“26
de Dezembro de 1891.
Leitor,
bôas-festas! Abre-me um riso. Repara que te não vou pedir coisa
nenhuma. De me aturares, fui-me deixando acometter d’uma certa
benevolencia a teu respeito, e essa benevolencia é o maximo d’estima
que por ti póde sentir um coração costumado sómente a desprezar.
Sei que és hereditario cultor das virtudes simples de familia, e
homem de ramerrão, professas a ternura religiosa das grandes datas
do kalendario. As tuas robustíssimas espadoas não podiam ser
soménte mólhes do porto d’ar onde o teu globulo rubro se renova,
mas por força tambem os sustentaculos d’um mundo moral que te
ajuda a luctar contra o destino, e que apezar de te fazer ás vezes
ridiculo, nem por isso te apeia d’uma superioridade ideal que eu
provavelmente nunca attingirei. Razão porque ha no meu desdém por
ti, uma ponta de ciume, e porque a sarcastica mysantropia que me
fechou a porta dos gozos simples que aligeiram a vida, em vez de me
talhar em Jupiter, o que fez foi cavar-me de roda do espirito um
fosso, que me sequestra de tudo, e nem ao menos me estanca a saudade
do que me acostumei a desdenhar. Este desterro péza-me, confesso,
porque eu sou essencialmente um animal de ninharia e convivência,
nascido para ter côrte, para se rolar no luxo, e para acceitar sem
surpreza que toda a gente faça excepções em meu favor.
Pódes
imaginar portanto o que teria sido, n’esta immensa cidade de
quatrocentos mil habitantes, e seis milhões d’egoismos, a minha
vespera e dia de Natal, sósinho entre a alegria insultante de todos,
repellido dos fócos d’amor patriarchal como um sem-familia
perturbador das alegrias consanguineas, vendo as mais modestas casas
de jantar illuminarem-se, as mais desataviadas salas abrirem-se,
amigos e parentes felicitando-se, abraçando-se, sem antagonismos
visiveis, esquecidos do struggle,
e apaziguados todos pela banalidade jovial da vida intima – a vida
modelada sobre os antigos textos da tradicção, com a igreja d’um
lado, o escrivão de fazenda do outro, o policia de guarda, e o
Diario
de Noticias
como encyclopedia e breviário.
Ah
como eu tive inveja do saloio que parou o burro á porta d’uma
mercearia da Bitesga, para comprar a duas duzias de brôas da
consoada; do pobre engraixador da esquina, indo á praça com a
mulher, de fato rico, apreçar um quarto de peru; da varina entrando
na salchicharia, radiante, a comprar salchichas, ao fim de ter
deposto a canastra á porta, rude presépe onde o filho loiro
chuchava o dedo, com o ventre de sapo para o ar! Todas essas indoles
de povo, roídas de penuria , vergadas de trabalho, primitivas, mas
fecundas e convergentes, por uma fatalidade ancestral, á reedição
das alegrias periodicas do anno, se me afiguraram infinitamente
superiores á minha friavel indole de janota sceptico, demolindo no
ar sem plano certo, negando pelo simples prazer do paradoxo, incapaz
d’estabilidade n’um problema, constantemente á procura de novo,
e em topo de colina voltando-se, desesperado de só ter achado gosto
– ao que era velho. Oh meu pobre coração amortalhado de tristeza!
diz como te dóe o isolamento a que uma intelligencia esteril te
votou. Conta, não tenhas medo, conta que choraste lagrimas de
remorso, quando da janella do teu albergue viste os tres pequenos do
visinho preparando ao seu papá uma emboscada; e o pobre homem
entrando, carregado d’embrulhos, e elles de se lhe atirarem p’ra
cima, como feras, sedentos de curiosidade e de meiguices, quando já
da pobre cosinha da casa o olor de cabidella os chamava para dentro,
e os parentes pobres, convivas d’esse dia, as velhas em chita, os
velhos em belbutina e saragoça, vinham dar ao seu parente
rico,
as bôas festas. Vê como sob o manejo d’uma mulher trabalhadeira,
os trinta mil reis mensaes d’esse pobre empregado fazem milagres de
riqueza, luzindo na cosinha alegre, na bata da mulher, nos bibes das
creanças, e no desafogo honesto de todos esses focinhos felizes, que
marcham para o futuro despreoccupados da morte, e acceitando a vida
apenas pelo que ella é, o usofructo d’uma agregação temporaria
de moleculas. Compara a virilidade hygienica d’essa vida de ninho,
feita de trabalho, de methodo, de defensão reciproca e de coragem,
com o dessasocego da tua vagabundagem deleteria «d’espririto
superior», gestando universos sobre leituras de livros mal
escriptos, e dyspepsias sobre menús chinfrins de restaurants, e
diz-me depois se a crise de solidão moral que te alanceia, não é
condigno premio da «vida ironica» que te quizeste dar, toiro com
azas, n’uma epocha em que os toiros só podem ser superiores pelos
chavelhos!
……
dia de Natal, eu que eu conheço toda a gente, não tive ninguém que
me dissesse «anda jantar». Vinguei-me sahindo de casa, e engajando
os primeiros va-nu-pieds
eventuaes. Dois pobres do asylo, os uniformes sem nodoas, pouco
bêbedos. Marchamos para o Augusto, e na sala commum, a uma de cujas
mezas nos sentamos, houve reboliço por banda das meretrizes e
irregulares que mais alegres do que eu, alli tinham ido fazer o seu
jantar de festa, em partie
fine.
Não descrevo a comida, registando apenas o trabalho gasto em
despersuadir os meus dois commensaes de não metterem no bolso os
restos de cada prato do festim.
Á
sobremesa, um d’elles, bebedo, como eu o fitava com uma piedade
christã de filho prodigo confiou-me que estivera quatro annos
n’Africa, por um roubo, e o conselheiro X. o mettera no asylo,
havia sete mezes. O outro era um velhinho abahúlado, olhos de doido
irónico, que fugiam, fallando pouco; mas todo o jantar suspeitei de
scellerado, tanto os seus monosyllabos humildes, e os seus contínuos
escrupulos de consciencia, lhe davam o ar d’um homem de bem. A
despedida, o mais velho chamou-me conde, e o mais novo, doutor, sem
acertarem, e lá foram cambaleando, a rogar pragas a quem lhes fizera
o serviço de lhes metter no craneo a apoplexia. Pobres malandros!
Deixai o meu egoismo abusar da vossa fome. Sem vós, eu não poderia
dizer, como toda a gente: «Jantei hoje o natal com dois amigos
velhos»."
Fialho
d’Almeida,
“Os Gatos – Vol. V”, pp. 33-37, 4.ª ed., Livraria Clássica
Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1921.