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02/01/2015



SOB UM CÉU NÓMADA

as palavras que espalhas
não consolam
tu não falas para os homens
que guardam os seus haveres em currais
amas o deserto
o lume da estrela filtrado pela lã
tens a pele endurecida que acalma os ventos
e um afago prenhe nos lábios
as palavras que ruminas
não os acordam
só a ti mantêm elas acordado

Sérgio Pereira, “O Sol é um Moccasin”, p.15, Agosto Editores, 1996.



“AMIGOS FOI PARA ISTO QUE VIESTES?”

agora que as pedras
rasgam o muro do poema
estar vivo é um escândalo
contradizer quem engole uma espada de fogo
pode ser fatal
desprezai-me na minha específica
integridade cruel
desprezai-me vinte e quatro horas
todos os segundos
não pergunteis se é merda ou indiferença
o que me escorre da língua
bebei e nas costas suai as camisas
o cenário no jardim de Getsemani
com menos pormenores
era mais apocalíptico
dizei às fúrias
que acordo com o sexo dilatado
que nasci com seis dedos em cada mão
que passo ao lado
das serpentes contundidas
e por cima das gabardinas sujas
há-de haver um lugar
para o vosso medo
há-de haver uma chuva
que vos assole os cabelos
moldei-vos como relâmpagos de morte
na cinza dos inquisidores
é por isso que a noite vos visita
um pouco mais cedo
cada dia que passa

Sérgio Pereira, “Técnica do Escalpe”, p.61, Agosto Editores, 1996.



ENTÃO ELES PERGUNTARAM: O QUE É ISTO O QUE É ISTO? QUE ESTÁS PARA AÍ A DIZER?

respondi-lhes com blocos de silêncio
respondi-lhes à unha
com descargas eléctricas com sapos abortados
com vírus descondicionados
com sapatas em bico
com a poesia de Breyten Breytenbach
com as tuas mini-saias selvagens
com ventos do leste
com as tarântulas dos crivos
respondi-lhes, respondi-lhes nada lhes disse
e não deixei de os desidratar
até que moribundos terminassem
as suas refeições de venenos práticos
o meu coração não bate ao ritmo
das obras-primas

Sérgio Pereira, “Técnica do Escalpe”, p.62, Agosto Editores,1996.



“VENDO-TE A MINHA RESSACA”

um olhar “vendo-te a minha ressaca”
ou então a safra dos horizontes
saio da terra vou a pé
saúdo os cães
com mão morta hipnotizo-os
o meu canto provoca linchamentos
entre as formigas
também depende de ti esta morada em movimento
que apanha vírgulas no ar
e as sacode para dentro de uma luva de metal
toca-me com a noite na janela dos ossos
e sentirás o rachar do albião
como um amplexo na nuca da cascata
sou feito de areia e chuva desavinda
escavo uma passagem sem espessura
para o outro lado do silêncio

Sérgio Pereira, “Técnica do Escalpe”, p.63, Agosto Editores, 1996.




estou à espera de um milagre
é simples como isto:
o massacre vem antes da revelação
enterre-se agora o machado
para mais tarde as aves de arribação
não fazerem desta colina
um rio cintilante de ossos

#

é verdade
tenho a devoção senão o amor
de algumas marés pouco recomendáveis
exige-se de mim que quebre a noz
mas que poupe o verme

Sérgio Pereira, “Istmos e Hordas”, p. 57, Edições TOMAHAWK, Porto, 1997.