10/02/2013

NATURAE, lembrar Olga Gonçalves...

Olga Gonçalves (Luanda, 1929 - Lisboa, 2004)

30 de Janeiro

                Os troncos afundam-se na escadaria no declive sumptuoso da superfície branca. São fantasmas, de costas geladas, vejo o lugar inteiro recolhendo os passos vagarosos da neve.

                A neve traz sucessivos dedos, figuras maiores como amantes fluídos que se concentram, se metem a caminho, para encontrarem fora dos astros a origem da fábula, da paródia, da tragédia do vaudeville.

                A neve escuta, e olha, regressa das cadeias abstractas onde também havia corações e noites de Agosto e a infância dos nomes em transformação.

                Na senda reclusa, o pinheiro argênteo feneceu. Dois homens hão-de chegar para cortá-lo. Desistiu, pensei. Cansou, atalhei remediando. Seria nas primeiras névoas de Novembro, foi nas branduras de Outubro. O pinheiro tornou-se num ramo de cabelos sem odor, irrompido de intrépida mudez. Mas agora, tão cândido por entre a cerração, grito de alvura, à despedida, sem nada já saber do apelo e da velocidade dos minutos, ainda os membros rendidos para o carambelo, asas púrpura de um cardeal a entrarem-lhe no corpo, ainda um pintarroxo a ver-se nos seus galhos, como em alcácer, como obra-prima no sítio de nascer.

                É meio-dia, bateu meio-dia no velho relógio sobre o jardim dos Prosoros. À distância, o sonho, com Moscow e a estonteada floresta passam, passa o limite lôbrego do rio. Abalada e giratória a luz vinda de todos os lados, a luz acordará Nicolai Lvovitch Tusenbach: «Uma árvore secou, mas eis que balança, a par das outras, tocadas pela brisa. Isto me diz que farei parte da vida mesmo depois de morrer»[1].

                O tempo caminhando, a flecha do tempo a consumar o fogo e a rebentar as trevas, tudo é terrível de ambíguo enojo, vamos decerto arder depois de florirmos íngremes de mensagens, voar na planície ignota, mas não seremos esquecidos, Olga Prosorov, o pintarroxo além, como em alcácer, a nossa ressurreição, vê.

Olga Gonçalves, ”Olotolilisobi”, pp. 65-66, Edições Afrontamento, col. Fixões/7, 1983, Porto.



[1] In “As Três Irmãs” de A. Tchekhov
Tradução livre de A.

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