Mostrar mensagens com a etiqueta Camilo Castelo Branco. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Camilo Castelo Branco. Mostrar todas as mensagens

06/03/2020

...


"A minha vida foi tão extraordinariamente infeliz que não podia acabar como a da maioria dos desgraçados. Quando se ler este papel, eu estarei gozando a minha primeira hora de repouso. Não deixo nada. Deixo um exemplo. "

Camilo Castelo Branco, 22 de Novembro de 1886.





09/12/2014


UM JANTAR DE BARÕES


Invocação


Musa da sopa e do cozido, inspira-me!

Pândega musa, que sorris ao vate

Em molho de açafrão, e de tomate,

Um cego adorador… achaste em mim:

Transforma o estro meu em lombo assado;

Da minha inspiração faz um pudim.


Tu, filha dos barões, musa do unto,

Nasceste na cozinha entre caçoilas;

Saudaram-te no berço alhos, cebolas,

Do cominho tiveste uma ovação;

Depois, trajando galas de toucinho,

Eu vi-te nas bochechas de um barão.


Namorado de ti, fiz-te meiguices

Por detraz de um peru, e tu de lá

Sorriste-me através da nédia pá

De vitela gentil, rica de arroz!

Ai! era!… e nem eu sei se foi mais linda

Aquela gorda pata… que te pôs!


Tu fizeste de mim um novo Cláudio,

Inspiraste-me a fé num rodovalho.

Traguei indigestões, arrotos d’alho,

Bernardas na barriga suportei.

Tomei chá de macela… e, em prémio disto,

O teu auxilio, ó musa, não terei?!


I

Dentro e fora iluminado

O palácio dum barão,

Fulgurante representa

Um enorme lampião.

Jorram límpidas vidraças

Sobre as populosas praças

Ondas trémulas de luzes.

Vai lá dentro grande gozo,

Nesse alcáçar radioso

Do barão dos Alcatruzes.


D’Alcatruzes é chamado,

Porque, sendo ainda moço,

Muitos baldes d’água fresca

Dizem que tirou dum poço.

Nenhum outro mais destreza

Revelou na árdua empresa

De puxar acima um balde.

Um que seja tão robusto

Há-de vir mui tarde e a custo

Do concelho de Ramalde.


É barão; não vale a pena

Discutir-lhe os nobres feitos;

É barão dos Alcatruzes,

Já tem pagos os direitos.

Inda é mais; pois, além disto,

É comendador de Cristo

Com bastante indiscrição.

Mal diria Cristo, outrora,

Que seria posto agora

No peito dum vendilhão!


E mais ele, que os tocava

Com terrivel azorrague!

Mas os Judas vendem Cristo,

Ponto é haver quem pague.

E o barão dos Alcatruzes

Neste século das luzes

Também fez de fariseu.

E, também, se necessário,

Representa de Calvário

Onde a cruz se suspendeu.


II

Num salão vasto, opulento

Um banquete se vai dar;

Nos cristais reflecte o ouro

A fulgir, a cintilar.

Os rubis e a cor da opala

Transfiguram esta sala

Em olímpicas mansões.

Mas a alma cai por terra

Quando vê que ali se encerra

Dúzia e meis de barões.


Da terrina a caudal sopa

Em silêncio é devorada.

Só então fingiram d’homens,

Porque não disseram nada.

Mas venceu a natureza!

Um barão por sobre a mesa

Estendendo o prato diz:

“Ó compadre!isto é qu’ébô!

Venha sopa, e acabô!

Cá de mim torno à matriz!”


O barão de Cogumelos,

Junto estando à baronesa

Que se diz dos Sacatrapos,

Quis fazer-lhe uma fineza.

Arrastou pra junto dela

Um peru, e a cabidela

No prato lhe despejou.

E lhe diz: “Cá isto é nosso;

Coisa que não tenha osso

É pró estâmago, e arrimou!”


Outro diz à gorda esposa

Que bem perto de si tem:

“Bai-le bobendo po’riba,

Ó mulher, come-le bem!”

Este pede ao seu vizinho

“Que lh’atice bem no binho

Qu’é da bela Companhia.”

Diz aquele ao seu fronteiro

“Que lhe chegue um frango inteiro,

E biba a santa alegria!”


III

As saúdes já começam;

É um gosto agora vê-los:

Estas caras representam

Tomates de cotovelos

E, através do escarlate

Do legítimo tomate,

Transuda um óleo que brilha.

Cada qual tem as orelhas

Encarniçadas vermelhas

Como as asas de uma bilha.


Pega no copo e exclama

O barão de Pimpinelas:

“Vito sério! um home fala

Sem preâmbulos nem aquelas!

À saúde e alegria

Desta bela companhia

E com toda a estifação!

Pra que todos cá binhamos

Estifeitos como bamos

De casa do sor barão!”


E os hurras retumbaram

Pela sala do festim!

Baltasar nos seus banquetes

Nunca ouviu gritar assim!

Sobre a mesa deram murros,

Saudaram com grandes urros

O barão dos Alcatruzes;

Mas alguns com mágua sua,

Já cuidavam ver a Lua,

Não podendo ver as luzes.


Mas, entre eles, um existe,

Literato em seu conceito,

A palavra pede, e reina

Um silêncio de respeito.

Ele diz: “Risonhas galas

Que refrangem nestas salas

Repercutem, simbolizam

Acrimónias insolúveis,

Nos acrósticos volúveis

D’epopeias que eternizam.


Pandemónios exauríveis

De indeléveis congruências,

Requintados se escurecem

Nos empórios das ciências

E libérrimos se escudam

Nas facanhas que transsudam

Em fantasiosas luzes.

E, portanto, a mais aludo,

Quando, férvido, saúdo

O barão dos Alcatruzes!”


Sucedeu o grito ao pasmo!

Nunca se viu coisa assim!

O orador foi abraçado

Com furor, com frenesim!

“Isto é qu’é!” dizia um,

Convertido em rubro atum,

Beterraba até não mais.

“Viva Cic’ro!” outro dizia,

Despejando a malvazia

Com grasnidos infernais.


IV

E a pândega findou. Mas alta noite,

Disseram-nos fiéis informações

Que grande movimento houve de tripas,

E grande salto deram as torneiras

Das pipas convertidas em barões

Ou, antes, dos barões tornados pipas.



Camilo Castelo Branco

23/04/2013

O QUE DISSE CAMILLO SOBRE O LOBO...


AVE RARA


O poeta satyrico Antonio Lobo de Carvalho, fallecido em Lisboa aos 26 de Outubro de 1787, nasceu em Guimarães, não se sabe precisamente quando. Era filho illegitimo de fidalgo, e tinha em Villa Real parentes maternos que o educaram nas letras, consoante os frades da terra podiam ministrar-lh'as. O bom que os frades tinham não o aprendeu o rapaz. Era poeta de lingua farpada, da escóla de Gregorio de Mattos Guerra, o maior e mais sujo talento que deram as plagas de Santa Cruz, desde a cidade de Jequitinhonha até á cidade de Pindamonhamgaba.

Os cavalheiros villa-realenses andavam mordidos pelas vespas das suas trovas. Lobo não perdia lanço de os satyrisar.

Em uma procissão de Corpus-Christi, o senado da terra ordenou que S. Jorge fosse em andor e não em cavallo. A razão d'este descavalgamento não é bem liquida. Ha muitos mysterios que nunca se hão de dilucidar, mormente em cousas de cavalgaduras.
N'essa occasião, Antonio Lobo de Carvalho escreveu e divulgou o seguinte soneto:

    Patria de valentões, paiz guerreiro,
    Só tu, Villa Real! comtigo fallo!
    Vão Panças e Roldões jogar o talo,
    Ou vão na tua escóla andar primeiro.

    Quem ha que os teus aguente no terreiro,
    Se até S. Jorge foram desmontal-o!
    Pois, indo nas mais terras a cavallo,
    N'esta é capucho o santo cavalleiro!

    Nos triumphos de Baccho a villa armada
    Uns com brancos arnezes, outros tintos,
    As meretrizes levam de assaltada.

    Fez-lhe o entrudo os broqueis, compoz-lhe os cintos,
    E soltou um pendão co'esta fachada:
    «Todos são pobretões; mas mui distinctos.»

Os fidalgos da villa dilecta d'el-rei D. Diniz, que eram muitos, a julgar pelos brazões musgosos em que as andorinhas dormem de verão e as corujas assobiam de inverno--assanharam-se contra o poeta, fazendo-se representar no desforço pelos seus moxillas.

Espancado e fugitivo, foi parar a Lisboa Antonio Lobo, onde conhecia um tal Anacleto, que mais tarde foi juiz de fóra em Angeja.
A mãi do poeta era remediada de bens da fortuna, e quanto tinha quanto deu ao estouvanado filho, que nunca procurou modo de vida, nem bajulou os grandes, á imitação dos vates do seu tempo.

O duque de Cadaval, D. Miguel, ouvindo recitar versos de Antonio Lobo, disse aos seus criados que lh'o levassem ao palacio... para se divertir. Um lacaio de s. exc.^a procurou o poeta e deu conta do recado. Lobo mandou-o esperar, improvisou um soneto, e remetteu-o ao duque. É o mais galhardo feito de poeta do seculo XVIII. Dizia assim: 

    Se eu fôra, excelso duque, homem perito,
    Capinha, ferrador, cabelleireiro,
    De cães decurião ou cozinheiro,
    Em sopas mestre, em massas erudito:

    Se em letra antiga visse o que anda escripto
    Do vosso grande avô, João Primeiro,
    Que o gothico mostrasse ao mau caseiro;
    Que o tombo velho nunca está prescripto.

    N'este caso, senhor, a vossa graça
    Mais quizera alcançar, que ter mil burras,
    Do metal louro que se ri da traça.

    Mas como a sorte me tem dado surras,
    Não vou servir-vos só por não ter praça
    No livro mestre dos santões caturras.

Antonio Lobo indispoz-se em Lisboa com fidalgos e frades. A mezada que a mãi lhe enviava permittia-lhe dispensar-se das sympathias de clero e nobreza. Foi muito soado e mordido um soneto que elle dardejou contra um frade leigo, dado a libações de certa taverna. Era d'esta laia o poema:

    Borracha de estamenha, ôdre sarrento,
    Mil parabens te dou ao novo estado;
    Pois de estupido leigo a um jubilado
    Lente de rolhas vaes em largo vento.

    Se ha longos annos mettes fogo lento
    N'essa pança que é mãi de vinho aguado,
    Frei Bourdeaux será hoje o teu prelado,
    A adega d'esta casa o teu convento.

    Bebe, esponja claustral, té que a fumaça
    Das vasilhas de França encha as pichorras
    De umas bebadas tripas de outra raça;

    E, antes que os limos dos toneis escorras,
    Fuja o do Carmo, fuja o Leão da Graça,
    Que hoje o que reina é o Leão dos Borras.

Ao odio do clero e nobreza, ajuntou o poeta o odio do povo representado nas pessoas dos capellistas, acirrados por estes versos:

    Um rapaz a gritar como um cabrito
    Com saudades da mãi sobre o vallado,
    Que entre duas canastras vem deitado,
    Em burro de almocreve, ancioso e afflicto;

    Com rosario ao pescoço mui bonito,
    Descalço, de barrete e de cajado,
    C'um sacco á cinta, onde traz (coitado!)
    A sua côdda, o seu bacalhau frito.

    Posto a pé este misero mamote
    Ora cahe, ora treme, ora encordôa,
    Um lhe prega um sopapo, outro um calote.

    Pois esta figurinha ou má ou boa
    Faz qualquer capellista franchinote
    Quando vem do sertão para Lisboa.

N'esta vida de odios e irritações, viveu Antonio Lobo de Carvalho até aos cincoenta annos. Se nos merecesse credito o que João Bernardo da Rocha escreveu no Portuguez, tom. X, pag. 356, o atrevido vate haveriasido aleivosamente assassinado por ordem de um tio do marquez de Olhão, a quem o maldizente frechára com um soneto que abria assim:

    Ferrabras, Satanaz, Fernão Zarolho,
    Cruel harpia das que o inferno encerra...

Mas o snr. Innocencio Francisco da Silva, posto que não decida qual haja sido a morte do poeta, com justificados motivos desabona a affirmativa de João Bernardo da Rocha.

Eu tambem não sei. Ando n'essas pesquizas; e receio ir dar com elle no hospital, expirando envolto em gloria... de cataplasmas de linhaça.


CAMILLO CASTELLO BRANCO

 ver mais: http://www.edicoes50kg.blogspot.pt/2013/04/40-alegrias-do-lobo_2546.html