28/11/2012

PERPLEXIDADE DA POESIA...




                Recentemente, um crítico que muito prezo perguntava: «Estarão os novos poetas portugueses em mau caminho, como se tem afirmado algumas vezes? Ou sofrerá antes a nova poesia duma simples crise de crescimento?»
                Porque o pudor convencional da crítica literária impede cada qual de falar de si próprio – quando somos poetas e críticos, o leitor deve sempre, ao contrário do que lhe têm ensinado e é desconfiar, meditar um pouco na transferência que, nessas condições, o exercício da crítica implica. Não direi que vejamos nos outros as nossas virtudes, se as tivermos (embora, quantas vezes e por generosidade, acabemos vendo-as), mas posso afirmar que, talvez mais agudamente que os outros em si – próprios, discriminamos neles quantas perplexidades sofremos quotidianamente neste exercício de agudeza em prol do advento humano que a actividade poética de certo modo é. E assim, se não defendo o ponto de vista do poeta anglo-saxónico T. S. Eliot, segundo quem só o poeta pode bem interpretar os poetas, inclino-me a crer que a experiência pessoal, ainda que fruste, prolonga todavia a outras regiões do conhecimento a análise que um apenas crítico porventura estruturaria melhor. E sem dúvida que essa extensão, implicando profundidade, será preferível a uma estruturação tanto mais perigosa para a compreensão da poesia, quanto mais longe desta se erguerem os postulados em que assenta. Acho oportuno esclarecer que esta distância, que acabo de insinuar, não é um biombo para, por trás dele, eu me repoltrear, desdenhosamente, na famigerada «intuição», e gozar pelas frinchas o aliás real espectáculo de a razão estorcendo-se nas dores de barriga, que são o resultado inevitável da poemofagia.
                A mim próprio podem recordar-me que sou dos que mais tem vociferado contra certos caminhos da novíssima poesia. Não nego: serei sempre, a menos que o demónio  incubo do academismo se apodere de mim, inimigo da cantiga dormente, da lamúria pessoal, ou da convicção apenas intelectual com que os novos mundos são por vezes invocados. Primeiro, porque, em defesa da qualidade real da cultura, devemos combater todos os compadrios e agrupamentos escolares, inclusive os que se formam em torno das boas intenções. E, em segundo e principal lugar, porque me parece que a poesia, para possuir aquela eficiência que lhe desejamos, para afinal ser poesia, necessita de uma veemência, de uma paixão, de uma força convocatória das mais primárias volições do homem, o que é incompatível, quer com os trenos mais ou menos amáveis, quer com a expressão de superioridade satisfeita de quem tem os paraísos por sua conta.
                Há pouco tempo o mundo em guerra encarou com espanto, que me permitirão que chame simulado, a ferocidade de que o ser humano é capaz, a degradação que pode baixar e ser rebaixado, e é de todos os dias a exibição impudente de um rol de falsidades, que, ainda que as suscitam. Em face de tudo isto, como aos estudos de sociologia do conhecimento pertence mostrar a que ponto são «independentes» as apregoadas verdades, assim à poesia cabe, sob todas as formas de criação formal, mostrar, não em pílulas retóricas a miséria em que é confinada a vida, mas em ritmos densos de horror a fraca medida humana que a tais confins corresponde.
                As visões idílicas do futuro, quando esse futuro se demora dolorosamente, roubam, à acção da poesia sobre as massas susceptíveis de a receberem, o desejado vigor; porque nem tem ânimo suficiente para esperar com paciência e com determinação, e de antemão sabendo que não haverá idílios. Ora, entendo que a desilusão duradoura é preço demasiado caro para uma ilusão fugidia.
                Os poetas não têm direito de alimentar os sonhos cómodos, e nem são cómodos certos sonhos burgueses. Se há perplexidade, se há essa crise de crescimento (de que falava o crítico que citei), é esta: a de estarem quase todos pagando à sua própria consciência o preço dos entusiasmos fáceis.
                Depois, que haja crises de crescimento, falhas, dúvidas e perplexidades, é o melhor que à poesia devemos desejar. Se nada disto houvesse que haveria? Por certo que uma frutificação imensa, muita laranja, muita cereja, muito pilrito, consoante as árvores forem laranjeiras, cerejeiras ou os pilriteiros da cantiga. Por certo que, além disto, as conservas de Alcobaça de tudo isto. Por certo, quem sabe?, uma multidão sequiosa esgotando os livros de versos.
O essencial é que as nossas próprias perplexidades nos não levem a generosamente considerar igualmente a sério aqueles que são e aquele que querem ser. E, em consequência, a julgar perplexidade autêntica o que apenas será pacata desistência de alguns realejos cansados ou curteza de reportório de outros que se não cansaram ainda.
1948.

Jorge de Sena, “O reino da estupidez”, Livraria Morais Editora, pp.35-38, Lx, 1961.

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