Mostrar mensagens com a etiqueta Mário de Sá-Carneiro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mário de Sá-Carneiro. Mostrar todas as mensagens

16/01/2017

...







SERRADURA

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a môna, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma,
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje só sonha pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo.

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido de um moscardo,
Ou comichão que não passa;

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas,
Ou qualquer coisa entre tantas
De uma antipatía igual...

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia...

Qualquer dia, pela certa,
quando eu mal me precate
é capaz de um disparate
Se encontra uma porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
– P'ra acabar êste intermédio
Lembrei-me de endoidecer.

O que era fácil – partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo,
De barrete de papel,

A gritar Viva a Alemanha!...
Mas a minha alma em verdade
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade.

Vou deixá-la – decidido –
No lavabo de um Café
Como um anel esquecido,
É um fim mais «raffiné»


Paris, Setembro de 1915.
           MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


in “Sudoeste”, nº 3. Lisboa: Nov. 1935

12/11/2012

...


                Um deslumbramento, o trajo da americana. Envolvia-a uma túnica de um tecido muito singular, impossível de descrever. Era como que uma estreita malha de fios metálicos – mas dos metais mais diversos – a fundirem-se numa cintilação esbraseada, onde todas as cores ora se enclavinhavam ululantes, ora se dimanavam, silvando tumultos astrais de reflexos. Todas as cores enlouqueciam na sua túnica.
                Por entre as malhas do tecido, olhando bem, divisava-se a pele nua; e o bico de um seio despontava numa agudeza áurea.
                Os cabelos fulvos tinha-os enrolado desordenadamente e entretecido de pedrarias que constelavam aquelas labaredas em raios de luz ultrapassada. Mordiam-se-lhe nos braços serpentes de esmeraldas. Nem uma jóia sobre o decote profundo… A estátua inquietadora do desejo contorcido, do vício platinado… E de toda a sua carne, em penumbra azul, emanava um aroma denso a crime.

Mário de Sá-Carneiro in ‘A Confissão de Lúcio’