ÁLVARO
LAPA
E.
J. M. – A afirmação de «autenticidade» a propósito da sua
pintura parece-me extremamente débil, isto é, nada acrescenta à
sua obra…
A. L. – É débil pelo lado do objecto referido. Qualquer
afirmação em relação à minha pintura merecia uma atribuição
diferente. A falha de objecto é uma questão de método, o que lhe
parece a si inconveniente.
A
«autenticidade» é um rótulo que não descodifica, é um termo que
vai inaugurar uma série de tipo adjectivo. Tem um valor usual, é
moda num determinado círculo e pressupõe que a questão da
«autenticidade» se põe – e não necessariamente em relação à
minha pintura, não sou eu que a provoco –, mas põe-se de uma
maneira ambiente e põe-se, antes de mais, pela suspeita de «não
autenticidade» de uns quantos.
Pode
dizer-se – e concordo – que seja uma questão que não me
pertence, ou pertence no mínimo. O que pertence à pintura da minha
autoria, penso que não é talvez suscitada por esses objectivos, mas
é levantada e aplicada a propósito desses objectivos. Portanto,
pode ser um enredo a que eu não pertenço, ou os objectos não
pertencem necessariamente. É uma categoria fortuita necessária para
desvendar um enredo onde eu não estou. Mas isso funciona a respeito
de categorias históricas mal aplicadas – e isso é um risco
permanente da crítica de arte, na medida em que é exercida sob a
forma de termos adjectivos, de termos classificatórios: o que se
pode pensar (ou admitir) é uma alternativa para esse método
adjectivo. Essa alternativa supõe uma sensibilidade, uma
profissionalização e um esforço de aplicação que não são os da
crítica corrente. Todos os artistas, no fundo, se julgariam credores
de uma análise minúcia, poderíamos dizer, existencial.
A
crítica funcionaria, então, como um horizonte de inteligibilidade,
um horizonte de aproximação. Mas uma crítica dessas não tem o
aspecto afirmativo; tem, pelo contrário, o aspecto negativo,
probabilístico: o aspecto comparativo, mas não hierarquizante, no
sentido, em última análise, da viagem no tempo.
E. J. M. – Mas como é que se pode passar de uma linguagem
visual para uma linguagem verbal?
A. L. – Pode fazer-se isso colaborativamente, através de
descrição de uma operação em termos de outra operação. Esta
passagem pode efectuar-se através de um risco, não apenas de um
condicionamento, mas de um risco, de uma ficção, de uma fábula.
E. J. M. – Mas isso tem sobretudo a ver com a suspeita…
A. L. – …e pode ser-se bem consequente nisso. É uma
questão de mistificação pública mais ou menos completa.
Em relação ao visível ele mesmo – supondo que se pode isolar
este termo, e pode-se na prática através do recolhimento – se eu
estiver só a ver, se V. estiver só a ver, estamos só a ver. Mas em
relação a isso qualquer outra tentativa de substituição da esfera
prática é um abuso, mas o sistema desses abusos é a nossa cultura
corrente, se extrapolamos constantemente dados de experiência.
Uma experiência não se reduz a palavras, a não ser uma experiência
verbal directa, porque nem uma experiência verbal se transmite
noutras palavras.
E. J. M. – Qual a importância do momento da criação?
A. L. – O momento da criação é importante num sentido
alargado, ou seja, o «fazer»: no aspecto técnico executivo e não
no aspecto técnico normativo. De resto, as obras de arte são apenas
isso: superfície de execução.
E. J. M. – O perigo do Kitsch parece-me estar ausente
da sua obra.
A. L. – Não creio que deixe de haver o perigo de um Kitsch
disforme: não formalizado segundo o Kitsch vulgar. O Kitsch
disforme é um empolgamento que pressupõe um valor de arte, neste
caso sendo disforme através de valores – como feio, não feio…
Essa rede é sempre estreita. A ameaça de Kitsch, uma vez
admitida, não me parece poder facilmente resolver-se em favor de
alguém; ou seja, uma interpretação assim de uma obra pode resultar
de um valor de antítese.
E. J. M. – …mas a afectação anti-Kitsch, também
não existe…
A. L. – Talvez seja o mérito do meu falhanço.
Admitidas certas premissas da existência dominante do Kitsch,
não vejo como se possa acreditar que uma obra não o contenha e
consiga comunicar.
O Kitsch é uma concessão, uma permissão, que só através
de uma retórica do heróico é que podíamos encontrar a promessa de
outra coisa.
Mas eu não me convém admitir essas premissas porque são exteriores
ao fazer.
E. J. M. – A comunicação é portanto um problema que se
lhe põe?...
A. L. – O problema da comunicação põe-se-me ansiosamente
como medo de não comunicar.
E. J. M. – Quais são, para si, as obras com um elevado grau
de comunicação?
A. L. – Uma resposta desse tipo vai muito, para mim, no
sentido sentimental, do humano. Isto corresponde a uma ideologia. E
não corresponde talvez mais do que a isso: de que a vocação
expressiva se possa e deva tentar sob essa promessa de encontrar
finalmente um público ideal; se possa orientar no sentido da
satisfação de situações limite, situações extremas que a
motivam e onde por isso a garantia de mentira se torna mínima e a
garantia de com isso tocar alguém se torna máxima.
Isto corresponde talvez, a uma estratégia, a um filão considerável
da história da arte. Estou a pensar no minimalismo, não no sentido
da história da arte, mas por aí justificado.
E. J. M. – O que representa para si o espectador ideal? Ou
então: como deveria eu olhar um quadro seu?
A. L. – A sua maneira de olhar um quadro meu não é, ou não
deveria ser, diferente de mim próprio em estado de espectador.
A crença no espectador ideal, como co-autor, nessas condições, é
um mito do autor.
«O que se pretende pintar não são objectos – derivados do
sentido comum – mas o efeito que eles produzem, sobre um público
ideal, isto é, inexistente». (Catálogo exposição Março 1985).
Penso que isto é um devaneio ontológico.
E. J. M. – Em todo o caso, é no Kitsch que
encontramos a promessa de co-autoria…
A. L. – Essa aflição da co-autoria é um pecado da arte.
Só pela arte se pode resolver essa situação, ou seja, pela forma
renovada e cada vez mais através da crítica, auto-crítica, como
parte do idioma artístico.
E. J. M. – Mas admite a possibilidade de chegar à verdade
da obra…
A. L. – O espectador ideal não é nenhum santo, é uma
função. A sua função é corresponder à obra num sentido muito
próximo, senão idêntico ao do autor. E isso passa-se com certeza
sempre que o autor se motiva nas suas próprias obras, e noutras
obras, em relação à comunicação, entre os vários eus sucessivos
de uma mesma obra do mesmo autor. Ele está em relação aos objectos
de outrem, e até aos seus próprios objectos, numa relação de
descontinuidade em que ele refaz, ou crê que refaz, muito
constantemente, esse percurso desde a origem, à razão da obra.
O espectador ideal não terá que fazer senão isso; não poderá
fazer senão isso.
E. J. M. – …aspirar à razão da obra…
A. L. – Nessa medida, o espectador ideal não se distingue
dum crítico se fizer crítica, nem se distingue do autor se fizer
arte.
A razão da obra é um limite. Um limite nunca atingido, visto que é
um limite.
Mas é desse desafio, dessa dinâmica, que uma história de arte se
faz.
E. J. M. – Como relaciona a razão com a verdade da obra?
A. L. – Talvez o próprio uso, a implicação, do termo
razão assinale um domínio que não é o da verdade. Mas eu usava,
admitia, o termo razão no sentido em que era determinado pela
verdade.
A experiência que se faz directamente em arte é a da verdade, não
a da razão. A experiência da razão é instrumental que era o
terreno onde nos estávamos a colocar, que era o de uma
instrumentalidade – da crítica, do falar…
E. J. M. – Qual é, em arte, o papel do acaso?
A. L. – O acaso é a verdade. Mesmo que seja admitido como
uma estratégia é extremo. É uma vivência extrema, suponho que é
indistinguível da verdade.
E. J. M. – Funciona do mesmo modo na literatura, o acaso?
A. L. – O dispositivo literário tem graus de especialização
em que o acaso funciona plenamente. Funciona pelo lado do objecto e
pelo lado do receptor. O exemplo mais consabido dessa tendência é a
obra final de James Joyce; onde o acaso é incorporado, ou fingido,
num nível respectivamente pleno.
E. J. M. – Um exemplo raríssimo, em todo o caso…
A. L. – São os exemplos que determinam possivelmente, a
evolução das formas no sentido menos atávico.
O que se pode querer atingir senão a verdade nua e crua. A verdade
nua e crua pelo lado do dispositivo é uma exigência. Então é
demonstrável pelas obras mais exigentes…
E. J. M. – Mas pintar e escrever não correspondem a
situações diferentes?...
A. L. – …duas situações diferentes de maleita….
E. J. M. – Ou disponibilidades diferentes?...
A. L. – Suponho que há antes de mais um condicionamento
material.
A literatura pede-me – pode ser por defeito meu – um tipo de
vida, um auto-condicionamento, e a pintura pede-me outro.
Quando é que se declara, pergunta você, a respectiva vontade, a
respectiva vocação. Suponho que tem a ver sobretudo com condições
ambientes. Ou seja, é antes de mais, uma disponibilidade material.
De qualquer modo a diferença é tão pequena entre uma e outra
indisponibilidade material que parece uma questão especiosa…
…são fases. Não sei se o termo é esclarecedor, mas são fases.
E. J. M. – …que correspondem a…
A. L. – Correspondem a resultados. Só retrospectivamente é
que eu verifico que um determinado ano, ou período, foi ocupado em
escrever e outro em pintar.
Também funciona de outra forma, pela razão do reconhecimento. Pela
razão de ser mais reconhecido socialmente como pintor, do que como
escritor, acontece que as solicitações e as encomendas (não é
verdade, mas…), as estimulações, são mais frequentes no caso da
pintura para eu pintar, do que no caso da literatura para eu
escrever.
E. J. M. – A que atribui a falta de solicitações para a
literatura?
A. L. – Por muitos motivos não decifrados.
Admito perfeitamente que o que se faz não tenha eco sobretudo quando
não é acompanhado de uma carreira, de uma insistência, no sentido
sócio-profissional, como é o meu caso.
Talvez a explicação seja essa que você dava do Kitsch, se
acaso funciona também em relação à minha escrita. É porque é
uma escrita antipática, com termos médios de entendimento nulos, ou
quase nulos. É uma escrita inclassificável: como um borrão, um
disparate, uma enormidade
Diga você a sua opinião visto que está situado para isso…
E. J. M. – Penso que a sua escrita não é especialmente
simpática para os leitores habituados ao consumo de obras
«medianas»…
A. L. – Pensa então que eu não consegui furar todo esse
mundo de apatia porque não fui suficientemente empolgante, nem
suficientemente retórico…
E. J. M. – … o que eu dizia é que há uma categoria de
leitores habituados ao consumo de obras «de efeito». Onde por
exemplo a profundidade aparece como um artifício de retórica…
A. L. – No domínio da pintura também existe esse efeito do
qual eu sou, pela via da autenticidade, o respectivo beneficiário,
pelo reconhecimento e notoriedade como pintor (independentemente de
ser desejável ou não) que corresponderia, pelo menos como suspeita,
à vacuidade, pelo menos como você está a equacionar, de um
fenómeno literário como esse.
Talvez, com esse termo do profundo se possa equacionar o problema do
acaso e da necessidade. Ou seja, profundo é onde o acaso e a
necessidade se não distinguem porque são termos admissíveis só
quando se pode sair da respectiva necessidade que a profundidade
implica; a profundidade tem uma consistência espacial, parece
sugerida. E o caso seria pelo lado da disposição técnica aquilo
que pode deixar aparecer esse excesso de, você dizia, memória,
informação, direcções contraditórias, sofrimentos, que não
deixa fazer de outro modo.
…
Eu duvido do interesse da forma final da entrevista. Pode ser muito
circunstancial. Admito que algumas respostas sejam evasivas, ou de
todo falsas, e que depois o confronto seja desanimador.
E. J. M. – Mas o único valor de uma entrevista é, talvez,
o de circunstância.
A. L. – E quanto mais se procura a resposta final, menos se
encontra.
Álvaro
Lapa, entrevista a Eduardo Jorge Madureira, "Vandoma – cadernos
culturais/1", Braga, 1985.