Afinal, isto do líquido à Zygmunt Bauman, ou da velocidade à
Paul Virilio, sem falar desses homeopáticos dos sintomas: os
revistaleiros do Zizek e do Chul-Han que estão tão em voga e eles
próprios autores sintoma na sua produção de rali papers – os
Rolands Barthês desta época, ou a isso se propondo, mas com
desigual talento! Afinal, dizia eu, isto até já o era assim no
tempo do Fialho d’Almeida. A propósito da tentativa de suicídio de
Guy Maupassant.
“Tal
foi a vida de Maupassant durante os dois anos fechados por elle ha
oito dias com uma tentativa de suicídio, e tal deve estar sendo a
esta hora no mundo a vida de setecentos ou oitocentos infelizes,
sacrificados pelas impaciencias do publico a minusculisarem o talento
e o genio em obrinhas litterarias de comprazer e ganha pão. A
«actualidade» em litteratura está-se tornando para os escriptores
um potro abominavel, que é impossivel soffrer por mais d’um certo
tempo.
A
voracidade artistica do publico vae-se complicando d’exigencias de
lambarice: querem-se mets
sempre variados, seja o que fôr, mas bem picante, estrambolico,
archi-maluco.
As
obras d’arte serenas, os livros cristallinamente escriptos para
longas leituras da vida repousada, esses perderam a popularidade e
foram-se ao olvido. As Illusions
Perdues, a
Grandeur
et décadence de
Cezar
Birotteau, a
Bovary,
o
Tarass Boulba, o
David
Copperfield,
e as Memorias
de Barry Lindon,
são para os leitores contemporaneos, pavorosos pezadellos
fastidiosamente longos, e de que só se vão compulsar as bellezas
aos boletins bibliographicos das revistas.
Não
ha tempo para attender deducções longamente architectadas, para
seguir reconstituições de typos á Balzac, machinas psychologicas
coleante, e para ingurgitar o devaneio com as quinze ou trinta
paginas da paisagem zolaista. Hoje capta-se a aura condensando tudo
em paragraphos curtos, dizendo tudo em linguagem inaudita,
louco-lucida, e incisiva, e perturbante entrando na carne em
epilepsias de som, d’emotividade mordente, de vertiginosidade
paradoxal e machiavelica. Uma linha de prosa moderna deve conter o
sumo de cincoenta ou sessenta paginas antigas: cada imagem deve ser
um mundo, e cada notula d’observação uma psychologia humana
fumegante. Escriptor que não dê no papel esta transmissibilidade
d’acção vertiginosa, que não esteja disposto a dar pedaços da
vida em cada volume de 3 fr. e 50, contenha elle embora na
omnipotente phantasia um cosmos prodigioso, seja um revelador
sinistro como Dostoievsky ou Shakespeare, ninguem o escutará se fôr
moroso, e se possuir no modo de visionar o assumpto, essa especie de
delirio agitante dos génios alcoolicos, tão bem iniciado para a
arte em certas allucinações de Poe, Henri Heine, e Villiers de
l’Isle-Adam.
Ao
mesmo tempo a tensão cerebral imposta aos homens de lettras por esta
litteratura exigentissima, nem dá, masculinidade ás creações, nem
tao pouco assenta o publico n’uma permanencia d’escola duradora.
Com o ser physiologicamente uma expressão vital da epoca , ella
ingurgita-se de todas as desfallencias e saburras contemporaneas: tem
o sentimento de mau estar, que é o mal de viver, com zagunchadas
dolorosas que a levam ao pessimismo directamente: tem a acuidade
analytica, sem saude moral, caracteristica das agrupações que
soffrem da vontade, resultado da convicção da anomalia inferior e
do destino falho: tem a vaidade suprema, que exagera tudo, e faz de
mil auto-biographias ridiculas, constantemente assumptos de epopeia:
tem o egoismo mesquinho, o predominio dos impulsos grosseiros e dos
exasperos animaes d’extrema crapula, tem o estylo agitado, a imagem
funebre, o delirio das grandezas no modo d’espargir a côr e
instrumentar a phrase pictural – e a insociabilidade, a colera
impulsiva, a obsessão da palavra technica e preciosa – finalmente,
todos os caracteristicos d’uma sociedade liquidante, e d’uma
litteratura escripta por doidos, devassos tabeticos, e facinoras das
galés.
Ora
como os escriptores não podem deixar de ser a quintessencia dos
détraquements
doentios da sociedade extravagante em que nasceram, resulta que a
obra d’elles reflectirá em amplificado as differentes modalidades
de desequilíbrio que fixei, e essa amplificação descambará ainda
na deformidade, se aos desarranjos que poderemos chamar
profissionaes, accrescentarmos os resultantes da necessidade de
dinheiro, que os força a produzir certo por hora, a produzir á
bruta, e a manter o seu rang
á custa d’uma originalidade buscada a poder d’excitações.
D’exagero em exagero, assim a moderna litteratura foi debochando os
paladares, desviando o ideal do seu límpido vôo para as regiões
classicas do bello, desorientando as sensações, forçando a nota
das catastrophes, explorando o caso raro, arvorando em assumpto
d’arte a anomalia; e falseando parallelamente a isto o destino
educador e sanitariamente intellectual do seu papel, cedendo o passo
aos caprichos da turba, e acceitando por fome a imposição dos
gostos grosseiros, e dos instinctos desregrados da canalha! A ponto,
que chegamos ao seguinte: a litteratura apeada do pontificado mental
das sociedades, industrialisada a beau
marche,
e os seus cultores reduzidos a escripturarios serventes do publico,
que lhes dita revoluções literárias ao semestre, por um figurino
grotesco, paralelo ao dos chapelleiros e alfaiates. Finda a estação,
a moda acaba, e sucede-lhe outra
attinente
às inconstancias do clima, às alturas do sol, e variabilidades da
pressão. N’este corropio os homens de lettras, passados a simples
entretenedores d’ociosidades doentias, a fabricantes de blagues
para matar o tédio, os homens de lettras vão rebentando como esse
Maupassant, em meia duzia d’annos de galope atraz do favor de
gentes futeis e maniacas. Alguns cheios de talento, alguns febris de
genio, mas sem tempo material para produzir obras pujantes, atolam-se
como malditos na banalidade da producção a vapor, da producção
expontanea sem ranhuras, furiosa, accidental, escripta entre lettras
protestadas, para fazer com trezentos e sessenta artigos por anno, as
setecentas libras necessarias ao prégo e á vida facticia dos
restaurants e dos cafés!”
Fialho
d’Almeida,
“Os Gatos – Vol. V”, pp. 96-100, 4.ª ed., Livraria Clássica
Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1921.