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06/08/2021

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Leiria, 6 de Agosto de 1939 Sparkenbroke. Nada que se compare com The Fountain; mas ainda assim uma grande coisa. Tinha há pouco acabado de fazer uma leitura do Eça, numa necessidade imperiosa de Europa nesta nossa cardenha das letras. Apesar daquela debilidade almofadada de ironia, fiquei em relativa paz. A cabo, ao cabo, O Crime do Padre Amaro não ficava mal de todo ao lado de Madame Bovary.
Mas, por graça ou desgraça, a Europa nem começa em Leiria, nem acaba em Yonville. Depois de se ler um inglês deste tamanho, é que se vê bem que, quando toca mesmo a quebrados cá na literatura, as autênticas fronteira dela são os montes Urais e o meridiano de Greenwich.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 100, 1941, Coimbra.

25/12/2020

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São Martinho de Anta, Natal de 1940 Quem quiser saber o que é a desigualdade de classes, e não estiver para ler quantas bibliotecas se escreveram sobre isso, pegue numa espingarda, vá à caça, apanhe uma «grade» e regresse a casa ao lado dos companheiros carregados de perdizes.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 178, 1941, Coimbra.

07/08/2020

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Gerês, 7 de Agosto de 1949 – Nada poderá escandalizar tanto o homem médio de hoje, o burguês que se considera, e é, a trave mestra do presente edifício social, do que a afirmação de que será precisamente ele o coveiro dessa caricatura a que chama a civilização cristã. E, contudo, os factos falam por si. Embora cada época se queixe de que em nenhuma outra a degradação chegou a tal ponto, a verdade é que nunca, como agora, uma classe justificou tão completamente o seu fim. Pode-se dar a prova disso de todas as maneiras, mas é talvez na literatura que o caso se apresenta com maior evidência. Enquanto que no romantismo, por exemplo, o espírito era centrípeto, o poeta polarizando, com consciência própria e alheia, o clima moral e intelectual da sociedade em que vivia – um Byron a empolgar a Europa inteira e a ser a sua expressão –, nos nossos dias pode Sartre dizer mil verdades, que toda a gente se negará a reconhecer-se no que ele escreve, a confessar que é assim negra e porca a sua vida. Uma grande, uma trágica onda de mistificação tolda a realidade do nosso tempo. E o indivíduo – o médico, o advogado, o negociante, o funcionário – que tem a alma suja de mil cobardias, de mil aberrações e de mil compromissos, nega-se a reconhecê-lo, a ver n’O Muro a fotografia da sua inconfessada impotência ou secreta devassidão. O espírito deixou de ser um guia e um freio. Na medida em que o seu cristal é um espelho e uma acusação, desvia-se dele o rosto ou quebra-se. Todos querem navegar de luzes apagadas. O contrabando da vida faz-se na escuridão.
Enquanto o homem é capaz de se reconhecer nos próprios erros, o mal não é grave. A tragédia começa quando ele, relapso nos vícios e perversões, em consciência se considera um monumento de dignidade e permanência.
Então, Roma tem os dias contados, e o jogo vai começar de novo.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pp. 36-37, Coimbra Editora, 1955.

14/07/2020

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Leiria, 14 de Julho de 1939 Tenho a impressão de que sequei por dentro. Leio, leio, leio, mas não escrevo coisa com coisa. De resto, de que vale escrever estas porcarias que eu escrevo, se por vinte escudos tenho aqui Charles Morgan à cabeceira?!

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 99, 1941, Coimbra.

09/07/2020

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Coimbra, 9 de Julho de 1949 –Em conversas com um amigo, discutimos esta manhã se a táctica que nos resta não será enveredar pela solução do século XVIII. Livros sem nome de autor, impressos clandestinamente
Mas o anonimato meteu-me sempre confusão. Sou um homem directo, de jogo franco, descoberto, amigo de pegar o toiro pelos cornos. Além disso tenho da arte uma ideia individualista, cada pedra da catedral marcada com a sigla do pedreiro que a lavrou.
É claro que, em última análise, votarei pela catedral contra a assinatura do canteiro…
Todas as catacumbas são legítimas.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 33, Coimbra Editora, 1955.

04/07/2020

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Coimbra, 4 de Julho de 1949 – Fazer uma literatura o mais perto possível da clandestinidade, mas publicável, é a única esperança de salvação que resta ao artista. Em guerra com o presente, mas impressa nele, a sua obra poderá ter certa grandeza. Mesmo que não consiga os louros que se dão aos puros guerrilheiros, que se coroam, mas que se desarmam, talvez conquiste a simpatia que se dá a quem renega o seu tempo, nem o quer vender ao futuro.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 31, Coimbra Editora, 1955.

25/05/2020

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Coimbra, 25 de Maio de 1949 – O Marquês de Sade. Um calafrio que só as leituras proibidas dão. A gente volta cada página arrepiado, com a sensação de que está a meter a alma no Inferno. E é essa inquietação que todos os livros deveriam provocar. Uma incerteza, um pavor crescente, um medo de cada vírgula. A segurança burguesa de que as suas leituras foram prèviamente policiadas, e de que tudo o que soletra é castílhico, canónico, arcádico, só pode degradar o espírito. O homem necessita do pecado para viver, como de especiarias para comer. Julgo mesmo que o futuro se esforçará por contrariar cada vez mais a sonolência beócia das páginas cor-de-rosa. Em lugar de pudins, livros com dinamite dentro.
Sade. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, e li-o com a emoção dum garoto que está a roubar peras num quintal. Quanto à pornografia, há comunicados oficiais piores.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 22, Coimbra Editora, 1955.

19/05/2020

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Coimbra, 19 de Maio de 1949 – Cansado. Não de escrever, nem de lutar, mas de correr atrás do cão que manqueja. Passa-se a vida a desfazer teias de aranha. Por detrás de cada resistência não está nada.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 18, Coimbra Editora, 1955.

18/05/2020

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Coimbra, 18 de Maio de 1945 Não há palavras para deixar testemunho de certas dores e certas humilhações. Por mais que se imagine, não se pode fazer ideia do que seria a vergonha dos filhos de certas épocas, ofendidos na dignidade de homens e cidadãos. Quando o futuro quiser saber o que se passou neste tempo, a História há-de dizer coisas de arrepiar os cabelos. Matanças, campos de concentração, o espesinhamento metódico de tudo quanto era limpo e tinha uma significação luminosa. Mas nada disto dará uma pálida ideia do que foi a tragédia de viver agora. Um escarro na cara não tem expressão. Sente-se.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 96, 1954, Coimbra.

05/05/2020

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Lisboa, 5 de Maio de 1944 No Jardim Zoológico. Um leão magnífico no cio, e duas leoas, uma absolutamente em menopausa, e outra ainda válida mas inapetente. E então foi a coisa mais espantosa que se pode imaginar: aquela força maciça e soberana, irresistível, a gemer humilhada diante duma fêmea desdenhosa. Os músculos queriam ter firmeza, mas amoleciam; a juba queria ter divindade, mas iriçava-se de despeito; o rugido queria ser trovão, e acabava num ronco libidinoso e pedinte. E no meio desta caricatura aparecia o sexo, vicioso, pornográfico, inútil e repugnante como qualquer dos pedaços de carne da alimentação, desprezados pelo chão da jaula.
De olhos fitos no leão, o meu instinto de animal menos poderoso acompanhou com ânsia durante largo tempo aquela degradação. E ou fosse cansaço, ou real entendimento do que significava o meu triunfo, o que é verdade é que o leão chegou-se a um canto, deitou-se, e, como que envergonhado de mim, escondeu a cabeça.
Haverá na natureza o sentido do ridículo como em nós?

Miguel Torga, “Diário III”, pp 36-37, 1954, Coimbra.

22/04/2020

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Coimbra, 22 de Abril de 1949 – O homem citadino não consegue continuadores. O político julga-se insubstituível; o literato cuida que depois dele ninguém mais saberá escrever; o industrial pensa que o seu génio empreendedor estancou as fontes da habilidade comercial.
Só o camponês deixa herdeiros. Exactamente porque nenhum homem da terra se considera excepção, pode ensinar naturalmente ao filho todas as aquisições da sua experiência, e torná-lo um igual e um sucessor.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 13, Coimbra Editora, 1955.

06/02/2020

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Coimbra, 6 de Fevereiro de 1935 A sina dos homens! Daqui a trinta anos já ninguém sabe que Gary Cooper existiu. E, contudo, a cena da flor que vi há pouco num filme dele é tão bela como a Vénus de Milo, como a Vitória de Samotrácia, como um hino de S. Francisco de Assis.
Gravar, riscar, esculpir, cavar numa pedra, num papiro, num papel, mas, em última análise, escrever – por ser a única maneira de eternizar a expressão.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 17, 1941, Coimbra.

02/02/2020

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Coimbra, 2 de Fevereiro de 1950 – A tristeza do progresso ainda não matou tudo. Hoje vi uma carroça puxada por um burro, onde o dono tinha posto este aviso: Em rodagem!”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 73, Coimbra Editora, 1955.

15/01/2020

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Coimbra, 15 de Janeiro de 1950 –Dizem os jornais que na Alemanha um inventor conseguiu fazer voar as pessoas no vácuo. Uma espécie de centrifugador ergue-as do chão, e elas flutuam. Ora a literatura de há vinte anos a esta parte lembra-me um aparelho desses. De Proust para cá, é sempre a perder o pé na terra. Podem eles falar em nome do telúrico e do humano. Deixá-lo! Podem escrever palavrões e descrever cenas sexuais com toda a pornografia. Deixá-lo! Os livros não têm força, nem verdade.
Em medicina, o órgão que se sente é um órgão doente. E estes escritores sentem demais o pénis. É um péssimo sinal.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 69, Coimbra Editora, 1955.

31/12/2019

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Milão, 31 de Dezembro de 1937 Não se pode dormir com tanta gente lá fora, aos uivos, a festejar o ano novo. Como se fosse possível um ano novo ser melhor que o velho!
A grande força da vida é mesmo essa: a unidade. Com muita ciência e paciência lá se consegue contar num tronco, pelas camadas lenhosas, os anos da sua duração. Mas o que ninguém consegue ver naquele feixe de horas é a diferença de oscilação do cedro num dia de trovoada e num dia de sol calmo. Como o vento nivelador, o tempo passa por nós sem deixar covas. Quem se lembra das arritmias passadas, lembra-se de um quimera. Do grande calvário percorrido, não fica em nós senão o eco da monocórdica pancada do coração.
É claro que aqui o Sr. Baptistini do lado, negociante de botas, para quem o negócio correu mal estes 365 dias passados, bebe champagne na esperança de que se lhe tenha acabado o azar hoje e comece a vender muitas botas amanhã. O Senhor Baptistini.
Mas será possível que três ou quatro milhões de pessoas não vão além desse raciocínio rudimentar e utilitário do Senhor Baptistini?!

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 55, 1941, Coimbra.

25/12/2019

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S. Martinho de Anta, Natal de 1940 O pragmatismo do camponês é o que nele de tudo mais me impressiona. A convicção com que se apega a uma semente, a um costume, a uma crença, ao contrário do que se diz, nada tem de obsecado. Só dura na medida em que a razão prática o aconselha.
Fui hoje com o meu Pai à Vila. A página tantas, passámos diante da capela de Santa-Cabeça, advogada da raiva.
Diz o velho:
– Benzeu-se ali muito pão…
E eu:
– E porque é que os senhores não continuam? Por que motivo, agora, em vez de broa benta, mandam dar injecções aos danados?
E ele, que foi ao fundo da minha insinuação:
– Enquanto não se descobria coisa melhor, que remédio tinha a gente senão agarrar-se ao que havia!...

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 179, 1941, Coimbra.

08/12/2019

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Coimbra, 8 de Dezembro de 1933 Médico. Conforme a tradição, mal o bedel disse que sim, que os lentes consentiam que eu receitasse clisteres à humanidade, conhecidos e desconhecidos rasgaram-me da cabeça aos pés. Só deixaram a capa. E aí vim eu pelas ruas fora o mais chegado possível à minha própria realidade: um homem nu, envolto em três metros de negrura, varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem nem para onde vai.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 11, 1941, Coimbra.

03/12/2019

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Coimbra, 3 de Dezembro de 1937 Por mais que faça, não faço nada. Enrodilho-me como as cobras nas matas, sofro, mordo se alguém me toca, e assobio de vez em quando uma ária que ninguém ouve. É de mim, é dos outros, é dos tempos que vão correndo. Mas hei-de morrer assim.
Tenho cá uma fé comigo que ainda há-de aparecer na minha vida alguém que me conte esta história do Erico Veríssimo:
– Filho. Sabe da história do pirú? La gente risca com giz um circolo in torno do pirú. E o cretino do pirú crede que está prêso. – Guarda… la vita é bela, il mondo te chiama. Salta o risco de giz, no seja come o pirú!

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 48, 1941, Coimbra.

08/10/2019

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S. Martinho de Mouros, 8 de Outubro de 1946 Depois de uma pietá no convento de Cárquere a chorar o filho, uma tela na igreja românica desta terra, com um S. Martinho a dividir a capa. O catolicismo banalizou o bispo de Tours de báculo e mitra, mas os artistas persistem na visão de um homem bom (semi-bom, afinal) a repartir a capa com o semelhante. Talvez não seja muito edificante a parcimónia do gesto. Os artistas, porém, sabem até onde o humano é legítimo e santo. Dar metade da capa, é um nobre gesto de solidariedade. Dar a capa inteira e ficar nu, é proibido pela polícia.

Miguel Torga, “Diário IV”, pp. 16-17, 1953, Coimbra.

27/09/2019

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Sabugueiro, 27 de Setembro de 1949
          – Nada, meu Senhor! Acredite: Ninguém tece um fio…
Que tristeza não poder visitar uma aldeia do país sem que o povo se alvoroce a cuidar que é o fisco que o vem desgraçar! Que velha e dolorosa chaga de perseguição a doer-lhe na memória! Nunca o visitaram com amor. Sempre o procuraram para o enganar, mentindo-lhe na religião, no ensino, na economia, na assistência. Por isso continua a espreitar-nos dos buracos como um bicho perseguido, e é com alívio que nos vê partir – a nós, seus irmãos, filhos da mesma terra!
O espelho da nossa traição de civilizados são as aldeias de Portugal.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 51, Coimbra Editora, 1955.