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20/04/2013

Aparentemente é sobre a aparência de parte de uma farpela...




I


A.     E. STURMM, ALFAIATE[1]


Lisboa, Abril.

Meu bom Sturmm. – A sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho, arejando à janela, nas costas de uma cadeira; e assenta tão bem nessas costas de pau, como assentaria nas do comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas de um piloto da barra ou nas de um filósofo, se o houvesse nestes reinos. Quero, pois, severamente dizer que ela não possui individualidade.
      Se V., bom Sturmm, fosse apenas um algibebe, embrulhando a multidão em pano Sedan para lhe tapar a nudez – eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente. Mas V. é alemão, e de Conisberga, cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco com a pena de Emannuel Kant, e legitimamente me surpreende que V. não a use com a mesma sagacidade psicológica.
      Não ignora V. decerto, que ao lado da filosofia da história e de outras filosofias, há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a filosofia do vestuário; e menos ignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda, esta, de superior profundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a ideia.
      Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a ideia perceptível e transmissível nas relações humanas – como o casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais. Mas é a palavra empregada sempre em rigorosa concordância de valor com a ideia? Não, meu Sturmm.
      Quando a ideia é chata ou trivial, alteia-se, revestindo-a de palavras gordas e aparatosas – como todas as que se usam em política.
      Quando a ideia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-a de palavras macias, afagantes, canoras – como todas as que se usam em amor.
      Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar a veemência da ideia – como nos rasgos à Mirabeau – ou rebuscam-se as que pela estranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual – como nos versos de Baudelaire.
      Temos pois que a palavra opera sobre a ideia, ou disfarçando-a ou acentuando-a. Vai-me V. seguindo, perspicaz Sturmm?
      Tudo isto se aplica exactamente às conexões do casaco com o homem.
      Para que talham os alfaiates ingleses certas sobrecasacas longas, rectas, rígidas, com um debrum de austeridade e ressudando virtude por todas as costuras? Para esconder a velhacaria de quem as veste. Você encontra em Londres essas sobrecasacas, nos meetings religiosos, nas sociedades promotoras da moralização dos pequenos patagónios e nos romances de Dickens. E para que talham eles esses fraques audazes, bem acolchoados e ombros, quebrados e cavados de cinta, dando relevo aos quadris – sede da força amorosa? Para acentuar corpos robustos e voluptuosos a que se colam. Você vê desses fraques aos Lovelaces, aos caçadores de dotes e a toda a legião dos entretenus.
      Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do carácter ou do tipo que, cada um, pretende representar entre os seus concidadãos.
      Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidade um prospecto. E nem precisa o alfaiate que aprofundou a sua arte, de receber a confissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, na hora atribulada da «prova», bastam para que ele compreenda o uso social a que o cliente destina a sua farpela… Assim, se um cavaleiro de luvas pretas, com uma luneta de ouro entalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, ao entrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom de mansa reprovação, ao provar o casaco: «Está curto e justo de cinta» - V. deve logo deduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstram abundância de princípios, circunspecção, amor sólido da ordem e conhecimento miúdo das pautas da Alfândega… Vai-me V. penetrando, bom Sturmm?
      Ora, que lhe murmurei eu, em mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Esta fugidia indicação: «Que cinja bem!» Isto bastava para V. entender que eu desejava, através dessa veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou – reservado, cingido comigo mesmo, frio, céptico e inacessível aos pedidos de meias libras… E, no entanto, que me manda V., Sturmm, num embrulho de papel pardo? V. manda-me a sobrecasaca que talha para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: a sobrecasaca do conselheiro!
      Digo «desgraçadamente» - porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, V. leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar. Nada influencia mais profundamente o sentir do homem, do que fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantos dos decotes e da valsa; e o mais extraviado mundano, dentro de uma robe de chambre, sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão.
      Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a ideias conservadoras.
      Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro, lisa, insípida, rotineira, pesabunda – está simplesmente criando um país de conselheiros!
      Dentro dessa confecção banalizadora e achatante, o poeta perde a fantasia, o dândi perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a fé – e, perdendo cada um o relevo e a saliência própria, fica tudo reduzido a esse cepo moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do país! Você corta, em cada casaco, a mortalha de um temperamento. E se Camões ainda vivesse – e V. o vestisse – tínhamos em lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto.
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Eça de Queiroz, “Cartas Inéditas de Fradique Mendes – e mais páginas esquecidas” Lello & Irmão Editores, Porto, 1973.




[1] Esta carta curiosa, pouco explicável e que certamente o seu destinatário nunca recebeu, encontrava-se incompleta, entre bilhetes sem interesse, nos papéis de Marcos Vidigal, poucos meses antes da sua morte, me entregou, sabendo que eu preparava esta colecção e um estudo sobre Fradique. Não me consta, de resto, que haja ou que houvesse em Lisboa um alfaiate do nome de Sturmm. – E. Q.