Olga Gonçalves (Luanda, 1929 - Lisboa, 2004) |
30 de Janeiro
Os troncos afundam-se
na escadaria no declive sumptuoso da superfície branca. São fantasmas, de
costas geladas, vejo o lugar inteiro recolhendo os passos vagarosos da neve.
A neve traz
sucessivos dedos, figuras maiores como amantes fluídos que se concentram, se
metem a caminho, para encontrarem fora dos astros a origem da fábula, da
paródia, da tragédia do vaudeville.
A neve escuta, e
olha, regressa das cadeias abstractas onde também havia corações e noites de
Agosto e a infância dos nomes em transformação.
Na senda reclusa,
o pinheiro argênteo feneceu. Dois homens hão-de chegar para cortá-lo. Desistiu,
pensei. Cansou, atalhei remediando. Seria nas primeiras névoas de Novembro, foi
nas branduras de Outubro. O pinheiro tornou-se num ramo de cabelos sem odor,
irrompido de intrépida mudez. Mas agora, tão cândido por entre a cerração,
grito de alvura, à despedida, sem nada já saber do apelo e da velocidade dos
minutos, ainda os membros rendidos para o carambelo, asas púrpura de um cardeal
a entrarem-lhe no corpo, ainda um pintarroxo a ver-se nos seus galhos, como em
alcácer, como obra-prima no sítio de nascer.
É meio-dia, bateu
meio-dia no velho relógio sobre o jardim dos Prosoros. À distância, o sonho,
com Moscow e a estonteada floresta passam, passa o limite lôbrego do rio.
Abalada e giratória a luz vinda de todos os lados, a luz acordará Nicolai
Lvovitch Tusenbach: «Uma árvore secou, mas eis que balança, a par das outras,
tocadas pela brisa. Isto me diz que farei parte da vida mesmo depois de morrer»[1].
O tempo
caminhando, a flecha do tempo a consumar o fogo e a rebentar as trevas, tudo é
terrível de ambíguo enojo, vamos decerto arder depois de florirmos íngremes de
mensagens, voar na planície ignota, mas não seremos esquecidos, Olga Prosorov,
o pintarroxo além, como em alcácer, a nossa ressurreição, vê.
Olga Gonçalves, ”Olotolilisobi”, pp. 65-66, Edições Afrontamento, col.
Fixões/7, 1983, Porto.
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