeça que aquele poeta não fosse visto como um dos maiores por quem ama a
letra e a língua portuguesa. No entanto, sobejava na reputação de O’Neill, no
país dos zoilos, uma incidência brejeira e uma nota satírica à Tolentino, como
se o grande Alexandre se esgotasse no dichote e no mote, no fraseado dos
espertinhos e na facilidade do trocadilho e da aliteração. Para mim, O’Neill
era o lirismo lusitano na excelência do seu desapontamento. E havia os amigos
que falavam dele de outro modo, confirmando a admiração. O José Cardoso Pires e
o Vasco Pulido Valente sabiam do O’Neill e tinham dele a opinião que eu tinha,
o homem era brilhante. Lá fui, e encontrei dentro das paredes da casa na Rua da
Escola Politécnica uma grande solidão, espessa como o tempo, um grande cansaço
de viver de costas voltadas ao vento. A entrevista foi longa, transformou-se
numa conversa, a minha curiosidade de quem começa a escrever aliada à
curiosidade de quem encontra quem goste de escrever. Tínhamos os dois o ódio da
«vidinha» medida em colherinhas de café, como dizia o Eliot. Trocámos poetas
admirados, e lá vinha o Eliot entre eles, que eu considerava intraduzível para
português, sobretudo o Prufrock. Ele ofereceu-me uma edição brasileira que
trazia o Prufrock numa tradução que considerava menos má, quase, quase
boazinha. O O’Neill não se enganaria numa destas. Regressei com o meu Prufrock
tropical e a minha admiração intacta, mesclada de tristeza. Alexandre O’Neill
tinha falado da morte e eu apreciava o tema, que desagua em melancolias de
crepúsculo. Não soube logo que aquela seria uma dessas famosas últimas
entrevistas. Ou talvez tenha sabido. O que sei de certeza é que tenho pena de
não poder conversar com ele hoje, quando o tempo também sobre mim passou e mais
coisas aprendi. Nunca se lê o mesmo poema duas vezes e o sofrimento ajuda
muito. Roubei a O’Neill muita coisa, que é o que os escritores fazem embora
cubram a nudez do acto com a palavra influência. Em Portugal Eça e O’Neill são
os meus mestres. O título da minha coluna no Expresso, «A Pluma Caprichosa», é de um verso dele, a pluma
caprichosa com que o destino escreve. Lembro-me que quando ele morreu, o Vasco
Pulido Valente e eu peregrinámos pelos bares de Lisboa e apanhámos uma
bebedeira épica em homenagem ao falecido, que sabia o significado de uma «torpe
alegria».
ENTREVISTA DE CLARA FERREIRA ALVES, (21-9-1985)
Alexandre O’Neill tem andado
arredado dos lugares da fama. Se o homem se confessa solitário e «meio-morto»,
o poeta – presente em reedições e traduções – está mais vivo do que nunca…
Quiseram
dar-lhe uma medalha, a Ordem de Santiago e Espada. Respondeu, por escrito, que
não aceitava porque se havia entre ele e o país uma dívida, era ele quem devia.
«Sou contra, era a forma mais simpática de dizer não». Vive num prédio
descascado da Rua da Escola Politécnica, rodeado de livros, desordem e solidão.
É poeta, publicitário nas horas não vagas. Chama-se Alexandre O’Neill e tem 60
anos de idade.
A
quem o ignore, quem o tenha por «blagueur», quem o considere um dos «maiores
poetas vivos portugueses», na fórmula habitual. Não sei se é, se não. Sei que
gosto muito de alguns poemas dele, palavras «escorraçadas como pobres amantes»,
«de um tempo sem amor nenhum». Citei, utilizando fora do poema, palavras do
poeta. Um poeta que não publica há algum tempo, apenas reedita. Uma segunda
edição (Imprensa Nacional), das suas Poesias
Completas, em Junho de 1984, revista e aumentada. E a reedição (Presença)
de Uma Coisa em Forma de Assim, em
Abril de 1985. Porquê a entrevista? Espanta-se. Ele, que nem sequer «está na
moda»… consta dos manuais que os entrevistados têm de fazer coisas actuais, dar
nas vistas. No caso do Alexandre O’Neill não é preciso, porque a sua pessoa é
discreta a sua poesia não. Entrevemos nela uma qualidade que se vai tornando
rara. Não é também para isso que servem as entrevistas? Para entrever?
Pressentir?
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Alexandre Pinheiro Torres e Alexandre O'Neill, Amarante, 1944. |
No seu livro A Saca de Orelhas, de 1979, há um poema chamado precisamente
«Entrevista». Começa assim: «diz-lhe que estás ocupado / a entrevistar-te a ti
mesmo / mesmo porque se não / o pões desde já porta / fora […]». Tem raiva às
entrevistas?
Não,
não! Esse poema fazia parte de um filão de poemas que eu estava a explorar na
altura, um contínuo… não tenho qualquer preconceito contra as entrevistas.
De qualquer modo, não tem dado muitas
entrevistas na sua vida. Como poeta, o que é que tem andado a fazer?
Poemas,
poemazinhos, e provavelmente vou publicar outro livro, para o ano que vem ou
coisa assim.
E os poemazinhos onde é que estão? Na
gaveta, prontos a serem editados? Os seus poemas são de gestação rápida ou
lenta?
Estão
a repousar. É fazê-los, guardá-los e esquecê-los. Mais tarde volto a pegar
neles, porque o mais difícil é saber se se aguentaram ou não. A gestação é
rápida, faço um poema em dois ou três dias, e só depois do pousio faço as
modificações, o tal ofício de marceneiro, para usar uma imagem gasta.
Não vai a lançamentos de livros (dos
outros), não frequenta «soirées» nem tertúlias, não aparece em festas nem
recepções… na televisão ninguém o vê há muito tempo, na rádio tão pouco se ouve
alguma vez a sua voz. Não escreve longos artigos de opinião em jornais.
Isolamento deliberado, reacção contra o «establishment» literário?
Não
saio quase nunca. Estou na segunda linha, não tenho nada contra o
«establishment», continuo a fazer poesia e é em relação à minha poesia que se
cometeram alguns exageros. O meu objectivo nunca foi fazer pouco, diminuir,
satirizar, embora os poemas emanem de um certo número de trivialidades.
Numa entrevista ao JL, ao Assis Pacheco,
publicada há uns anos, você dizia que estava tão doente que nem podia caminhar
contra o vento…
Sim,
sim, eu tive um enfarte há nove anos e o meu médico proibiu-me de caminhar
contra o vento, aconselhando a virar-me e caminhar sempre no sentido do vento.
E desde aí, ficou sempre a favor do vento,
metaforicamente falando? Nos seus primórdios artísticos, gostava muito de
caminhar contra o vento…
Estou
bastante mais a favor do vento, sim, o que não quer dizer que seja uma imagem
de conformismo.
Ultimamente voltou a falar-se na sua doença…
Já
estou meio morto. O ano passado tive outra vez problemas de saúde que me
deixaram abalado. A partir daí tenho que inventar o meu próprio interesse pelas
coisas. Alheei-me um bocado de coisas inutilmente cansativas.
Alheou-se da vida? A vida de que é feita,
afinal, a sua poesia?
A
vida interessa-me, o que não me interessa é a vidinha.
A vidinha?
Videirar,
ou videirunha. O «viviter» francês, ou seja, ir vivendo.
Desiludido consigo com os outros? Nada o faz
correr?
Já
não corro atrás de miragens, como todos os jovens bem-intencionados. E quase
não posso correr, tenho uma ligeira oscilação quando ando, até uso uma
bengalinha.
Dá um certo «panache»…
Dá,
dá imenso. Posso oferecer-lhe um café, sumo de laranja?
Nada de bebidas alcoólicas, portanto. O
whisky, a cerveja, que apareciam nalguns poemas…
Só
posso beber um copo por dia, de vinho branco ou tinto.
Sempre me deu a impressão que gostava de
cumprir itinerários lisboetas que incluíam os copos, os amigos… com que se
entretém?
Escrevo,
leio. Até tenho um fraco que estou a ver se mudo, que é aquela crónica no Jornal de Letras, quero ver se deixo de
a escrever, porque é uma espécie de rom-rom.
A crónica, exercida muito tempo, mata qualquer um, nunca pensou
escrever um romance, um romance a sério, inteiro, e não pequenas prosas, textos
dispersos?
Já escrevi, até escrevi seis, só
que não os publiquei. Como dizia o Aragon, quando um cretino é automático é provável
que também o romance seja cretino.
Então porque é que não se abalançou ao romance? Seria normal, dada a
sua tremenda facilidade verbal, o seu gosto das palavras.
Romance? Nem pensar! Acho que
não tenho jeito para isso. Escrevi um livro de crónicas. E depois, há muita
concorrência.
Uma vez disse, publicamente, que não escrevia um romance porque não
estava para contar a vidinha, que é o que fazem muitos romancistas portugueses.
No entanto, o Eu, na sua poesia, é
forte. O pendor autobiográfico, o inventário interior. Que Eu é esse, o do poeta? É, ainda, o do homem?
O Eu da poesia é o meu Eu
crítico, o meu Eu inventado, embora
esteja por vezes bastante perto do outro.
Tem o vício de escrever?
Realmente tenho. E é cada vez
mais difícil, porque se vai ganhando uma certa consciência da dificuldade de
escrever.
É metódico? Tem rituais de escrita? É capaz de se levantar a meio da
noite para ir escrever?
Faço na cabeça e então é que
escrevo. Não tenho método nenhum, mas levanto-me muitas vezes a meio da noite
para ir ao papel, para não esquecer no dia seguinte.
Em criança, como é que era? Escrevia?
Era um chato, uma tristeza.
Estava quase sempre em casa, era filho de gente que não me deixava sair à rua.
Era um menino fechado, um bocado triste, e passava muito tempo à janela, bem
perto daqui por sinal, na Rua da Alegria. É curioso porque morava na Rua da
Alegria e ela provocava-me um sentimento de tristeza, quando via subir as
carroças com os trabalhadores de aspecto cansado… interessava-me o espectáculo
das pessoas.
A sua infância não repassou para a poesia.
Sim, é verdade, talvez porque
não foi uma infância feliz, nem infeliz. Foi um tempo cinzento, sem relevos,
não o distingo de outros.
Na adolescência, se continuava fechado e espectador de janela, devia
ler muito. E escrever poemas de adolescência.
A partir dos quinze comecei a
ler. Lia Júlio Verne, aqueles livros da altura que todos os rapazes liam. E
escrevia verso.
Recordações particulares?
Andei em colégios particulares.
Lembro-me que quando fui para o liceu, a partir do 2.º ano começou a segregação
de sexos, meninos dum lado e meninas do outro. Uma chatice!
Já se interessava pelas mulheres?
Tenho alguma bossa de femeeiro?
Bom, do liceu fui para a Escola Náutica, queria ser piloto, achava um modo de
vida simpático. Só que durante as férias do 1.º ano fui à capitania de Lisboa
pedir a cédula marítima para navegar como praticante de piloto sem carta e aí
eles disseram-me: nem pense nisso, você tem uma miopia desgraçada! Arrumei o
curso. É preciso ver que, burocraticamente, não havia inspecção médica para
entrar para a Escola Náutica. Tinha que fazer a prova de que sabia nadar, e que
via para nadar, e pronto. Por isso não fui apanhado. Até já escrevia a
propósito: «Já andei para marinheiro mas pus óculos e fiquei em terra.»
Deve gostar do mar, no entanto ele quase nunca aparece na sua poesia,
ou na prosa. Aparece o azul, mas é o azul do céu, aliás uma cor quase obsessiva
em certos poemas…
Talvez haja aí um certo
recalcamento, por não conseguir fazer do mar a minha profissão. O azul é, de
facto, o do céu.
Já deu por si a analisar os seus poemas?
Oh, sim. Os poemas iniciais
acho-os sujamente quotidianos, demasiado comprometidos com uma poesia que não é
autobiográfica mas finge sê-lo. Acho, assim, uma coisa…
Por volta de 47 e dos seus 20 e poucos anos, já andava metido na
fundação do Grupo Surrealista de Lisboa. Devia andar pelos cafés, as tertúlias,
ser politicamente contra. Quando é que conheceu o Cesariny?
Conheci-o através do Lopes Graça
que tinha um grupo coral chamado «Amizade», ligado aos movimentos juvenis da
política. O Cesariny era membro do desdobramento juvenil desse coral. Nos
andávamos pelo Barreiro, pelas colectividades, a cantar em grupo. Politicamente
claro que era contra, era MUD juvenil.
O surrealismo, claro, era de importação. Mas os surrealistas já
existiam há muitos anos. Porque é que estavam tão atrasados? O Cesariny já
devia estar mais avançado do que vocês nesse campo…
Não, não. Fui eu que comprei a
História do Surrealismo do Maurice Nadeau e disse que tínhamos de fazer uma
coisa daquelas: Foi uma descoberta de 1948, através do livro e da antologia que
ele publicou. Foi um alvoroço, o surrealismo surgia-nos exaltante e libertador.
O Cesariny fez a descoberta na altura, embora já escrevesse umas coisas com
muito humor, que eram uma «charge» ao neo-realismo. O nosso surrealismo era,
aliás, uma reacção ao neo-realismo da época.
E que é que achavam do neo-realismo e dos seus mentores?
Uma chateza! O Mário Dionísio, o
Cochofel! Na poesia não havia quase ninguém. Havia o Joaquim Namorado, que era
fanaticíssimo. Havia até uma piada que se contava a propósito do Cochofel.
Dizia-se que quando chegasse a revolução, o Cochofel chamava a criada e
gritava: «Maria, traz a bomba!» E depois da criada, toda ataviada em renda, lhe
trazer a bomba numa bandeja de prata, ele atirava a bomba pela janela… afinal
de contas, o Cochofel até era um bom tipo.
Nesta sala há muitos livros em grande desordem. O que é que jaz nesta
desarrumação?
Coisas muito boas. E tenho mais
estantes assim, pelo resto da casa. Há de tudo, poetas americanos, franceses…
Poetas ingleses, não? É estranho, mas quando reli outro dia dois ou
três poemas seus, havia um vestígio de Eliot, um afloramento de Prufrock.
Tenho-o neste momento à
cabeceira, embora não possa dizer que seja um autor de minha cabeceira.
Comecei-o a ler tarde, mais tarde do que é costume. Por volta dos 26, 27 anos.
Onde eu noto um paralelismo acentuado entre a poesia de O’Neill e a de
Drummond de Andrade é na recuperação, num certo tratamento do que é pueril,
transformando-o em sublime. Uma certa captação do real. Já sei que detesta que
lhe apontem influências, mas é uma herança que não está em condições de negar,
parece-me. Essa e a do Manuel Bandeira…
É verdade e também é verdade que
nunca se disse publicamente em Portugal o quanto o surrealismo português deve a
Drummond de Andrade. E ao Bandeira, que tenho a fraqueza de considerar um bom
poeta.
Fraqueza?
Dele se disse que é um grande
poeta menor.
E acha que esses rótulos dos sacerdotes da crítica metem na poesia
devem influenciar a sua opinião? O que é, afinal, um grande poeta menor? Não é
um rótulo?
Sim, tem razão, não passa de um
rótulo, embora tenha vindo de uma pessoa amiga. Para mim o Bandeira é
simplesmente um grande Poeta. Se há poetas menores, ele é dos maiores.
Acha que existem bons críticos de poesia em Portugal?
É possível, mas nunca vi. Às
vezes há um acerto, é tudo.
Parece-me que está a jogar à defesa, a remeter… Ainda o «par
delicatesse j’ai perdu ma vie»?
«Delicatesse» não há. Hoje passo
tudo pela refinadora, é diferente.
Depura as palavras, as ideias? A espontaneidade (aparente) da sua
poesia soa a falso. Quando calha, alia magistralmente a arte e a técnica, ou
busca essa precisão, trabalhando o verso?
O verso é muito trabalhado, é um
processo lento de dizer uma coisa. E agora estou cada vez mais exigente. É um
trabalho minucioso, e mesmo quando parece desataviado, é um desatavio
voluntário. Não acredito na poesia… bom… vamos lá a ser modestos… o que quero
dizer é que a grande, a boa poesia, percebe-se logo. Desconfio do que é
fechado, hermético, chamemos-lhe assim.
Já se emocionou com um poema seu, muito
depois de o ter escrito?
Tantas
vezes! Há poemas privilegiados em que isso acontece com certa frequência. Também
acontece o contrário, aqueles que são falhanços. Há um poema sobre fogos-postos
de que gosto muito, considero-o um dos mais bem acabados que escrevi até hoje.
E emociono-me.
O que o emociona é, em última análise, a
forma, não o conteúdo. E a memória, a recordação de momentos?
Sim,
emociono-me por estar bem feito. Claro que há poemas que têm a ver com memórias
de situações que não tinham nada a ver com o poema em si mesmo, e são poemas de
amor. Também aí pode existir emoção.
Saindo da emoção para o calão. Muitas vezes
lhe é atribuído um conhecimento profundo da linguagem lisboeta de rua, do
«bas-fond». Chegou mesmo a inventar palavras de calão, como Onassis, para dizer
dinheiro. Frequentava os lugares
verdadeiros dessa linguagem? Era uma pessoa da noite?
Era
mais fama do que outra coisa, embora essa do Onassis seja verdade, também não pegou. Nunca fui pessoa da noite,
frequentador de tabernas ou alfurjas, e os que as frequentam devem estar mais
dentro do assunto do que eu.
Acredita em gerações?
Não
acredito.
O tempo é uma das abstracções mais terríveis
que permitem os seus versos. O que é, aos 50 anos, o tempo? A sua passagem?
Até
há pouco tempo não dei pela passagem do tempo, fui vivendo, fiz do corpo
alavanca sem pensar no futuro. Há pessoas que passam a vida a pensar na
reforma, aos 20 anos já pensam na reforma, aguentam empregos terríveis para
chegarem lá. Há muita gente com essa mentalidade de funcionário público, nunca
foi o meu género. Também nunca fui poeta de pensar no meu currículo. Recusando
estas coisas, cheguei aqui.
Acha que actual poesia portuguesa foi invadida pelo academismo?
Nitidamente. Os académicos
apossaram-se da poesia portuguesa e puseram-na ao serviço do currículo.
Faz sentido a frase de que Portugal é um país de poetas?
Nunca fez sentido para mim. A
não ser se se identificar poeta com distraído, lunático. Lá que somos um país
de lunáticos, somos. No outro sentido, nada.
Lê poetas portugueses contemporâneos?
Poucos. Só dois ou três. O João
Miguel Fernandes Jorge, o Herberto Helder, o Eugénio de Andrade.
Nunca se sentiu injustiçado, em relação ao seu valor poético? Não acha
que o puseram de parte apesar da sua qualidade?
Sei que não estou na moda. Pode
ser sem intenção, talvez certas ideias tenham sido, por mim, mal desenvolvidas
ou expressas, e por isso não foram compreendidas e tornaram-se desinteressantes
para os outros.
Será que falhou, aí, um certo trabalho de auto-promoção? A moda precisa
da auto-promoção hábil, do «marketing»
Não quero fazer acusações. As
pessoas que me lêem gostam dos que lêem e algumas têm surpresas agradáveis:
olha, aquele fulano é um poeta! E ficam a conhecer-me de novo.
Como é que é conhecido?
Como «blagueur». Um tipo com
graça. E é o contrário porque se graça existe, ela é um bocado amarga. Até me
arrumaram apressadamente com o Tolentino, o Junqueiro.
Quem o arrumou?
A crítica. Voltamos,
simpaticamente, à crítica.
Arrumaram-no bem ou mal, em sua opinião?
O Tolentino era um grande poeta,
não me importava de ser parecido com ele mas não sou. No tempo da crítica
impressionista havia a mania de estabelecer parentescos. As pessoas tinham de
ter pais, avós, ascendentes e descendentes.
Prefere ser bastardo ou filho legítimo? Se tivesse que escolher um
«pai» quem é que escolheria? Cesário Verde?
Gostava do Cesário, sem dúvida.
Digo-lhe duas palavras e quero que responda o que lhe vier à cabeça,
automaticamente. Intertextualidade…
É muito importante saber
praticá-la inteligentemente.
… psicanálise…
Não acredito muito. É
acomodatícia, o seu papel foi acomodar as pessoas a uma sociedade intragável. À
parte isso, deve ter tido certo valor terapêutico.
A sociedade é intragável?
Sim, porque nos propõe fazer
consumir coisas que, conscientemente, não faríamos nem consumiríamos. A vida na
cidade, os autocarros a transbordar, os refrescos de anúncio…
Essa é engraçada vinda de alguém que ajuda a vender coisas, que inventa
mensagens de consumo. Você trabalha em publicidade. Já se viu a consumir algo
que tivesse proposto publicitariamente?
É boa! (Risos). Não, acho que
não.
Como muita gente que não pode viver exclusivamente da escrita, teve que
se arrimar a uma profissão onde as palavras importam. Porque escolheu a
publicidade e não os jornais por exemplo?
Não sei como fui lá parar mas
fui. Fiz-me aprendiz de publicidade porque era uma maneira pouco trabalhosa de
ganhar para o sustento. Talvez fosse essa a razão. Já lá vão 30 anos.
Não será essa mentalidade semelhante, afinal, à do funcionário público
a sonhar com a reforma? Você sonhava com o fim do mês?
Não. Com o fim do mês sonha toda
a gente. E mudei tantas vezes de empresa e de trabalho, de forma tão livre, que
nunca tive a proposta da reforma no final do túnel.
Tem ou não direito a uma reforma?
Deve dar para morrer
alegremente.
Ganhou dinheiro com a poesia?
Sim, em Itália, e aqui, na
Imprensa Nacional.
O que é mais importante: a relação com os outros ou com as palavras?
A relação com as palavras é
fundamental e a relação com os outros depende da relação com as palavras. Mas
não sacrifico um jantar com um amigo para acabar um soneto.
E um jantar social?
Nunca.
Não o convidam?
Não vou.
Tem muitos amigos?
Não, para aí um ou dois.
Podemos falar de solidão?
A procurada é boa, a não
procurada às vezes é chata.
Faz parte da mitologia de criação artística, a solidão…
Estar sozinho não é a solidão.
Às vezes está-se sozinho porque se quer e isso pode dar um bom monólogo, uma
meditação. O facto de eu viver só é que, às vezes, é chato e vou até ao
barbeiro da esquina só para falar com alguém.
Não usa o telefone? Nunca ficou agarrado ao telefone, à espera que
tocasse, a quebrar uma ansiedade solitária?
Já fiquei, mas ele não tocou.
O que é a velhice?
Não é nada, não a sinto a não
ser nas limitações que o estado de doença me impõe. Com alguns cuidados
evita-se.
E o medo da morte?
Curiosidade, como é que isto
tudo vai desfechar.
Não se detecta no poeta O’Neill qualquer misticismo, panteísmo, nem
mácula de sentimento religioso. Porquê? É um ateu puro e duro?
Não possuo qualquer sentimento
religioso. Não sou ateu porque nem sequer me defino em relação a uma crença
qualquer.
Teve uma educação religiosa tradicional, católica, com missas e
comunhões?
Primeira comunhão, comunhão
solene, baptismo, tudo. Não sou contra, acho que até fez bem. Não se tornou repressiva
e aprendi a detestar a hipocrisia.
Já esteve à beira da morte. Apelou a quê ou a quem?
Ao bom senso. Lembro-me que
senti que o universo minguava, as preocupações do dia a dia desocupavam a
cabeça e ficou, só, a espera… Mais um bocadinho de vida, ou então de morte.
Acredita na imortalidade literária? E se não acredita em que é que
acredita?
Não acredito. Acredito naquilo
que escrevo.
Isso confere-lhe algum sentimento de superioridade? Já se sentiu muito
inteligente, ou até genial?
Nenhuma superioridade, mas já me
senti muito inteligente. Genial, nunca. Se posso fazer a classificação de mim
mesmo então sou o grande poeta menor a que me referi há pouco.
Já utilizou a sua facilidade verbal contra alguém, numa disputa? Ou
para ferir alguém?
Ao longo da vida, tenho-o feito
e algumas vezes com arrependimento. Dizer uma graça pode significar uma
crueldade para com os outros.
Componente lírica, componente satírica, qual a mais forte?
Ambas são fortíssimas. Uma vez
um padre jesuíta, o padre João Maia, escreveu que eu tinha um lirismo
envergonhado.
Leio-o há muitos anos. Agora, parece-me só um entrevistado
envergonhado. É capaz de me dizer que se acha um bom, um grande poeta?
Acho! Pois sou, sou um bom
poeta.
Pagou algum preço para chegar aqui?
Incomunicação a nível do
quotidiano.
Tenho na minha frente um publicitário incomunicado e um satírico
triste. Como é isto?
A lei. Os que funcionam no reino
do riso, do humor, são todos muito tristes. Não conheço nenhum humorista que
seja alegre na vida de todos os dias, exactamente por ser humorista.
Vai ao cinema?
Rarissimamente. O cinema foi uma
arte que se traiu, talvez por ter de ser também uma indústria. Traiu o que
prometia com um Griffith, com tantos outros. O Spielberg, aquele dos
Salteadores e do ET, apresenta um produto comercial muito bem vendido e muito
imaginativo e não mais.
E televisão, vê? Viu os debates políticos?
Vi. Vejo televisão. Achei
aqueles debates melancólicos.
Fé política, alguma?
Tenho uma fezada. Tendo para uma
coisa que todos execram – esperemos que se diga execram – e que é o PS. Com todos
os seus defeitos. Até fiz um «slogan» que andou por aí: ele não merece, mas
vota no PS.
Diga outro «slogan» famoso cuja paternidade lhe pertença.
Há mar e mar, há ir e voltar.
Devia ter ganho uma fortuna com esse…
Devia mas não ganhei. Estou a
fazer diligências junto da Sociedade de Autores para ver se ao menos de 1983
para cá, consigo alguns direitos. O «slogan» até já consta de um dicionário de
provérbios portugueses. Mais uma prova de como eu sou desarrumado e nunca penso
nas consequências, a não ser quando escrevo.
A tradução da sua poesia em italiano como foi, acompanhou-a de perto?
Apareci numa prestigiosa
colecção da Eunaudi, que tinha o Cavafy, o João Cabral de Melo Neto… mas a
tradutora, a certa altura, não suportou que eu interferisse e acabou por
traduzir «o dito está dito» por «il díto resta díto». Este «díto» não era o meu
«dito» mas «dedo», veja-se a confusão. Noutro ponto, onde eu dizia «não deve a
literatura ao absinto em quantidade mais que ao tinto», ela traduziu tinto por
tinta de parede. A do dedo era óptima, cada vez que eu ia a Itália
cumprimentavam-me com o dedo.
Tem filhos?
Um de 25 anos e um de 9, que é o
meu «neto».
O mais velho gosta do seu trabalho poético?
Lê e gosta. E gosta que eu lhe
leia certas coisas. Outro dia queria por força que lhe lesse a Morte à Tarde, do Hemingway.
Foi você que lhe passou os livros para as mãos, na adolescência? O
Hemingway, entre outros?
Sim, passei-lhe o Cabral de Melo
Neto, que ainda hoje o faz ficar espantado.
Gosta de Hemingway, hoje?
Conforme a fase. Tenho um poema
em que digo género Hemingway, fase kitsch. O Velho e o Mar acho um horror. Mas tem coisas muito boas. A
aventura, o cabotismo, são recuperados.
Era capaz de dar um tiro na cabeça, como ele deu, quando achasse que já
não conseguia? O suicídio é uma vocação eminentemente poética, pensa o vulgo…
Não vejo grande mal em uma
pessoa poder contribuir para a sua morte decisivamente, quando nada resta a
fazer. O Koestler e a mulher fizeram isso. Acho que era capaz, sim.
Há na sua poesia, disfarçadamente às vezes, outras não, uma preocupação
da justiça social, com o verso a servir de factor corrector dessa situação. Os
pobres incomodam-no, entristecem-no?
Tenho má consciência. Dou sempre
esmola. Pode ser o maior bêbado, dou sempre esmola para os copos dele, acho que
tem direito aos seus próprios vícios e a alimentá-los.
Estas perguntas parecem «fait divers» mas faço-as porque quando no
romance do Kundera, de que agora todos falam e todos retiram citações e
ilações, ele teoriza sobre o «kitsch». Os portugueses acharam fabulosa essa
teorização do «kitsch» mas, na sua poesia, você fez notáveis comentários do
«kitsch» nacional. E tratou-os a preceito…
Não me faça um especialista do
«kitsch». O «kitsch» começa por ser uma hipocrisia e acaba por ser um
subproduto de uma sociedade que se apieda de si mesma, em demasia. Entre o que
se deve sentir e o que se sente, às vezes, vai uma grande distância. E depois o
«kitsch» é a fancaria. Como eu escrevi, é ter o Guernica que liga com as
cortinas… isso não!
Nunca teve crises de autopiedade? Não as deixou penetrar a poesia?
Então não tive?
Humor negro: diga um epitáfio que gostasse para si mesmo. Mão me diga
que nunca fez nenhum, preparado para aquele momento bem português em que morre
um artista e lhe caem em cima os vampiros das homenagens, dos amigos, dos
depoimentos, das desculpabilizações, dos discursos e dos engrandecimentos. A
gloríola – a palavra é sua –, em Portugal, é muito póstuma.
Não gostava nada que me caíssem
em cima, nem que dissessem nada sobre mim. Epitáfio… eu até tinha um:
Aqui jaz Alexandre O’Neill
Um homem que dormiu
Muito pouco
Bem merecia isto
Fiz este epitáfio aos 30 anos.
in A Phala, Suplemento, nº88 de 2001
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Alexandre O'Neill e António Tabucchi (fotografia de Noémia Delgado) |