9.
Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
A torre, o cemitério, o devaneio,
Tudo existia já, mas cada coisa
Desconhecia as outras, nada então
Albergava um projecto nem sequer
Um desígnio amoroso. Eram apenas
Coisas: pedras, doenças e paisagem
Cuja condição viva se traduz
Pela exalação da humidade
E por alguma quase imperceptível
Elevação do peito. Sossegado
Parecia o mundo.
p.15
16.
Ele conhecia
A Grécia pela ardência, pelo toque.
E ocultava de todos o terrível
Esplendor da mão da escrita,
O que lhe enchia as noites de ilusão,
Fazendo-o crer, fazendo-o derramar
Sobre o papel um chamamento como
Se chama um prisioneiro, suplicando
Que nos faça algum sinal.
p.22
17
Para que servem poetas se não podem
Nem delirar, se os textos do delírio
Serão tomados pelo seu contrário?
A bela rapariga dos cabelos
Cor de violeta, Atenas, onde está?
Quem escavará o monte até aos ossos
Para que dele ressurjam esses que
Nos deixaram sozinhos?
p.23
20.
E veio outra miséria, em interlúdio:
A miséria da interpretação
Que tudo trai. Os textos, os tão belos
Carregavam os sacos dos soldados
Como pães doces, abolorecidos,
Alimentavam quem? Persas, de novo.
Persas vindo do Norte, equivocados
Com o som do poema, com a ira
Formosa do poema.
p.26
23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
p.29
Hélia Correia, “A Terceira Miséria”, Relógio D’Água, Lisboa,
2012.