Recentemente,
um crítico que muito prezo perguntava: «Estarão os novos poetas portugueses em
mau caminho, como se tem afirmado algumas vezes? Ou sofrerá antes a nova poesia
duma simples crise de crescimento?»
Porque
o pudor convencional da crítica literária impede cada qual de falar de si
próprio – quando somos poetas e críticos, o leitor deve sempre, ao contrário do
que lhe têm ensinado e é desconfiar, meditar um pouco na transferência que,
nessas condições, o exercício da crítica implica. Não direi que vejamos nos
outros as nossas virtudes, se as tivermos (embora, quantas vezes e por
generosidade, acabemos vendo-as), mas posso afirmar que, talvez mais agudamente
que os outros em si – próprios, discriminamos neles quantas perplexidades
sofremos quotidianamente neste exercício de agudeza em prol do advento humano
que a actividade poética de certo modo é. E assim, se não defendo o ponto de
vista do poeta anglo-saxónico T. S. Eliot, segundo quem só o poeta pode bem
interpretar os poetas, inclino-me a crer que a experiência pessoal, ainda que
fruste, prolonga todavia a outras regiões do conhecimento a análise que um
apenas crítico porventura estruturaria melhor. E sem dúvida que essa extensão,
implicando profundidade, será preferível a uma estruturação tanto mais perigosa
para a compreensão da poesia, quanto mais longe desta se erguerem os postulados
em que assenta. Acho oportuno esclarecer que esta distância, que acabo de
insinuar, não é um biombo para, por trás dele, eu me repoltrear,
desdenhosamente, na famigerada «intuição», e gozar pelas frinchas o aliás real
espectáculo de a razão estorcendo-se nas dores de barriga, que são o resultado
inevitável da poemofagia.
A mim
próprio podem recordar-me que sou dos que mais tem vociferado contra certos
caminhos da novíssima poesia. Não nego: serei sempre, a menos que o
demónio incubo do academismo se apodere
de mim, inimigo da cantiga dormente, da lamúria pessoal, ou da convicção apenas
intelectual com que os novos mundos são por vezes invocados. Primeiro, porque,
em defesa da qualidade real da cultura, devemos combater todos os compadrios e
agrupamentos escolares, inclusive os que se formam em torno das boas intenções.
E, em segundo e principal lugar, porque me parece que a poesia, para possuir
aquela eficiência que lhe desejamos, para afinal ser poesia, necessita de uma
veemência, de uma paixão, de uma força convocatória das mais primárias volições
do homem, o que é incompatível, quer com os trenos mais ou menos amáveis, quer
com a expressão de superioridade satisfeita de quem tem os paraísos por sua
conta.
Há
pouco tempo o mundo em guerra encarou com espanto, que me permitirão que chame
simulado, a ferocidade de que o ser humano é capaz, a degradação que pode
baixar e ser rebaixado, e é de todos os dias a exibição impudente de um rol de
falsidades, que, ainda que as suscitam. Em face de tudo isto, como aos estudos
de sociologia do conhecimento pertence mostrar a que ponto são «independentes»
as apregoadas verdades, assim à poesia cabe, sob todas as formas de criação
formal, mostrar, não em pílulas retóricas a miséria em que é confinada a vida,
mas em ritmos densos de horror a fraca medida humana que a tais confins
corresponde.
As
visões idílicas do futuro, quando esse futuro se demora dolorosamente, roubam,
à acção da poesia sobre as massas susceptíveis de a receberem, o desejado
vigor; porque nem tem ânimo suficiente para esperar com paciência e com
determinação, e de antemão sabendo que não haverá idílios. Ora, entendo que a
desilusão duradoura é preço demasiado caro para uma ilusão fugidia.
Os
poetas não têm direito de alimentar os sonhos cómodos, e nem são cómodos certos
sonhos burgueses. Se há perplexidade, se há essa crise de crescimento (de que
falava o crítico que citei), é esta: a de estarem quase todos pagando à sua
própria consciência o preço dos entusiasmos fáceis.
Depois,
que haja crises de crescimento, falhas, dúvidas e perplexidades, é o melhor que
à poesia devemos desejar. Se nada disto houvesse que haveria? Por certo que uma
frutificação imensa, muita laranja, muita cereja, muito pilrito, consoante as
árvores forem laranjeiras, cerejeiras ou os pilriteiros da cantiga. Por certo
que, além disto, as conservas de Alcobaça de tudo isto. Por certo, quem sabe?,
uma multidão sequiosa esgotando os livros de versos.
O essencial é que as nossas
próprias perplexidades nos não levem a generosamente considerar igualmente a
sério aqueles que são e aquele que querem ser. E, em consequência, a julgar perplexidade
autêntica o que apenas será pacata desistência de alguns realejos cansados ou
curteza de reportório de outros que se não cansaram ainda.
1948.
Jorge de Sena, “O reino da estupidez”, Livraria Morais
Editora, pp.35-38, Lx, 1961.
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