“Gerês,
7 de Agosto de 1949 – Nada poderá escandalizar tanto o homem
médio de hoje, o burguês que se considera, e é, a trave mestra do
presente edifício social, do que a afirmação de que será
precisamente ele o coveiro dessa caricatura a que chama a civilização
cristã. E, contudo, os factos falam por si. Embora cada época se
queixe de que em nenhuma outra a degradação chegou a tal ponto, a
verdade é que nunca, como agora, uma classe justificou tão
completamente o seu fim. Pode-se dar a prova disso de todas as
maneiras, mas é talvez na literatura que o caso se apresenta com
maior evidência. Enquanto que no romantismo, por exemplo, o espírito
era centrípeto, o poeta polarizando, com consciência própria e
alheia, o clima moral e intelectual da sociedade em que vivia – um
Byron a empolgar a Europa inteira e a ser a sua expressão –, nos
nossos dias pode Sartre dizer mil verdades, que toda a gente se
negará a reconhecer-se no que ele escreve, a confessar que é assim
negra e porca a sua vida. Uma grande, uma trágica onda de
mistificação tolda a realidade do nosso tempo. E o indivíduo – o
médico, o advogado, o negociante, o funcionário – que tem a alma
suja de mil cobardias, de mil aberrações e de mil compromissos,
nega-se a reconhecê-lo, a ver n’O Muro a fotografia da sua
inconfessada impotência ou secreta devassidão. O espírito deixou
de ser um guia e um freio. Na medida em que o seu cristal é um
espelho e uma acusação, desvia-se dele o rosto ou quebra-se. Todos
querem navegar de luzes apagadas. O contrabando da vida faz-se na
escuridão.
Enquanto
o homem é capaz de se reconhecer nos próprios erros, o mal não é
grave. A tragédia começa quando ele, relapso nos vícios e
perversões, em consciência se considera um monumento de dignidade e
permanência.
Então,
Roma tem os dias contados, e o jogo vai começar de novo.”
Miguel
Torga, “Diário V”
2ª ed. Revista, pp. 36-37, Coimbra Editora, 1955.