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04/01/2020

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Seria um homem que caminhava à minha frente? Nos povos que vivem nus, tal como com os animais, a diferença entre os sexos é bem menos evidente que nos nossos climas. Nós acentuamos a fraqueza da mulher poupando-a a esforços, ou seja, às ocasiões de evolução, e moldamos a mulher segundo um padrão ideal de graciosidade.
No Taiti, o ar da floresta ou do mar fortifica todos os pulmões, alarga todos os ombros, todas as ancas, e o cascalho da praia não poupa nem homens nem mulheres. Estas fazem os mesmos trabalhos que eles e estes possuem a indolência delas: elas têm qualquer coisa de viril e eles algo de feminino. Essa semelhança entre os dois sexos facilita as relações, torna perfeitamente pura a nudez perpétua, eliminando dos costumes qualquer ideia de desconhecido, de privilégios misteriosos, imprevistos ou furtos felizes – todo aquele abandono sádico, todas aquelas cores vergonhosas e furtivas do amor junto dos civilizados.
Porquê essa atenuação das diferenças entre os dois sexos, que, nos «selvagens», fazendo do homem e da mulher tanto amigos como amantes, afasta deles a própria noção de vício, de súbito a evocava um velho civilizado, com o terrível prestígio do novo, do desconhecido?”
Paul Gauguin, “Noa-Noa – Estada em Taiti”, pp. 48-49, Publicações Europa-América, 1998. Trad. Jacqueline Medeiros.

18/10/2019

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Tive de regressar a França. Deveres imperiosos de família chamavam-me.
Adeus, terra hospitaleira, terra deliciosa, pátria de liberdade e de beleza! Parto com mais dois anos, rejuvenescido vinte, mais bárbaro também do que à chegada e no entanto mais culto. Sim, os selvagens ensinaram-me muitas coisas, aqueles ignorantes, sobre a ciência de viver e a arte de ser feliz.
Quando deixei o cais, no momento de me fazer ao mar, olhei para Teura pela última vez. Tinha chorado durante várias noites. Agora, cansada e sempre triste mas calma, estava sentada sobre a pedra, com as pernas balouçando, tocando na água salgada com os seus pés grandes e sólidos. A flor que antes trazia atrás da orelha tinha-lhe caído sobre os joelhos, murcha.
Espaçadas, outras como ela olhavam, fatigadas, mudas, sem pensamentos, o pesado fumo do navio que nos levava a todos, amantes de um dia. E a ponte do navio, com os binóculos, durante muito tempo pareceu-nos ler nos seus lábios este velho discurso maori:
«Vós, brisas ligeiras do sul e do leste, que vos juntais para brincar e acariciar os meus cabelos, corram depressa para outra ilha: aí encontrareis aquele que me abandonou, sentado à sombra da sua árvore favorita. Digam-lhe que me viram chorar.»
PAUL GAUGUIN
1898”

Paul Gauguin, “Noa-Noa – Estada em Taiti”, pp. 115-116, Publicações Europa-América, 1998. Trad. Jacqueline Medeiros.

25/07/2019

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A primeira cantora começa: como um pássaro altivo eleva-se subitamente até à alma da chama. O seu grito poderoso baixa e sobe, planando como um pássaro, enquanto os outros voam à volta da estrela como satélites fiéis. Depois, todos os homens, com um grito bárbaro, apenas um, terminam em acordo com a tónica. São os cantos taitianos, os himene.
Ou então, quando se pretende cantar e falar, as pessoas reúnem-se numa espécie de cabana comum. Começamos com uma oração, primeiro recitada por um idoso, conscienciosamente, e de seguida toda a assistência repete o refrão! Depois é a vez de cantar. Outras vezes contam-se histórias que fazem rir. Mais raramente disserta-se sobre questões sérias, fazem-se propostas sensatas.
Eis aquela que ouvi numa dessas noites e que não deixou de me surpreender:
Na nossa aldeia – dizia um velhote –, já há algum tempo que vimos aqui e acolá casas que caem em ruínas, tectos apodrecidos, meios rachados, onde a água penetra se por azar começar a chover. Porquê? Todas as pessoas devem ter um abrigo. Não escasseiam nem a madeira nem a folhagem para confeccionar telhados. Proponho que trabalhemos em conjunto durante algum tempo para construir cabanas espaçosas e sólidas para substituir aquelas que se tornaram inabitáveis. Todos nós daremos sucessivamente a nossa ajuda.
Todos os assistentes, sem excepção, aplaudiram.
Muito bem.
E a proposta do velhote foi aprovada por unanimidade.
«Eis um povo sábio», pensei eu naquela noite ao regressar a casa.
Mas no dia seguinte, quando pedi informações para saber quando começaria a execução dos trabalhos decididos, apercebi-me de que já ninguém pensava no assunto. Respondiam às minhas perguntas com sorrisos evasivos que no entanto traçavam linhas significativas naquelas vastas testas pensadoras. Retirei-me, cheio de pensamentos difíceis de conciliar: tinham tido razão ao não fazerem aquilo que ele tinha aconselhado. Porquê trabalhar? Os deuses de Taiti não fornecem aos seus fiéis seguidores a subsistência do dia-a-dia? Amanhã? Talvez! E de qualquer forma amanhã o Sol irá nascer tal como nasceu hoje, bondoso e sereno. Será isso indiferença, desinteresse ou – quem sabe? – filosofia da mais profunda? Toma cuidado com o luxo, tem cuidado ao tomar o gosto sob o pretexto da prevenção!...”

Paul Gauguin, “Noa-Noa – Estada em Taiti”, pp. 43-45, Publicações Europa-América, 1998. Trad. Jacqueline Medeiros.