18/08/2022

Feira do Livro do Porto...

 

 
A livraria Edições 50kg vai estar na feira do livro do Porto no pavilhão nr. 61. Por esta razão, de 23 de Agosto a 14 de Setembro, a livraria estará encerrada. Durante este período poderão sempre contactar por email ou telemóvel.

28/06/2022

Feira do Livro da Maia...

 


De 2 a 11 de Julho estaremos na feira do livro da Maia no pavilhão nr. 9. Durante este período a livraria encontrar-se-á fechada. Esperamos ver-vos por lá.  Cumprimentos. 

28/03/2022

Novidade 50kg...

 

Primeiras Perplexidades de um Homem Vestido de Bacalhau de Manuel da Silva Ramos
Desenho da capa de Von Calhau
Edições 50kg, Porto, Março de 2022.
P.V.P: € 15,00
200 Exemplares
 

Manuel da Silva Ramos ( foto retirada daqui)
 
Von Calhau
 


24/01/2022

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 "A sua pena! Ela ali estava, inútil e abandonada, como a clava de Hércules após a realização dos doze trabalhos portentosos.

Era o galho de uma roseira, cortado no jardim, e que, aparado tôscamente a canivete, tinha o aparo seguro com várias linhas de coser. Era aquela a pena de Teófilo - a formidável pena que produziria dezenas e dezenas de trabalhos cheios de erudição.
Antes de cegar, o infatigável Teófilo chegava a escrever durante dez horas seguidas, enchendo enormes quartos de papel, dum e doutro lado, com a sua caligrafia miúda,  tão fina e irregular.
Quando imaginava qualquer novo trabalho, carregava  para junto da mesa tudo o que pudesse relacionar-se com o assunto a tratar. E, uma vez assim instalado, começava a escrever, a escrever ràpidamente, atirando para o chão as fôlhas numeradas, que depois juntava com facilidade.
Trabalhava a qualquer hora do dia ou da noite. Quando lhe acorria uma idéia, ou lhe contavam um pormenor curioso que pudesse interessar uma obra embrionária,  tomava logo nota em pequenos verbetes que depois guardava em pastas exclusivamente destinadas a cada assunto.
Quando julgava ter os elementos bastantes para a organização do trabalho a realizar,  passava, nessa altura, o seu cérebro a ser o ovário fecundo, onde tudo aquilo tomava forma, vida e vigor. Em casa, na rua, no curto espaço de tempo destinado às refeições, e até no leito  o seu pensamento não deixava um só instante que fôsse  de incidir sôbre a realização do trabalho em projecto."

Gomes Monteiro, "Vencidos da Vida"   pp.118-119. Ed. Romano Torres, Lisboa, 1944.

19/09/2021

06/08/2021

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Leiria, 6 de Agosto de 1939 Sparkenbroke. Nada que se compare com The Fountain; mas ainda assim uma grande coisa. Tinha há pouco acabado de fazer uma leitura do Eça, numa necessidade imperiosa de Europa nesta nossa cardenha das letras. Apesar daquela debilidade almofadada de ironia, fiquei em relativa paz. A cabo, ao cabo, O Crime do Padre Amaro não ficava mal de todo ao lado de Madame Bovary.
Mas, por graça ou desgraça, a Europa nem começa em Leiria, nem acaba em Yonville. Depois de se ler um inglês deste tamanho, é que se vê bem que, quando toca mesmo a quebrados cá na literatura, as autênticas fronteira dela são os montes Urais e o meridiano de Greenwich.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 100, 1941, Coimbra.

29/06/2021

Feira do livro da Maia... de 3 a 12 de Julho... Fórum Maia junto à Biblioteca

 

De 2 a 14 de Julho a Livraria Edições 50kg estará encerrada na rua Faria Guimarães porque estará a participar  nesta feira.

27/06/2021

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Graham Greene, "Viagens com a minha tia", pág. 61, Livraria Bertrand, 1977.

 

25/12/2020

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São Martinho de Anta, Natal de 1940 Quem quiser saber o que é a desigualdade de classes, e não estiver para ler quantas bibliotecas se escreveram sobre isso, pegue numa espingarda, vá à caça, apanhe uma «grade» e regresse a casa ao lado dos companheiros carregados de perdizes.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 178, 1941, Coimbra.

13/08/2020

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 "Volta-se para mim o Fernando, e com aquelle ar obstinado que caracterisa o seu bello, resoluto espirito de trabalhador e de combatente, diz, pouco mais ou menos, isto:

- Publicando o nosso pensamento. Alarguemos o circulo da nossa intimidade; fallemos a quem quizer lêr; inspiremo-nos no ideal do nosso tempo - a Perfeição pela Liberdade; integremos a Arte no Progresso. Talvez isso seja util para os outros, como o é, decerto, para nós. Livremo-nos do convivio litterario, com a sua gente suspeita. Ponhamos de parte os merdas; vamos fallar a almas.

*
Ha vinte e quatro horas que esta resolução foi tomada. Julgo-a rasoavel. Homens da penna, querendo intervir, realisamos essa intervenção com a penna. É esse o campo de batalha do escriptor que, como homem de acção, tem o seu logar reservado em todos os combates.
Estou só. Penso muito a frio. Essa resolução, hei de mantel-a.
Estou farto d'isto, - d'esta gente e até de mim. Provei cenaculos de taboletas generosas: houve charlatães que me illudiram como um papalvo, com os seus meritos de papelão apregoados como prodigios e as suas consciencias de lama doiradas de adjectivos; fallaram-me em apostolado, em insurreição, n'uma Humanidade a redimir entre cantos... Esta revolta, mesmo cochichada, breve se abandonou, e no 《lendemain》, trahido o proprio cerebro por um pataco, já o povo repugnava e a multidão era odiosa.
Alguem que lê isto sabe que não minto, e juro que sinto vergonha, por ter sido logrado por uma certa geração, cem vezes mais estupida do que eu. É isso que eu nunca me perdoarei, e o que faz com que me aborreça de mim proprio, - isso, e os dias que passo sem um grito nem um protesto. "

Fernando Reis - Mayer Garção, "Os Vermelhos - notas de dois refractários, Publicação Quinzenal, nr. 1, pp. 8-9, Lisboa, 1897

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07/08/2020

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Gerês, 7 de Agosto de 1949 – Nada poderá escandalizar tanto o homem médio de hoje, o burguês que se considera, e é, a trave mestra do presente edifício social, do que a afirmação de que será precisamente ele o coveiro dessa caricatura a que chama a civilização cristã. E, contudo, os factos falam por si. Embora cada época se queixe de que em nenhuma outra a degradação chegou a tal ponto, a verdade é que nunca, como agora, uma classe justificou tão completamente o seu fim. Pode-se dar a prova disso de todas as maneiras, mas é talvez na literatura que o caso se apresenta com maior evidência. Enquanto que no romantismo, por exemplo, o espírito era centrípeto, o poeta polarizando, com consciência própria e alheia, o clima moral e intelectual da sociedade em que vivia – um Byron a empolgar a Europa inteira e a ser a sua expressão –, nos nossos dias pode Sartre dizer mil verdades, que toda a gente se negará a reconhecer-se no que ele escreve, a confessar que é assim negra e porca a sua vida. Uma grande, uma trágica onda de mistificação tolda a realidade do nosso tempo. E o indivíduo – o médico, o advogado, o negociante, o funcionário – que tem a alma suja de mil cobardias, de mil aberrações e de mil compromissos, nega-se a reconhecê-lo, a ver n’O Muro a fotografia da sua inconfessada impotência ou secreta devassidão. O espírito deixou de ser um guia e um freio. Na medida em que o seu cristal é um espelho e uma acusação, desvia-se dele o rosto ou quebra-se. Todos querem navegar de luzes apagadas. O contrabando da vida faz-se na escuridão.
Enquanto o homem é capaz de se reconhecer nos próprios erros, o mal não é grave. A tragédia começa quando ele, relapso nos vícios e perversões, em consciência se considera um monumento de dignidade e permanência.
Então, Roma tem os dias contados, e o jogo vai começar de novo.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pp. 36-37, Coimbra Editora, 1955.

06/08/2020

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Troia e as areias brancas, invasoras, palhetadas de mica, avançando a estrangular o corredor d’entrada dos navios, e para além de Troia o mar intermino, com gargalha d’espuma em pelotões sobre os brancos d’areia afogados na agua viva, o mar risonho, o mar supremo, com seus mosqueios de chispas causticas, listras claras zebrando-lhe o azul ventre de carpa, e aquelles fundos d’azul pallido, que ao achegarem-se á rocha vem cambiando até ao verde ultramarino. Abaixo de cada ravina ou convulsão violenta das barreiras, um portinho doce, alcatifado de branco, cheio de conchas e algas, onde romanescos saveiros se balançam: – e um tal silencio, um socego, que as mesmas gaivotas caminham com o acento circumflexo das azas, á procura d’uma exclamação mais alta, p’ra velarem…”
Fialho d’Almeida, “Os Gatos – Vol. V”, pp. 12-13, 4.ª ed., Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1921.


14/07/2020

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Leiria, 14 de Julho de 1939 Tenho a impressão de que sequei por dentro. Leio, leio, leio, mas não escrevo coisa com coisa. De resto, de que vale escrever estas porcarias que eu escrevo, se por vinte escudos tenho aqui Charles Morgan à cabeceira?!

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 99, 1941, Coimbra.

12/07/2020

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Durante o confinamento a leitura e releitura da Peregrinação e da História Trágico-Marītima foi uma alegria...


11/07/2020

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"Desde o início, os guerreiros de elite dependiam de ligações a Quioto que requeriam um certo grau de alfabetização cultural. Durante o período de Kamakura, um número significativo de xoguns provinha de famílias nobres de Quioto, sem qualquer identidade militar propriamente dita. Os regimes de guerreiros de Kamakura e depois de Quioto, bem como pequenos governos locais, procuravam talentos entre as famílias nobres de grau intermédio. Assim, não era de admirar que os guerreiros literatos de elite participassem e protegessem a arte nas suas inúmeras formas - desde coleccionar arte e escrever poesia à fundação de templos e imagens budistas e à criação de obras de arte religiosas. A cidade de Kamakura tinha até o seu próprio sistema de templos budistas Zen que reproduziam o de Kyoto.
Para guerreiros com ambições a títulos associados à corte, escrever era essencial para interagir com a nobreza de elite e com o clero. Contudo, não devemos pensar na poesia no sentido moderno do termo: como uma actividade de lazer, um passatempo sem outra função que não fosse tecer comentários sobre a sociedade contemporânea. A poesia, no Japão pré-moderno, podia ser usada para comentar acontecimentos correntes, mas, mais importante que isso, a poesia demonstrava o próprio conhecimento da literatura chinesa e japonesa. Escrever bem, em termos de conteúdo e de forma - a caligrafia também interessa -, era um meio de os nobres de Quioto ascenderem profissionalmente. O monje Jien trocava poesias com Yoritomo, o que deu origem a uma relação mutuamente benéfica; Jien precisava de garantir direitos para as suas terras, e Yoritomo queria obter informações através dele. As pessoas também escreviam poesia juntas, como uma actividade social, associando poemas entre si; um cavaleiro de elite podia ser exposto à humilhação pública se não conseguisse escrever devidamente."

Michael Wert, Samurais - Uma história concisa, pp. 66-67, Esfera dos Livros, Lx, 2020.

09/07/2020

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Coimbra, 9 de Julho de 1949 –Em conversas com um amigo, discutimos esta manhã se a táctica que nos resta não será enveredar pela solução do século XVIII. Livros sem nome de autor, impressos clandestinamente
Mas o anonimato meteu-me sempre confusão. Sou um homem directo, de jogo franco, descoberto, amigo de pegar o toiro pelos cornos. Além disso tenho da arte uma ideia individualista, cada pedra da catedral marcada com a sigla do pedreiro que a lavrou.
É claro que, em última análise, votarei pela catedral contra a assinatura do canteiro…
Todas as catacumbas são legítimas.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 33, Coimbra Editora, 1955.

04/07/2020

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Coimbra, 4 de Julho de 1949 – Fazer uma literatura o mais perto possível da clandestinidade, mas publicável, é a única esperança de salvação que resta ao artista. Em guerra com o presente, mas impressa nele, a sua obra poderá ter certa grandeza. Mesmo que não consiga os louros que se dão aos puros guerrilheiros, que se coroam, mas que se desarmam, talvez conquiste a simpatia que se dá a quem renega o seu tempo, nem o quer vender ao futuro.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 31, Coimbra Editora, 1955.

27/06/2020

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"PAPOS E MILONGAS

DIZIA UM
Meu lunfa, lalau azarado está aqui. Fiz um otário com cinco giripócas, dois enforcados e um abobrão; depois mandei a chuca de uma coroa, que só tinha uns picholés, mas um James Bond estava na minha cola e, quando eu quis fazer o esquinaço, fui guindado. O tiruncho me tacou o bracelete e eu fui falar com o majurengo. Positão. Entrei no flagra. O papa-gente, na metralhadora, era uma coisa.
Resultado: Águas de Carandiru, meu irmão da ôpa.

DIZIA O OUTRO
Tu és um vagau pé de chinelo. O bonzão aqui, só mete a mão em combuca, por um pororó leguete; nem sou do espianto, nem do escruncho, nem do atraque. Meu negócio é tomar na maciota. Sou vigário linha da frente, meu chapa.
Os estácios entram na minha, fácil, fácil. O meu pla é gostoso. E até hoje não caí do cavalo.
Manja essa. Larguei o violino na mão do judeu do brexó, que me passou às mães, um arame firme; depois deixei a guitarra com o portuga do buraco quente, que abonou o papai com mil cruzeirão.
Como tu vê, tou largando a minha brasa, na praça, e não vou entrar, caindo do burro.
Para mim, na tiragem só dá ôlho de vidro.

E O OUTRO
Pois eu, meu chaporeba, sou da marijuana. Fatura horrores ali no lixão. Numa só pavuna eu marreto vários pacáus, e cada fininho vale um Santos Dumont. Os tiras estão sempre de olofotes, mas o vivaldino tem vagólio na campana.
Até hoje, só puxei uma, na casa do cão. Foi quando a Excelência me tacou três anos de galera e dois de medida.
Mas agora estou na libertina e o negócio é levantar uma nota traficando a xibaba e, se os cherloques meterem uma escama em cima, tá na cara; um vai amanhecer com a bôca cheia de formiga.
Morou?
Ziriguidum pra você.

O OUTRO AINDA
Estás por fora, ó ligação. Vou salivar. Cruzei com uma mina e quase entrei de gaiato.
Apanhei meu pé de borracha e fui sassaricar pela aí. Tirei linha com uma ragaza e ela gamou na hora. Se mandamos pro esquisito. O hotel das estrêlas tava legal às pampas. Bitoca vai, bitoca vem, tu já se mancou, né? Mas na hora da onça beber água, lá se vem os mega de cara comprida. Positório. Partimos pruma candonga, que não foi bolinho, não. No meio da confusa a muxaxa deu o pirolito e o vagolino aqui, teve de se rebolar, porque os cavaleiros da meganha entraram firmes de rabo de galo.
A dança de rato engrossou. Dei uma na tampa do milico, que o escamoso ainda está rodando; depois me arranquei no caranguejo e recebi uma chuva de azeitonas quentes; quase me queimaram as antenas.
Meu liga, enfrentar a raça não é mole, não.

DEPOIS O OUTRO
Vê se te manca, ó migué. Pra mim êsse papo é furado. Se quiseres um papo firme, mora na minha: Eu já puxei um môfo. Já fui, várias vezes cidadão Carandiru. Nunca fui da moleza. Meu negócio era tomar na marra, e nunca dei arrêglo a tira ravêsso. Já topei cada dança de rato de fechar o tempo. Arribite estourou na minha telha que nem pipocas no tacho. Quase me vestiram o camisolão.
Mas hoje tou no cachimbo da paz. Tou limpo com os homens. Dou um duro lavando cavalo cego, pra dar uma papa de bom pra minha cachanga e os cagasebo.
Larguei mão de ser vago-mestre. Pendurei as chuteiras."

Felisbelo da Silva, "Dicionário de Gíria dos Marginais". Editora Prelúdio, São Paulo, s/d.

25/05/2020

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Coimbra, 25 de Maio de 1949 – O Marquês de Sade. Um calafrio que só as leituras proibidas dão. A gente volta cada página arrepiado, com a sensação de que está a meter a alma no Inferno. E é essa inquietação que todos os livros deveriam provocar. Uma incerteza, um pavor crescente, um medo de cada vírgula. A segurança burguesa de que as suas leituras foram prèviamente policiadas, e de que tudo o que soletra é castílhico, canónico, arcádico, só pode degradar o espírito. O homem necessita do pecado para viver, como de especiarias para comer. Julgo mesmo que o futuro se esforçará por contrariar cada vez mais a sonolência beócia das páginas cor-de-rosa. Em lugar de pudins, livros com dinamite dentro.
Sade. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, e li-o com a emoção dum garoto que está a roubar peras num quintal. Quanto à pornografia, há comunicados oficiais piores.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 22, Coimbra Editora, 1955.

19/05/2020

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Coimbra, 19 de Maio de 1949 – Cansado. Não de escrever, nem de lutar, mas de correr atrás do cão que manqueja. Passa-se a vida a desfazer teias de aranha. Por detrás de cada resistência não está nada.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 18, Coimbra Editora, 1955.

18/05/2020

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Coimbra, 18 de Maio de 1945 Não há palavras para deixar testemunho de certas dores e certas humilhações. Por mais que se imagine, não se pode fazer ideia do que seria a vergonha dos filhos de certas épocas, ofendidos na dignidade de homens e cidadãos. Quando o futuro quiser saber o que se passou neste tempo, a História há-de dizer coisas de arrepiar os cabelos. Matanças, campos de concentração, o espesinhamento metódico de tudo quanto era limpo e tinha uma significação luminosa. Mas nada disto dará uma pálida ideia do que foi a tragédia de viver agora. Um escarro na cara não tem expressão. Sente-se.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 96, 1954, Coimbra.

05/05/2020

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Lisboa, 5 de Maio de 1944 No Jardim Zoológico. Um leão magnífico no cio, e duas leoas, uma absolutamente em menopausa, e outra ainda válida mas inapetente. E então foi a coisa mais espantosa que se pode imaginar: aquela força maciça e soberana, irresistível, a gemer humilhada diante duma fêmea desdenhosa. Os músculos queriam ter firmeza, mas amoleciam; a juba queria ter divindade, mas iriçava-se de despeito; o rugido queria ser trovão, e acabava num ronco libidinoso e pedinte. E no meio desta caricatura aparecia o sexo, vicioso, pornográfico, inútil e repugnante como qualquer dos pedaços de carne da alimentação, desprezados pelo chão da jaula.
De olhos fitos no leão, o meu instinto de animal menos poderoso acompanhou com ânsia durante largo tempo aquela degradação. E ou fosse cansaço, ou real entendimento do que significava o meu triunfo, o que é verdade é que o leão chegou-se a um canto, deitou-se, e, como que envergonhado de mim, escondeu a cabeça.
Haverá na natureza o sentido do ridículo como em nós?

Miguel Torga, “Diário III”, pp 36-37, 1954, Coimbra.

22/04/2020

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Coimbra, 22 de Abril de 1949 – O homem citadino não consegue continuadores. O político julga-se insubstituível; o literato cuida que depois dele ninguém mais saberá escrever; o industrial pensa que o seu génio empreendedor estancou as fontes da habilidade comercial.
Só o camponês deixa herdeiros. Exactamente porque nenhum homem da terra se considera excepção, pode ensinar naturalmente ao filho todas as aquisições da sua experiência, e torná-lo um igual e um sucessor.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 13, Coimbra Editora, 1955.

31/03/2020

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"Quase todos os viajantes que no século XVIII escreveram sobre os costumes em Portugal mencionam a natural familiaridade dos portugueses - e das portuguesas em especial - com os piolhos. Talvez a estranheza manifestada provenha mais da 'catança' que todos faziam sem qualquer rebuço ou ocultação do que propriamente da existência desses parasitas nas cabeças de homens, mulheres e crianças. Ora tal profusão desses insectos não era exclusiva dos portugueses. No que respeitava à nobreza e à burguesia ela provinha do uso das cabeleiras nos homens e dos penteados nas mulheres, e em toda a Europa se usavam cabeleiras e tais penteados, certamente com os mesmos riscos. As cabeleiras eram caras e quem as podia ter em número suficiente para as substituir, a fim de serem tratadas, acumulava as condições de criação dos insectos; os penteados das mulheres, pela quantidade de polvilhos, de pomadas e de postiços, penteados que se não desmanchavam todas as noites, cabeleiras que se não lavavam, faziam de cada cabeça um caldo de cultura. Por isso o italiano Vittorelli escrevia satiricamente: "A senhora alimenta no seu topete um batalhão secreto e é tal a quantidade de habitantes que muitos se tornam cavaleiros andantes." Portanto, o que acontecia aos portugueses da nobreza e da burguesia era o que, em maior ou menor escala, sucedia em toda a Europa e especialmente nos países do Sul, mais quentes.
Quanto às classes populares, independentes das modas mas sujeitas aos costumes, a devastação dos insectos fazia-se moderadamente, pois era crença comum que o piolho 'limpava' o sangue. A 'catança', em uso tanto nas classes mais elevadas como nas classes populares, era, ao mesmo tempo, uma operação de saneamento e de voluptuosidade."

Castelo Branco Chaves, "Os livros de viagens em Portugal no Século XVIII e a sua Projecção Europeia, pp. 38-39, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.

20/03/2020

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Acatando as medidas de contenção que a DGS apela para fazer face ao surto do novo corona vírus, a Livraria Edições 50kg opta por privilegiar a venda de livros através dos meios digitais e a respectiva distribuição pelo correio com os portes oferecidos para o território nacional. Durante este período incerto estarei na livraria, no horário habitual, apenas a executar trabalhos de encadernação. Saúde e cumprimentos a todos. Obrigado.

Rui Azevedo Ribeiro. 

Instagram: #livrariaedicoes50kg

06/03/2020

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"A minha vida foi tão extraordinariamente infeliz que não podia acabar como a da maioria dos desgraçados. Quando se ler este papel, eu estarei gozando a minha primeira hora de repouso. Não deixo nada. Deixo um exemplo. "

Camilo Castelo Branco, 22 de Novembro de 1886.





06/02/2020

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Coimbra, 6 de Fevereiro de 1935 A sina dos homens! Daqui a trinta anos já ninguém sabe que Gary Cooper existiu. E, contudo, a cena da flor que vi há pouco num filme dele é tão bela como a Vénus de Milo, como a Vitória de Samotrácia, como um hino de S. Francisco de Assis.
Gravar, riscar, esculpir, cavar numa pedra, num papiro, num papel, mas, em última análise, escrever – por ser a única maneira de eternizar a expressão.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 17, 1941, Coimbra.

02/02/2020

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Coimbra, 2 de Fevereiro de 1950 – A tristeza do progresso ainda não matou tudo. Hoje vi uma carroça puxada por um burro, onde o dono tinha posto este aviso: Em rodagem!”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 73, Coimbra Editora, 1955.

01/02/2020

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«O Regicídio» por Alberto de Sousa
“– Diziam os jornais, meu patrão, que o arquiduque ficou cravado de balas como uma espumadeira. O assassino despejou todas as balas.
– Caramba! Anda-se depressa nesses negócios, senhora Muller. A rapidez é tudo. Eu, num caso semelhante, compraria uma browning. Parece não valer nada, é pequena como um brinquedo, mas com ela a senhora pode matar em dois minutos vinte arquiduques, sejam eles corpulentos ou magros. Aqui para nós, senhora Muller, há sempre mais probabilidade de acertar num arquiduque corpulento do que num arquiduque magro. Teve-se a prova em Portugal. A senhora lembra-se dessa história do rei varado de balas? Era também do género do arquiduque, corpulento como tudo. Ora bem, senhora Muller, eu agora vou ao meu restaurante O Cálice. Se alguém vier buscar o rafeiro – já recebi uma prestaçãozinha por conta –, a senhora fará o favor de lhe dizer que o animal se encontra no meu canil de campo, que acabo de lhe cortar as orelhas e não está em condições de viajar enquanto não cicatrizarem; poderia apanhar frio. Entregue a chave à porteira.”

Jaroslav Hasek, “O Valente Soldado Chvéĭk”, pág. 14, Portugália Editora, Lisboa, s/d. Trad. Alexandre Cabral. Capa de Paulo Guilherme.

30/01/2020

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"TEORIA ECONÓMICA

 Qual pesa mais: metade de um frango vivo ou metade de um frango morto, perguntou-me à queima-roupa. Metade de um frango vivo, respondi, após breve reflexão, explicando que o frango morto ainda que não tivesse sido degolado, sangrado e depenado, estaria por certo desidratado. E logo um sorriso sagaz a coroar de erro a minha resposta: entendo perfeitamente o raciocínio, diga-me apenas onde encontrar metade de um frango vivo para confirmar a teoria."

Jorge Roque, "Cão Celeste nr. 3", pág. 13, Maio de 2013.

29/01/2020

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"A CIGANA NA CARVOARIA

...a venda do carvão fazia-se por pesos: pesos de metal (pedra), outro carvão e dor. Toda a loja negra era sempre mais fria que o exterior. Até na neve, até na noite a loja arrefecia os de dentro. Mais fria: empedrado de um chão negro de pós soltos, e a poeira na sala mesmo cheia. Preta. Iluminada (dia ou noite). Preta. Mesmo. Armários poucos. Ou um só. E nesse armário a tentação de um género novo, o das lixívias, dos detergentes, do sal e porventura da farinha. Brancuras.
O importante era haver branco. Nem todo o negro, nem todo ele de carvão, nem tudo nunca. O branco lavaria mesmo que a si mesmo na esterilidade de ninguém jamais vir a comprâ-lo. Branco imortal, mesmo. Pós do branco.
Nos limiares passava uma cigana (1). De freguesoa. Ir e comprar, saber os preços, pagar por tudo. Com ela a brancura do olhar aberto. Levava. Ninguém o notaria sem invejas, reacções várias. O múltiplo acidente da inveja desse olhar branco ardente da cigana. Ou do seu avental. Elegância. Ou do seu corpo versado. Elegância (2). Ou de mais. Do possível gerador da cigana, ao sol que houvesse.
Ora um dia a cigana excitou-os demais. O bastante para todos se porem a cortar nela, quando saiu compras feitas. Ela, 5 quilos de carvão bem pesado. Mais os atrasados de uma dívida, que de todo furtava à memória da carvoeira. E a patroa: que a casa dela é negra (e a patroa era apenas carvoeira, já se sabe...) que a porcaria assim, que a pestilência assado.
Só faltava e responderam, à inveja extante:
- Pois no que dizeis sobeja inveja, e falta o que na casa da cigana mais há, para não falar da Alma. A alegria (3)."

Álvaro Lapa, "Arco-íris - Cadernos de Ideias Literárias V", pp. 43-44, Outubro de 1978.

(1) 'L. De Vasconcellos diz com referência às mulheres ciganas que viu no Cadaval em 1887 e às que viu na feira de S. João em Évora em 1888 que são feíssimas. As que eu tenho visto eram feias, mas a imundície e os farrapos que as cobriam contribuíam sem dúvida para augmentar essa impressão. Mas outros observadores, entre os quaes algumas damas, dizem-me terem visto algumas (nas Caldas da Rainha, no Algarve, etc.) bonitas, uma ou outra até digna de ser bella. A belleza da cigana é porém de curta duração: pouco depois dos vinte annos desaparece-lhe o viço da mocidade. D'ahi em parte a causa da má impressão dos observadores, como L. de Vasconcellos'. (F. Adolpho Coelho, "Os ciganos de Portugal", ed. Imprensa Nacional, 1892; pág. 184).
(2) "Alguns dão saltos e pulos prodigiosos. Um correspondente de Barbacena conta que um, chamado Joaquim Canhoto, com dois pulos fez cair de um telhado uma navalha que lá tinham posto". (F. A. Coelho, ibid. pág. 185).
(3) "Fazem crer que um animal velho e cansado é vivo e bravo, pondo-lhes em cima a palma da mão, em que escondem uma agulha, com que o picam, para que pinoteie". (F. A. Coelho, ibid. pág. 204).
"Segundo uma informação, em tempo um cigano foi a Villa-Viçosa fallar ao paracho para lhe enterrar o pae, e como o padre lhe pedisse 2$400 réis, aquele cigano disse-lhe que vivo não valia o pae esse dinheiro, que não dava mais de 500 réis; e como o padre não se quiz satisfazer com tal offerta, o cigano marchou de noite com os seus, abandonando o cadáver insepulto na casa onde estavam". (F. A. Coelho, ibid. pág. 223).

28/01/2020

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Fazem-me perguntas e não posso senão dizer a que ponto todos os homens me parecem fantoches, a que ponto me espanto por ver a vida continuar, e não posso senão dizer que os suicidas são para mim os únicos mortos, os únicos verdadeiramente respeitados. Sobre mim desabam logo interrogações severas. Que diabo espero eu, nesse caso? E é verdade. É verdade que não me matei. O facto aliás nota-se à légua. A qualquer hora do dia se o pode verificar. O infame mais rasca está até em condições de me pôr a mão em cima e desatar a rir. Está certo, não me matei. Mas que prazer podem voçês sentir ante essa observação tão deprimente? Pois estou, estou vivo. Como outro qualquer. Não o digo para me desculpar. Não me matei e se o não fiz não foi por não ter pensado nisso. Anda há bocado. Olhe, dizia eu para comigo, seria coisa duma simplicidade infantil. Punha logo a andar uma data de ideias. E ainda por cima a única testemunha do que isso comporta até sou eu. Não me matei e tudo isso se desfaz num escárnio esmagador. Caríssima mó, não me desandes agora da cabeça. Que estava a dizer? Ah, pois. Dentre todas as ideias a do suicídio é afinal a que distrai melhor um homem. Mas dito isto, vamos lá, silêncio. Matem-se, ou então não se matem. Mas não andem praí a arrastar as vossas lesmas da agonia, esses vossos cadáveres tão antecipados, não mostrem como quem não quer a coisa o enchumaço na algibeira, essa coronha de revólver que irresistivelmente reclama um biqueiro no cu. Não andem para aí, com esse incessante arquejo, a insultar o verdadeiro suicídio. Mais baixo, mil vezes mais baixo do que este que se espanta e pergunta porquê este fogão a gás ou este elevador, é o porco voraz que após compreender a grandeza de semelhante destino vive à sombra da mançanilheira sem jamais adormecer, essoutro que tratando dos negócios a si mesmo reserva uma hora por dia de fúnebre desespero.”

Louis Aragon, “Tratado do Estilo”, pp. 57-8, Antígona, Lisboa, 1995. Trad: Júlio Henriques.

20/01/2020

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PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.


Manuel Bandeira, "Antologia Poética ", pág. 64, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1981.

18/01/2020

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Não se admire o leitor de me ver discretear assim de cadeira sobre o assunto de tanta magnitude: eu também já me atirei às investigações históricas, tendo a fortuna de resolver, satisfatória e definitivamente, um dos mais árduos e capitais problemas da história moderna, a saber: onde foi que a George Sand «armou» pela primeira vez o marido. E não posso encarecer as canseiras, as vigílias, as meditações que me causaram as respectivas, inúmeras, indispensáveis pesquisas. Mas consegui, e para conhecimento universal aqui deixo consignado o fruto do meu labor. O facto deu-se no ano de 1825, dentro da gruta (depois milagrosa) de Lourdes.
E segundo me revelou uma vidente mística, muito relacionada com o céu, foi esse caso que deu origem ao aparecimento da Virgem. Eis o que ela me contou:
No clube dos arcanjos da pena amarela, o mais maledicente dos páramos celestes, esse acontecimento foi comentado tão ostensiva e desbragadamente que chegou aos ouvidos da Nossa Senhora, a qual lá tem sempre as suas espias, para saber o que murmuravam a seu respeito, pois que não a pouparam com dúvidas indecentes acerca da sua virgindade, quando ela deu entrada no Paraíso. Os pormenores do acto lúbrico, exagerados talvez pelos eróticos arcanjos, e as alusões à amenidade do sítio, inspiraram à Nossa Senhora desejos de o visitar, o que fez com certa dificuldade, graças à relutância do Padre Eterno em outorgar a indispensável licença. Tão agradada ficou do conforto e pitoresco da caverna que ali voltou várias vezes até se encontrar com a «beata Bernadeta»
O resto é sobejamente conhecido.
E aqui está como os carnais desvios da George Sand abriram para a França essa prodigiosa fonte de devoção espiritual e lucros materiais sem par no mundo.
Não há dúvida: Deus escreve direito por linhas tortas…”

M. Teixeira-Gomes, “2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pp. 144-145, Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.

16/01/2020

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PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
.....................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
                            e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumo-
                                                                     tórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango
                                                              argentino.

Manuel Bandeira, "Antologia Poética", pp. 62-63, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1981.

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"De resto, no século XVIII viajou-se muito pelo simples interesse de conhecer outras terras e outras gentes, diferentes leis e diversos costumes. Não são só os diplomatas e os doentes que se deslocam no globo, uns enviados pelos seus governos, outros pelos seus médicos; agora viajam também os artistas e os escritores, os filósofos e os naturalistas, os ricos curiosos e os nababos enfastiados. Alguns dos viajantes estrangeiros que escreveram sobre os portugueses, uma das pechas culturais que lhes apontavam era a de não viajarem. Viajarem pela Europa qureriam eles ter dito, pois logo informavam que o português só saía da pátria para ir ao Brasil, à África e às Índias orientais - o que, aliás, para exotismo bastava e dava sobra. Somente, sob este aspecto, os portugueses foram mais exportadores dos costumes da sua terra do que importadores de exotismos, que eles consideravam bárbaros.
O francês, o inglês, o alemão que não  podiam viajar liam livros de viagens. Assim, nas literaturas europeias setecentistas, com excepção das de língua portuguesa e castelhana, os livros de viagens abundavam e sucediam-se.
(...) Os filósofos e os enciclopedista aproveitavam os testemunhos dos viajantes em ilustração das suas teses e reforço dos seus argumentos, tendentes ao abalo dos princípios racionais em que a sociedade vivia organizada. A variedade de crenças, a multiplicidade de religiões, a diversidade moral, as diversas formas de governar e de os homens se constituírem em sociedades, o 'bom selvagem', ajudavam os filósofos a minar a Autoridade, consubstanciada na Igreja Católica e na instituição monárquica.
Neste crescente e cada  vez mais amplo movimento literário, sob os signos do exotismo, da crítica e do ataque aos malefícios do obscurantismo do dogma e do Poder autoritário, começaram a destacar-se com particularidade os livros dedicados às jornadas e permanências na Península Ibérica.
No geral, os viajantes entravam em Espanha já com ideias preconcebidas. Vinham, por assim dizer, colher exemplos que confirmassem e ilustrassem as suas teses, todas elas anteriores à observação e à análise. Compunham assim o quadro de duas nações supersticiosas, fanáticas, atrasadas, bárbaras, e ridiculamente ignorantes, onde imperavam o clero e dois reis absolutos. Fiados em Voltaire, em Montesquieu, em D'Argens, em La Harpe, que nunca haviam passado os Pirinéus, confirmavam que para cá desses montes governavam a Inquisição e um clero ignaro dominava os reis e mantinha o fanatismo dos povos. Aqui, nos dois países da Espanha, mantinha-se praticamente íntegras a ordem que a autoridade real sustentava, a crença nos dogmas, o poder absoluto e a certa ciência dos monarcas - conjunto de alvos excelentes para os protestantes e para filósofos deístas ou simplesmente ateus. Na verdade, a maioria dos livros de viagens na Península que foram publicados no século XVIII participam dos dois combates que então se travavam na Europa: pela supremacia do Protestantismo, destacadamente nos três primeiros quartos do século; e pela abolição dos governos monárquicos absolutos, em particular no último quarto do século, sob inspiração maçónica."

Castelo Branco Chaves, "Os Livros de Viagens em Portugal no Século XVIII e a Sua Projecção Europeia", pp. 10-12, Biblioteca Breve, 1977.

15/01/2020

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Coimbra, 15 de Janeiro de 1950 –Dizem os jornais que na Alemanha um inventor conseguiu fazer voar as pessoas no vácuo. Uma espécie de centrifugador ergue-as do chão, e elas flutuam. Ora a literatura de há vinte anos a esta parte lembra-me um aparelho desses. De Proust para cá, é sempre a perder o pé na terra. Podem eles falar em nome do telúrico e do humano. Deixá-lo! Podem escrever palavrões e descrever cenas sexuais com toda a pornografia. Deixá-lo! Os livros não têm força, nem verdade.
Em medicina, o órgão que se sente é um órgão doente. E estes escritores sentem demais o pénis. É um péssimo sinal.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 69, Coimbra Editora, 1955.

10/01/2020

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"É urgente pedirmos que cesse em Portugal de escrever quem deixar puder de o fazer. Só o que novo for virá presumivelmente a ocupar lugar na história da poesia, mas essa novidade, em vez de cultivada por si e em si mesma, consistirá antes no resplendor que sempre envolve e acompanha uma voz própria e pessoal, de tal maneira que com ela se confunde mas dela nunca pôde prescindir em tempo algum. Na poesia de um criador, a propriedade ou personalidade são o 'que', a novidade o 'como'. A novidade é o rosto onde se esconde um poeta."

Ruy Belo, "Na Senda da Poesia", pág. 69, União Gráfica, 1969.

09/01/2020

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"Sempre o pudor de quem escreve existiu. Lembra-me aquela confissão de Cesário Verde: 'Ora, meu querido amigo, o que lhe peço é que, conversando com o Dr. Sousa Martins, lhe dês a perceber que eu não sou o Sr. Verde, empregado no comércio. Eu não posso bem explicar-te, mas a tua muita amizade compreende os meus escrúpulos.'
(...) Compram-se, muitas vezes com amizade, moeda mais forte que o dólar, críticos que digam bem. Leva-se a este domínio íntimo o velho princípio dos contratos: do ut des. Louvamos os outros para que nos louvem a nós. Fazemos-lhes favores para que, no momento oportuno, no--los façam a nós. O leitor raramente repara. Chama-lhe a atenção, na página literária, o anúncio de um livro, volta a encontrar uma referência ao mesmo na secção de crítica, solicita-o uma entrevista que talvez o próprio autor tenha redigido e, mal se descuida, entra-lhe pelos olhos dentro a fotografia que aparece não se sabe bem a propósito de quê. Negociam-se comercialmente valores humanos que até aqui o pudor velava. A publicidade instala-se na própria consciência. Há o perigo de que o escritor, ao ouvir e ver tudo aquilo, se convença, tão longe foi a cadeia, de que não é ele que se está a adular a si próprio
Tomará como crítica válida para a delimitação da sua capacidade aquilo que, iludido, diz aos seus próprios ouvidos, como quem não quer a coisa. Assim se perde uma actividade nobre, que permite a correção dos defeitos e garante, em última análise, a evolução, o crescimento, condição de vida."

Ruy Belo, "Na Senda da Poesia", pp. 67-68, União Gráfica, 1969.

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"Lia Jorge Amado... Não admiro Jorge Amado. Da última vez que ele esteve em Lisboa tive a fraqueza de o conhecer e sabe o que ele me desejou?
- Diga lá, já agora.
Êxito, calcule. Não sabe como me ofendeu. Compreendi. Eu sei que, antes do lançamento de 'Dona Flor e seus dois maridos' Jorge Amado já tinha assegurados mil e quinhentos contos... Êxito, em vida, em Portugal?"

Ruy Belo, "Na Senda da Poesia", pp. 43-44, União Gráfica, 1969.

07/01/2020

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A VIAGEM, ENFIM


Isto de ter sempre o mesmo sonho todas as noites torna-se aborrecido.
Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família «vamos lá fazer essa viagem». Primeiro entravam a mulher e as duas crianças, depois os pais, ele instalava-se ao volante e pronto, não havia lugar para os sogros! Era sempre a mesma coisa. Por mais que empurrassem, não conseguiam metê-los lá dentro.
Acordava a suar, empurrando ainda qualquer coisa que não estava lá.
A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia.
Mas nada. Lá vinha sempre, todas as noites. É verdade que empurrava menos, talvez os calmantes, mas continuava naquele desespero de não conseguir enfiar os sogros no carro alucinante.
Os sogros disseram-lhe que não se interessavam em ir, não faziam questão, já estavam velhos para viagens.
Os pais prontificaram-se a ceder os lugares deles.
Toda a família colaborava, mas o sonho continuava.
Chegou a fazer experiências, a meter a família completa no velho Citroën arrastadeira. E conseguia, lá se metiam todos, mais ao menos apertados mas entravam. Mas no sonho não.
A coisa tornava-se desesperante.
Porque é que não vais ao Mora? Ele é psicanalista, explica-te, tira-te isso – insistia a mulher, já arreliada, e preocupada também, com aquelas viagens nocturnas e frustradas em que ele se envolvia sem culpa.
O Mora era amigo de infância, nem sequer permitia que ele pagasse, era extraordinário! Às vezes até ia lá jantar.
E respondeu à mulher:
Tens razão, Xuxa, vou mesmo, que isto assim não pode ser. Tens sempre razão, menina.
Deu-lhe um beijo e atirou-se para o consultório do Mora. Contou tudo. O Mora mandou-lhe contar mais, o passado também, que sendo amigos de infância, o passado continua sempre oculto, ao que disse. Deitado, contou-lhe o que lhe veio à cabeça. E a coisa pareceu esclarecer-se. O que ele precisava era de derivar, sabem, encontrar qualquer coisa além do carro e da viagem que não fazia em sonhos. Derivar. Substituir o carro. Agradeceu e convidou o Mora para jantar no sábado. O Mora não podia e deu-lhe uma palmada nas costas.
Chegou a casa aliviado e esclareceu a Xuxa:
Vou derivar, menina.
Derivar?
Sim, substituir o carro e tudo o mais, excepto tu, as crianças, os velhos e a casa. Amo-te mas vou derivar.
Xuxa concordou. Desde que derivar resolvesse o caso, ele que derivasse quanto fosse preciso.
Nessa noite ainda teve o sonho e acordou estafado de tanto empurrar os sogros.
No dia seguinte avisou para o emprego que ia mais tarde, foi ao Banco buscar o que sobrava e entregou-se a uma moto, uma Rudge poderosa e em segunda mão. Estava a derivar em cheio.
O sonho foi-se diluindo. Cada vez empurrava menos, com grande satisfação da mulher.
Então, após ter passado um fim-de-semana a mexer na máquina para ver se percebia alguma coisa e a dar volta pela vizinhança de capacete preto e amarelo enfiado na cabeça, deixando o carro na garagem, sentiu-se livre.
E era verdade.
À noite não sonhou. No dia seguinte a Xuxa disse-lhe que até parecia dez anos antes.
Tudo voltou à normalidade, os sogros deixaram de se preocupar com a viagem, as crianças entusiasmaram-se com os estoiros da moto. E o carro na garagem.
E, de repente, tornou a sonhar. O sonho.
Assim: saiu de casa, foi até ao carro e disse à família «vamos lá fazer essa viagem». A mulher e as crianças entraram, depois os pais, e ele instalou-se ao volante. E não havia lugar para os sogros! Começaram a empurrar para os meter lá dentro, e nada. Então virou-se para a garagem. Estava um pouco diferente mas a moto continuava lá dentro. Deixou tudo, montou a moto, pôs o chapéu de palha e avançou pela estrada. Uma estrada larga, muito aberta a tudo. Pareceu-lhe já a ter visto alguma vez. Olhou para trás e lá ao longe, à porta da casa, continuavam a empurrar-lhe os sogros. Acenou uma despedida, acelerou e continuou, olhando árvores e nuvens.
Ainda não voltou.”


Mário-Henrique Leiria, “Contos do Gin-Tonic”, pp. 117-199, Editorial Estampa, 2. ª ed., 1976.