Vilancete Entre mim mesmo e mim não sei que se alevantou, que tão meu imigo sou. Uns tempos, com grande engano, vivi eu mesmo comigo, agora no mor perigo se me descobre o mor dano. Caro custa um desengano e pois me este não matou quão caro que me custou. De mim me sou feito alheio, entre o cuidado e cuidado está um mal derramado que por mal grande me veio. Nova dor, novo receio foi este que me tomou: assim me tem, assim estou.
BERNARDIM RIBEIRO
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Eu não sou, eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro. MÁRIO SÁ-CARNEIRO |
CORRUPTELAS DE O’NEILL E DE VITOR SILVA TAVARES
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Sá de Miranda Carneiro
comigo me desavim eu não sou eu nem sou o outro sou posto em todo perigo sou qualquer coisa de intermédio não posso viver comigo pilar da ponte de tédio não posso viver sem mim que vai de mim para o Outro
ALEXANDRE O´NEILL
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Eu não sou, eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte do Tejo
VITOR SILVA TAVARES
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25/07/2017
ENTRE BERNARDIM E SÁ CARNEIRO...
04/11/2010
Por que não existe um poema mais tipográfico...
MANUCURE de Mário Sá-Carneiro
Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Súbita sensação inexplicável de ternura,
Tudo me incluo em Mim – piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas – ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
Fora: dia de Maio em luz
E sol – dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Nem podem tolerar – e apenas forcados
Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há-de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes –
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas...
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim...
Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
Chegam tenuamente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto Fui...
Eis como, pouco a pouco, se me foca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram...
Leve inflexão a sinusar...
Fino arrepio cristalizado...
Inatingível deslocamento...
Veloz faúlha atmosférica...
E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por inúmeras intersecções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.
É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira...
Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação –
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito!...
Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Oiro!
– Que rendas outros bailados!
Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
Que vértices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias...
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos – pêle-mêle...
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...
– Ó beleza futurista das mercadorias!
– Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
– Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros... –
Mas, acima de tudo,
Como bailam faiscantes,
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos –
Negras, vermelhas, azuis ou verdes –
Gritos de actual e Comércio & Indústria
Em trânsito cosmopolita:
FRÁGIL! FRÁGIL!
843 – AG LISBON
492 – WR MADRID
Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
À minha volta. E a que mágicas, e m verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco – célere,
Imponderável, esbelto, leviano...
– Olha as mesas... Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar às cabriolas,
Em séries instantâneas de quadrados
Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados...
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café...
E, mais alto, em planos oblíquos,
Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
Deslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
Vá lá, se erguem também na sarabanda...
Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas,
Em insondáveis divergências...
– Quanto à minha chávena banal de porcelana?
Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a oiro emite...
...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, ases – na poeira multicolor –.
Junto de mim ressoa um timbre:
Laivos sonoros!
Era o que faltava na paisagem...
As ondas acústicas ainda mais a sutilizam:
Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,
Lá se esgueiram gentis, franzinas corças de Alma...
Pede uma voz um número ao telefone:
Norte - 2, 0, 5, 7...
E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:
ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA
Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...
Não tem fim a maravilha!
Um novo turbilhão de ondas prateadas
Se alarga em ecos circulares, rútilos, farfalhantes
Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...
-Meus olhos extenuaram de Beleza!
Inefável devaneio penumbroso-
Descem-me as pálpebras vislumbradamente...
.........................................................................
...Começam-me a lembrar anéis de jade
De certas mãos que um dia possuí-
E ei-los, de sortilégio, já enroscando o Ar...
Lembram-me beijos -e sobem
Marchetações a carmim...
Divergem hélices lantejoulares...
Abrem-se cristas, fendem-se gumes...
Pequenos timbres de ouro se enclavinham...
Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...
Quebram-se estrelas, soçobram plumas...
Dorido, para roubar meus olhos à riqueza,
Fincadamente os cerro...
Embalde! Não há defesa:
Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,
Durante a escuridão -
Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...
- Ó mágica teatral da atmosfera,
- Ó mágica contemporânea - pois só nós,
Os de Hoje, te dobramos e fremimos!
.............................................................
Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados!
Eu próprio sinto-me ir transmitindo pelo ar, aos novelos!
Eia! Eia! Eia!...
(Como tudo é diferente
Irrealizado a gás:
De livres-pensadores, as mesas fluídicas,
Diluídas,
São já como eu católicas, e são como eu monárquicas!...)
......................................................................
......................................................................
Sereno,
Em minha face assenta-se um estrangeiro
Que desdobra o Matin.
Meus olhos, já tranqüilos de espaço,
Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,
Começam a vibrar
Toda a nova sensibilidade tipográfica.
Eh-lá! Grosso normando das manchettes em sensação!
Itálico afilado das crônicas diárias!
Corpo 12 romano, instalado, burguês e confortável!
Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!
Tipo miudinho dos pequenos anúncios!
Meu elzevir de curvas pederastas!...
E os ornamentos tipográficos, as vinhetas,
As grossas tarjas negras,
Os puzzles frívolos - e as aspas... os acentos...
Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!
- Abecedários antigos e modernos,
Gregos, góticos,
Eslavos, árabes, latinos -,
Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...
(Hip! Hip-lá! Nova simpatia onomatopaica,
Recendente da beleza alfabética pura:
Uu-um... kess-kress... vliiim... tlin... blong… flong… flak…
Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)
Mas o estrangeiro vira a página,
Lê os telegramas da Última-Hora,
Tão leve como a folha do jornal,
Num rodopio de letras,
Todo o mundo repousa em suas mãos!
-Hurrah! Por vós, indústria tipográfica!
-Hurrah! Por vós, empresas jornalísticas!
....................................................................................
....................................................................................
Tudo isto, porém, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar
Pois toda esta Beleza ondeia lá também:
Números e letras, firmas e cartazes -
Altos-relevos, ornamentação!... -
Palavras em liberdade, sons sem-fio,
A maravilha parisiense dos balcões de zinco,
Nos bares... não sei porquê...
-Un vermouth-cassis... Un Pernod à l’eau...
Un amer-citron... une grenadine…
………………………………………………..
………………………………………………..
…………………………………………………
Levanto-me…
-Derrota!
Ao fundo, em mayor excesso, há espelhos que refletem
Tudo quanto oscila pelo Ar:
Mais belo através deles,
A mais sutil destaque...
-Ó sonho desprendido, ó luar errado,
Nunca em meus versos poderei cantar,
Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro,
Essa beleza pura!
Rolo de mim por uma escada abaixo...
Minhas mãos aperreio,
Esqueço-me de todo da idéia de que as pintava...
E os dentes a ranger, os olhos desviados,
Sem chapéu, como um possesso:
Decido-me!
Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:
-Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...
Tum... tum... tum... tum tum tum tum...
VLIIIMIIIIM...
BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH!...
FUTSCH! FUTSCH!...
PRÁ Á K K!...
Poemas Dispersos, Lisboa – Maio de 1915
Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Súbita sensação inexplicável de ternura,
Tudo me incluo em Mim – piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas – ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
Fora: dia de Maio em luz
E sol – dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Nem podem tolerar – e apenas forcados
Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há-de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes –
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas...
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim...
Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
Chegam tenuamente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto Fui...
Eis como, pouco a pouco, se me foca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram...
Leve inflexão a sinusar...
Fino arrepio cristalizado...
Inatingível deslocamento...
Veloz faúlha atmosférica...
E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por inúmeras intersecções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.
É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira...
Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação –
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito!...
Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Oiro!
– Que rendas outros bailados!
Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
Que vértices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias...
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos – pêle-mêle...
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...
– Ó beleza futurista das mercadorias!
– Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
– Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros... –
Mas, acima de tudo,
Como bailam faiscantes,
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos –
Negras, vermelhas, azuis ou verdes –
Gritos de actual e Comércio & Indústria
Em trânsito cosmopolita:
FRÁGIL! FRÁGIL!
843 – AG LISBON
492 – WR MADRID
Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
À minha volta. E a que mágicas, e m verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco – célere,
Imponderável, esbelto, leviano...
– Olha as mesas... Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar às cabriolas,
Em séries instantâneas de quadrados
Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados...
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café...
E, mais alto, em planos oblíquos,
Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
Deslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
Vá lá, se erguem também na sarabanda...
Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre – em mutações contínuas,
Em insondáveis divergências...
– Quanto à minha chávena banal de porcelana?
Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a oiro emite...
...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, ases – na poeira multicolor –.
APOTEOSE.
....................................................................Junto de mim ressoa um timbre:
Laivos sonoros!
Era o que faltava na paisagem...
As ondas acústicas ainda mais a sutilizam:
Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,
Lá se esgueiram gentis, franzinas corças de Alma...
Pede uma voz um número ao telefone:
Norte - 2, 0, 5, 7...
E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:
ASSUNÇÃO DA BELEZA NUMÉRICA
Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...
Não tem fim a maravilha!
Um novo turbilhão de ondas prateadas
Se alarga em ecos circulares, rútilos, farfalhantes
Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...
-Meus olhos extenuaram de Beleza!
Inefável devaneio penumbroso-
Descem-me as pálpebras vislumbradamente...
.........................................................................
...Começam-me a lembrar anéis de jade
De certas mãos que um dia possuí-
E ei-los, de sortilégio, já enroscando o Ar...
Lembram-me beijos -e sobem
Marchetações a carmim...
Divergem hélices lantejoulares...
Abrem-se cristas, fendem-se gumes...
Pequenos timbres de ouro se enclavinham...
Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...
Quebram-se estrelas, soçobram plumas...
Dorido, para roubar meus olhos à riqueza,
Fincadamente os cerro...
Embalde! Não há defesa:
Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,
Durante a escuridão -
Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...
- Ó mágica teatral da atmosfera,
- Ó mágica contemporânea - pois só nós,
Os de Hoje, te dobramos e fremimos!
.............................................................
Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados!
Eu próprio sinto-me ir transmitindo pelo ar, aos novelos!
Eia! Eia! Eia!...
(Como tudo é diferente
Irrealizado a gás:
De livres-pensadores, as mesas fluídicas,
Diluídas,
São já como eu católicas, e são como eu monárquicas!...)
......................................................................
......................................................................
Sereno,
Em minha face assenta-se um estrangeiro
Que desdobra o Matin.
Meus olhos, já tranqüilos de espaço,
Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,
Começam a vibrar
Toda a nova sensibilidade tipográfica.
Eh-lá! Grosso normando das manchettes em sensação!
Itálico afilado das crônicas diárias!
Corpo 12 romano, instalado, burguês e confortável!
Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!
Tipo miudinho dos pequenos anúncios!
Meu elzevir de curvas pederastas!...
E os ornamentos tipográficos, as vinhetas,
As grossas tarjas negras,
Os puzzles frívolos - e as aspas... os acentos...
Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá!
- Abecedários antigos e modernos,
Gregos, góticos,
Eslavos, árabes, latinos -,
Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...
(Hip! Hip-lá! Nova simpatia onomatopaica,
Recendente da beleza alfabética pura:
Uu-um... kess-kress... vliiim... tlin... blong… flong… flak…
Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)
Mas o estrangeiro vira a página,
Lê os telegramas da Última-Hora,
Tão leve como a folha do jornal,
Num rodopio de letras,
Todo o mundo repousa em suas mãos!
-Hurrah! Por vós, indústria tipográfica!
-Hurrah! Por vós, empresas jornalísticas!
....................................................................................
....................................................................................
Tudo isto, porém, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar
Pois toda esta Beleza ondeia lá também:
Números e letras, firmas e cartazes -
Altos-relevos, ornamentação!... -
Palavras em liberdade, sons sem-fio,
Marinetti + Picasso = PARIS < SANTA RITA PIN-
TOR + FERNANDO PESSOA
ALVARO DE CAMPOS
! ! ! !
Antes de me erguer lembra-me ainda,TOR + FERNANDO PESSOA
ALVARO DE CAMPOS
! ! ! !
A maravilha parisiense dos balcões de zinco,
Nos bares... não sei porquê...
-Un vermouth-cassis... Un Pernod à l’eau...
Un amer-citron... une grenadine…
………………………………………………..
………………………………………………..
…………………………………………………
Levanto-me…
-Derrota!
Ao fundo, em mayor excesso, há espelhos que refletem
Tudo quanto oscila pelo Ar:
Mais belo através deles,
A mais sutil destaque...
-Ó sonho desprendido, ó luar errado,
Nunca em meus versos poderei cantar,
Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro,
Essa beleza pura!
Rolo de mim por uma escada abaixo...
Minhas mãos aperreio,
Esqueço-me de todo da idéia de que as pintava...
E os dentes a ranger, os olhos desviados,
Sem chapéu, como um possesso:
Decido-me!
Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:
-Hilá! Hilá! Hilá-hô! Eh! Eh!...
Tum... tum... tum... tum tum tum tum...
VLIIIMIIIIM...
BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH... BRÁ-ÔH!...
FUTSCH! FUTSCH!...
ZING-TANG... ZING-TANG...
TANG... TANG... TANG...
TANG... TANG... TANG...
PRÁ Á K K!...
Poemas Dispersos, Lisboa – Maio de 1915
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