Sonhei ou bem alguém me contou
Que um dia
Em San Lourenço da Montaria
Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã foi
Deus é que rebentou
E ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para dançar à roda o estrapassado e o vira
Na volta do San João d’Arga
Não sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O resto não tem importância
O resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O resto é a Deolinda
Dança os amores que não teve
Tem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca como a da penedia
O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou para comerem outros bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos
Todas estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácil
De toda a poesia que por lá há
A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que fica depois da gente lá ter ido
Ver dançar a Deolinda
Depois da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que também foram à romaria
As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da fermentação
Nascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados
É assim na Serra d’Arga
Quando canta Deolinda
E vem gente de longe só para a ouvir cantar
Nesses dias
as larvas vêem-se menos
Pois o trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A prepararem-se para voar
Quanto aos mendigos é diferente
A sua maneira de aparecer
Uns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do ventre mendigo materno
Outros é quando chupam o seio sujo das mães
Que apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros então é em consequência das moscas e das chagas
Que vão à mendicidade
Não mo contou a Deolinda
Que só conta de amores
E só dança de cores
E só fala de flores
A Deolinda
Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que para os criar bem
Lhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os com o esterco dos outros
Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles aprendem
Ao saberem tudo
Nasce de propósito um enxame de moscas para cada um
Todas as moscas que há no Minho
Se geraram nos mendigos ou para eles
E é por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando pousam em nós
E é por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das moscas da Serra d’Arga
Ainda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Em San Lourenço da Montaria
Este poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou simplesmente achei uma maçada
Ou sim mas não talvez quem dera
Viva Deus-Nosso-Senhor
Este poema é como as moscas e a Deolinda
De San Lourenço da Montaria
E nem sequer lá foi escrito
Foi escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes de eu o passar à máquina
Etc. que não tenho tempo para mais explicações
É que eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não disse
Contagiado pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que tudo é assim em todos os dias do ano
Mas aos sábados e nos dias de romaria
Os mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São sempre mais
E creio de propósito
Ser na sexta-feira à noite
Que as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com que se apresentam sempre no dia da caridade
Elas parem-nos pelo corpo todo
Pois a carne
De tão amolecida pelos vermes
Não tem exigências especiais
E porque assim acontece
Todos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que nunca foi apertada
Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Em San Lourenço da Montaria
Além deles há a bosta dos bois
Os padres
O ar que é lindo
Os pássaros que comem as formigas
Algumas casas às vezes
Os homens e as mulheres
Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente de propósito
Exactamente para estar ali
E é por isso que se tiram as fotografias
Por isso tudo ali é naturalmente
Duma grande crueldade natural
Os meninos apertam os olhos das trutas
Que vêm da água do rio
Para elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E percebam assim que lhes agradam
Os animais comem-se uns aos outros
As pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as árvores essas
Sorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar
Assim acaba este poema da Serra d’Arga
Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Parecia a queda dum regímen
Tudo muito assim mesmo lá em cima
E cá em baixo dois suados à machadada
Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no buraco do sítio da árvore
Na mata de pinheiral
O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito
Em San Lourenço da Montaria"
Moledo, Agosto de 1948
António Pedro
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António Pedro, (1909-1966) |
PREFÁCIO
Hesitei muito antes de dar um título ao que vai seguir-se. Há pessoas que julgam os títulos de somenos importância, coisa que depois terá sua razão de ser na continuação da leitura. Há outras pessoas que depois de terem feito um livro pegam no nome duma das personagens escrevem-no com letra mais grossa na capa, como se bastasse. As primeiras funcionam como os provérbios, as segundas como os padrinhos. Ambas estão erradas, como não podia deixar de ser. Os provérbios podem ser aplicados assim como nos lembram ou ao contrário e estão sempre bem. É essa a razão da sabedoria popular ou daquilo que assim se chama e é ingenuidade e, por consequência, o contrário da sabedoria. Os nomes que os padrinhos dão a uma criança, quando chega o momento de ser necessário designá-la, são sempre tão mal escolhidos que a gente de casa passa logo a chamar-lhe um diminutivo qualquer e, e quando cresce, a gente de fora passa sempre a chamá-la pelo apelido, que é o nome do pai com quem entende que deve parecer-se por uma razão de hereditariedade. Os padrinhos só acertam por acaso e estes acasos felizes são excepções que não fazem senão confirmar a regra que lhes é contrária.
Não foi portanto fácil a escolha deste título ou, mais verdadeiramente, não teria sido fácil se ele fosse verdadeiramente um título. O que se vai ler é apenas uma narrativa daquilo que não aconteceu, como deve ser em todos os romances. Chama-se portanto aquilo que é, embora não seja costume.
Outro facto que talvez mereça os reparos iniciais que justificam a existência de prefácios é a designação de romance. No Brasil, aqui há tempos, houve uma grande discussão entre escritores acerca do que devia chamar-se novela e do que devia chamar-se conto. Todos tinham tanta razão com os seus argumentos que só a teve a ponto de não valer a pena falar-se mais do assunto. Uns optavam pela questão do tamanho, outros pela questão do conteúdo, outros pela maneira de contar as coisas: Creio ser de Mário de Andrade a justa teoria:
– Romance é aquilo que o autor resolveu designar assim.
A história que vai ler-se é simples como as plantas e nasceu naturalmente, embora, como elas, tenha por vezes formas inesperadas. Não tem intenção de provar coisa nenhuma mas, se a tivesse, seria a de que há uma lógica do absurdo tão verdadeira, pelo menos, como a lógica racional, embora muito mais espontaneamente aceitável do que ela e, se não fosse perigoso tocar em tais questões, muito mais parecida com aquela que usam artistas que o povo entende: oleiros de romaria que fazem gatos dourados com manchas vermelhas e cara de gente, contistas de serão provinciano que inventam histórias da carochinha, e aquele poeta extraordinário e desconhecido que inventou o rico pico serenico quem te deu tamanho bico ou de ouro ou de prata mete aqui nesta buraca.
Resumindo, pois, o que vai seguir-se, porque é narrado de forma sem pretensões, é Apenas uma Narrativa e, porque assim me pareceu bem, subintitula-se Romance.
A quem não cheguem estas explicações, absolutamente desnecessárias, recomenda-se que não leia este livro. Aos outros também, por modéstia obrigatória, sem nenhuma convicção.
O AUTOR
António Pedro in «Apenas uma Narrativa», pp. 15-17, 2.ªed. Editorial Estampa, Lx, 1978
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Segunda Edição da Estampa, 1978. |