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12/09/2014

ODE (EXPLÍCITA) EM DEFESA DA POESIA NO DIA DE SÃO LUKÁCS




os apparátchiki te detestam
poesia
prima pobre
(veja-se a conversa de benjamin
com brecht /
sobre lukács gabor kutella /
numa tarde de julho
em svendborg)

poesia
fêmea contraditória
te detestam
multifária
mais putifária que a mulher de
putifar
mais ofélia
que hímen de donzela
na ante-sala da loucura de hamlet

poesia
que desvia da norma
e não se encarna na história
divisionária rebelionária visionária
velada / revelada
fazendo strip-tease para teus próprios (duchamp)
celibatários
violẽncia organizada contra a língua
(a míngua)
cotidiana

os apparátchiki te detestam
poesia
porque tua propriedade é a forma
(como diria marx)
e porque não distingues
o dançarino da dança
nem dás a césar o que é de césar
/ não lhe dás a mínima (catulo):
sais com um poema pornô
quando ele pede um hino

serás a hetaera esmeralda
de thomas mann
a dragonária agônica
de asas de sífilis
?
ou um fiapo de sol no olho
selenita de celan
?

ana akhmátova te viu
passeando no jardim
e te jogou nos ombros
feito um renard
de prata mortuária

walter benjamin
que esperava o messias
saindo por um minúsculo
arco da história no
próximo minuto
certamente te conheceu
anunciada por seu angelus novus
milimetricamente inscrita num grão de trigo
no museu de cluny

adorno te exigiu
negativa e dialética
hermética prospéctica emética
recalcitrante

dizes que estás à direita
mas marx (le jeune)
leitor de homero dante goethe
enamorado da gretchen do fausto
sabia que teu lugar é à esquerda
o louco lugar alienado
do coração

e até mesmo lênin
que tinha um rosto parecido com verlaine
e que no entanto (pauvre lélian)
censurou lunatchárski
por ter publicado mais de mil cópias
do poema “150.000.000” de maiakóvski
– papel demais para um poema futurista! –
mesmo lênin sabia
que o idealismo inteligente está mais perto
do materialismo
que o materialismo do materialismo
desinteligente

poesia
te detestam
materialista idealista ista
vão te negar pão e água
(para os inimigos: porrada!)
– és a inimiga
poesia

só que um dervixe ornitólogo khlébnikov
presidente do globo terrestre
morreu de fome em santalov
num travesseiro de manuscritos
encantado pelo riso
faquirizante dos teus olhos

e jákobson roman
(amor / roma)
octogenário plusquesexappealgenário
acaricia com delícia
tuas metáforas e metonímias
enquanto abres de gozo
as alas de crisoprásio de tuas paronomásias
e ele ri do embaraço austero dos savants

e agora mesmo aqui neste monte
alegre das perdizes
dois irmãos siamesmos e um oleiro
de nuvens pignatari
(que hoje se assina signatari)
te amam furiosamente
na garçonnière noigandres
há mais de trinta anos que te amam
e o resultado é esse
poesia
já o sabes
a zorra na geléia
geral
e todo o mundo querendo tricapitar
há mais de trinta anos
esses trigênios vocalistas
/ que idéia é essa de querer plantar
ideogramas no nosso quintal
(sem nenhum laranjal oswald)?
e (mário) desmanchar
a comidinha das crianças?

poesia pois é
poesia

te detestam
lumpenproletária
voluptuária
vigária
elitista piranha do lixo

porque não tens mensagens
o teu conteúdo é a tua forma
e porque és feita de palavras
e não sabes contar nenhuma estória
e por isso és poesia
como cage dizia

ou como
há pouco
augusto
o augusto:

que a flor flore

o colibri colibrisa

e a poesia poesia


Haroldo de Campos, “a educação dos cinco sentidos”, pp. 16-20, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.