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21/05/2014

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Balthus


AS LEIS DA HOSPITALIDADE

O anfitrião, por não ter mais urgente cuidado do que o de fazer irradiar a sua alegria sobre quem quer que, ao anoitecer, venha comer à sua mesa e se repousar sob o seu tecto das canseiras da viagem, aguarda com ansiedade, nos umbrais de sua casa o estrangeiro que verá surgir no horizonte como um libertador. E do mais longe que o vir chegar, o anfitrião apressar-se-á a gritar-lhe: «Entra depressa, pois tenho medo da minha felicidade.» Eis porque, de antemão, o hospedeiro estimará todo aquele que, em vez de considerar a hospitalidade como um acidente na alma daquele e daquela que a oferecem, verá nela a própria essência do anfitrião e da anfitriã, vindo ele, estrangeiro, partilhar, como um terceiro, dessa essência, a título de conviva. Porque o anfitrião procura no estrangeiro que recebe uma relação que não é acidental mas sim essencial. Um e outro não são senão, para começar, substâncias isoladas, sem comunicação entre si, a não ser puramente acidental: tu que te julgas longe de tua casa, apenas trazes contigo os acidentes da tua substância, na medida em que eles fazem de ti um estranho, àquele que te recebe em tudo aquilo que faz deleum mero anfitrião acidental. Mas como o anfitrião convida neste caso o estranho a subir à origem de todos os acidentes, eis a razão pela qual ele inaugura uma relação substancial entre ele próprio e o estrangeiro, a qual, na verdade, constituirá um vínculo já não relativo, mas absoluto, como se, tendo-se confundido o anfitrião com o estrangeiro, a sua relação, contigo que acabas de entrar, não fosse senão uma relação de si para si mesmo.
Com esta finalidade, o anfitrião actualiza-se no convidado, do mesmo modo que tu, convidado, uma possibilidade do anfitrião. O deleite mais eminente do anfitrião tem por objecto a actualização na anfitriã da essencia inactual da hospedeira. Ora, a quem incumbe este dever senão ao convidado? Significará isso que o anfitrião esperaria uma traição da parte da anfitriã? Ora, parece que a essência da hospedeira é constituída fidelidade ao hospedeiro, e nesse caso escapar-lh-ia tanto mais quanto ele quisesse justamente conhecê-la no estado oposto da traição – não seria capaz de traí-lo para lhe ser infiel – ou então a essência da hospedeira é realmente constituída pela infidelidade, e nesse caso o hospedeiro não partilharia de modo algum a essência da hospedeira, que seria susceptível de pertencer, acidentalmente, na qualidade de anfitriã, a um dos convivas. A noção de anfitriã provém da razão de existência; ela só é uma hospedeira em virtude da essência – esta essência é, por conseguinte, limitada pela sua actualização na existẽncia da qualidade de anfitriã. E a traição não tem, neste caso, outra função a não ser a de romper esta limitação. Se a essência da hospedeira consiste na fidelidade ao hospedeiro, isso permite ao hospedeiro revelar aos olhos do convidado a hospedeira, essencial na anfitriã existente; pois o hospedeiro enquanto hospedeiro, deve jogar arriscando-se a perder, visto contar com ela para a estrita aplicação das leis da hospitalidade e com certeza de que ela não ousaria fugir à sua essência, feita de fidelidade pelo hospedeiro com receio de que, vindo para actualizã-la enquanto hospedeira, a anfitriã só existisse traiçoeiramente.
Se a essência da hospedeira residisse na infidelidade, o hospedeiro bem poderia jogar – teria perdido antecipadamente.
Mas o hospedeiro quer conhecer o risco de perder e entende que, perdendo em vez de ganhar antecipadamente, discernirá, custe o que custar, a essência da hospedeira na infidelidade da anfitriã. Porque o que ele que é possuí-la infiel, enquanto hospedeira que cumpre fielmente os seus deveres. Deseja, portanto, actualizar através do convidado algo que existe em potência na anfitriã: uma hospedeira actual em relação a esse convidado, inactual anfitriã em relação ao hospedeiro.
Se a essência da hospedeira fica, assim, indeterminada, visto parecer ao hospedeiro que lhe escaparia algo da hospedeira no caso em que essa essência do hospedeiro propõe-se como uma homenagem da sua curiosidade à essência da hospedeira. Ora,esta curiosidade, enquanto potência da alma hospitaleira, só pode ter existência própria naquilo que pareceria à hospedeira, se ela fosse ingénua, suspeição ou ciúme. O hospedeiro não é nem desconfiado nem ciumento, visto que ele é essencialmente curioso exactamente daquilo que, na vida corrente, o transformaria num anfitrião desconfiado, ciumento, insuportável.
Não há razão para que o convidado se inquiete -não vá ele pensar que fosse alguma vez constituir a causa de um ciúme ou de uma suspeita que nem sequer possuem uma vítima para os sofrer. Na realidade, o convidado é tudo o oposto disso, porque é da ausência de causa de um ciúme e de uma suspeição – exclusivamente determinado por essa mesma ausência – que o convidado vai sair do seu vínculo acidental de estrangeiro para gozar de um vínculo essencial com a hospedeira cuja essência partilha com o hospedeiro. A hospitalidade, essência do hospedeiro, bem longe de se restringir aos humores do ciúme e da suspeita, aspira a converter em presença a ausência de causa desses humores e a actualizar-se nessa causa. É necessário que o convidado entenda bem o seu papel – que estimule, portanto, sem receio, a curiosidade do hospedeiro através desse ciúme e dessa suspeita, dignas do anfitrião, mas indignas do hospedeiro (este arrasta lentamente o hóspede nessa direcção); que, neste prélio, rivalizem ambos em subtileza: é ao hospedeiro que compete pôr à prova a discrição do convidado; o termo generosidade não se aplica, pois tudo é generosidade e tudo é avareza, mas que o convidado esteja atentoa que esse ciúme ou essa suspeita não reabsorvam totalmente a sua curiosidade, pois é desta curiosidade que vai depender para o convidado a avaliação do seu prestígio. Se a curiosidade do hospedeiro aspira a actualizar-se na causa ausente, como pode ele esperar converter essa ausência em presença, a não ser que espere a visitação de um anjo? Solicitado pela devoção do hospedeiro, o anjo é susceptível de se encobrir com o nome de um convidado – serás tu? – que o hospedeiro julga fortuito. Em que medida actualizaria o anjo na anfitriã a essência da hospedeira tal como o hospedeiro tem tendência a imaginá-la, quando essa essência só é do conhecimento daquele que, além de o ser, conhece? Ao inclinares tanto e cada vez mais o hospedeiro, pois o convidado, quer seja ou não um anjo, não é mais do que a inclinação do hospedeiro, convém que saibas, caro convidado, que nem o hospedeiro, nem tu, nem a própria hospedeira conhecem ainda a essência desta última. Surpreendida por ti, ela tentará reencontrar-se no hospedeiro, o qual, a partir desse momento, não mais a deterá, mas que, ao sabê-la nos teus braços, se considerará mais rico do que nunca com o seu tesouro.
Para que a curiosidade do hospedeiro não acabe por degenerar em ciúme e em suspeita, é a ti, conviva, que compete discernir a essência da hospedeira na anfitriã, e a ti que cabe precipitá-la na existência – ou a hospedeira não ficará sendo mais do que um fantasma, e nesse caso permanecerá um estranho nesta casa, se deixares nas mãos do hospedeiro a essência inactualizada da hospedeira, ou então és tu o tal anjo e darás assim, através da tua presença, actualidade à hospedeira – terás sobre ela plenos poderes tanto como sobre o hospedeiro. Pois não vês, caro conviva, que o teu interesse superior é de levar a curiosidade do hospedeiro ao ponto em que a anfitriã, exarcebada, se actualizará toda ela numa existência que tu, conviva, serás o único a determinar, e não já apenas a curiosidade do hospedeiro? A partir daí, o hospedeiro terá deixado de ser o dono de sua casa – terá cumprido inteiramente a sua missão. Ter-se-á tornado, por sua vez, no convidado.


Pierre Klossowski, “Roberte-Nessa-Noite”, pp. 8-12, Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
Trad. José Carlos Gonzalez