“Poesia
e sobrevivência
A
poesia portuguesa afirmou-se principalmente desde meados deste século
através das revistas e, depois, pelas colecções com que algumas
editoras foram desenvolvendo os veios dessa lírica. Se as revistas
foram determinantes ao longo dos anos 50, caracterizando-se também
um determinado ambiente social e político de cafés, de convívio e
de trincheira, a partir de 60 e depois de 70 um certo desafogo
económico e cultural reflectidos na vida editorial fez emergir as
colecções de poesia. Livro após livro, cada, uma ganhou a sua
personalidade, compondo no conjunto uma apreciável biblioteca de
grande responsabilidade cultural.
A
branca colecção da Ática, a verde e creme da Guimarães ou a
rugosa da Portugália sobrevivem ainda hoje nas casas dos nossos
amigos. Umas mais resistente, como a da Centelha, mais cosmopolitas,
como os Cadernos da Dom Quixote, ou persistentes, como a da Moraes.
Na verdade, cada editora procurava prestígio e história,
principalmente na edição de poesia. No porto, a Inova, a Limiar e
depois a Afrontamento e a Gota d’Água deram-nos excelentes livros,
enquanto editoras tão diferentes como a Arcádia, Regra do Jogo,
Presença ou Assírio & Alvim mantinham com orgulho as suas
colecções, em certos casos já com dezenas de títulos.
Desconhecem-se quanto tirava cada edição mas recordam-se as muitas
reedições dos Cadernos Dom Quixote, e sei que a Assírio
habitualmente ia aos 3000 exemplares de cada título. Se é verdade
que andam por aí, já cansados, muito desses livros, a maioria com o
tempo esgotou-se e hoje valem dinheiro nos alfarrabistas.
Mais
importante: de tantas edições de tanta colecção de tanto nome,
sem dúvida fátuos ou turísticos, este empenhamento editorial tomou
visível a assunção de excelentes poetas que hoje pairam na nossa
vida. Nos anos 80, com a seca, a doença do sobreiro e outras
maleitas, veio a morte das editoras de poesia. A Portugália já lá
ia; cede depois a Ática e em 1985 o Círculo de Poesia da Moraes, e
o projecto da Inova com todas as suas doiradas ramificações, e a
Regra do Jogo e os Cadernos de Poesia e Pedra de Canto, e a Licorne e
Poesia e Verdade e depois a Rolim e a Fenda, a Centelha, a Plural, a
&etc. Hoje a edição de poesia em Portugal recolhe o cuidado de
três ou quatro editoras. Há bons poetas com dificuldades de
publicar. Se é verdade que nomes como Herberto, Eugénio, Cesariny,
Sophia, tiram 3000 ou mais exemplares, o sucesso aplica-se quase
exclusivamente aos consagrados. As edições andam pelos 1000 ou 1200
exemplares, para uma venda imediata inferior a 500.
Ocuparíamos
agora páginas a descrever razões, tantas são, mas podemos mesmo
assim apontar o dedo a um país que de estrada em estrada corre
alucinado para uma ideia de progresso há muito posta em saldo pelos
países ditos avançados. E indicaríamos depois um ensino falacioso
e cada vez mais inútil, uma política cultural que, no mínimo, nos
deixa perplexos. Um arrogante desprezo pelo livro. Uma indisfarçável
crise do espírito, e crise da palavra.
A
poesia é, neste momento, uma ave acossada por patos bravos muito bem
colocados num país que há décadas saía das penumbras para logo
ficar entontecido com o excesso de luz chegada das «centrais
nucleares» europeias.
O
quadro só não é mais negro e completamente ocupado pelo desenho de
uma multidão imobilizada, de cócoras a ver concursos televisivos,
telenovelas e thrillers porque, apesar de terem desaparecidos
os suplementos literários dos jornais que em muitos aspectos haviam
substituído as revistas grupais de 50, do empobrecimento do debate,
da vivência cultural, autores tão diferentes como Novalis, Whitman,
São João da Cruz, Baudelaire e Hölderlin tiram hoje 3000
exemplares e rivalizam nos tops com a mais espampanante das
ficções. Poesia Toda de Herberto Helder pode orgulhosamente
atingir os 5000. Antologias como a de Eugénio Andrade ou de Al Berto
vão às dezenas de milhar. Alguns livreiros que antes se recusavam
simplesmente a receber poesia (e eu conheço uma boa dúzia de casos
destes) hoje abriram-lhes as portas, timidamente dão-lhe um canto da
montra e até já a bancada das novidades.
Claro
que a poesia, já aqui se disse, sobreviverá sempre às conjunturas
e ao abrigo que a cada momento se lhe propõe, mas, que diabo!, num
tempo tão apressado, com tantos «itinerários principais» para
cada um ir e infelizmente não vir à sua vida, porque é que a
poesia em Portugal não pode dispor de um simples carreiro, para
chegar, sem tropeções ou portagens, ao coração do seu leitor?”
Manuel
Hermínio Monteiro.
In
“Ler – Livros & Leitores”, n.º 22, Primavera de 1993.