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Manuel Cintra (n. 1956) |
I – CRISÁLIDA
dissolver o cansaço na aspirina o açúcar a angústia
a lembrança no sono o tropeço os falhanços, ligar
com cimento, construir
chorar de vez em quando às escuras para a febre descer
polir palavras com escova colocá-las com pinça
no interior, derramá-las num jarro sem vinho sobre o papel,
deixar secar, recortar, recompor, calar gritos, escrever
sonhar os poemas que não se escreve, escrever os poemas
[que não.
podar as plantas nos filhos, mostrar os frutos, o caroço,
o saco de lixo, a hora de ponta, suor. depois lavar. levar
o peito à rua, receber os outros, perdê-los, trocá-los,
devolver este par de mãos àquele mar, afogar em esforço
a carótida torcida do tempo, parar sempre noutra esquina,
fugir à vertigem com o prazer das alturas, perder,
permanecer sentado até à dor nos ossos, cronometrar paciências,
aprender na lentidão a única saída,
rápida
e envelhecer.
acreditar?
Manuel Cintra, “Bicho de Sede”, p.9, Ulmeiro, Lisboa, 1986.
II – BORBOLETA
1. e
cá estamos nós mulher então
embarcados em torrentes de água seca
descidos nos sapatos onde a lama
se cola se descola a aprender invernos
no vento intermitente do monte
abaixo cada dia acima
do sorriso está a carne sem vergonha
das estrelas
e
a dose incerta de loucura nervo a nervo
a dose incerta de respiro e asfixia
coloquei-as juntas num cadinho
onde à noite a horas altas e baixas
costumava cozinhar os males de umbigo
que agora se amam se costuram se mordem
até ficar mais nada
no fundo com todos os braços
a ginástica do vento nos meus dedos
a poda nos goles de ar
e
um espinho ou dois tiritam-me
nos restos apalpados da pele de verão
nas partes amolgadas das árvores
de metal que conta o tempo sentado
no crescer da ferrugem sobre os nomes
que troquei por faixas de chão
e
o filho novo é soletrado com os dentes
beijo a beijo se registam naquela carne palavras
no desfrisar tecidos e a ti mulher
crescem mãos parecem nuvens
os dias que vestes são tecido novo
que desfibra o ritmo e o torna
a fibrar
e
às vezes cai-me o vento todo do bolso
derrama-se o cadinho lá se vai a química
desato a respirar
(…)
Manuel Cintra, “Bicho de Sede”, pp.13-14, Ulmeiro, Lisboa, 1986.
III – OVOS?
contido nesta tampa.
emparedado entre as duas
têmporas e as cinco
e meia da tarde
ardida quase
sempre inútil,
tocha chata de cera
que no verão derrete
e no inverno não se molda,
bolas, a esta situação.
há sempre o sopro
de a levantar, manter
intacto o jorro de luz
guardado subterrâneo,
correndo como um rio correndo,
até gastar trocar coçar
capachos
não tenho este formato.
terei talvez tempo de ser
eu a destruir a tampa
e fico, caramba, certo
de manter por dentro
nessa caixa o espaço
da futura destruição.
nem sempre como.
nem sempre como eles,
como sempre eu.
coisas da fome.
Manuel Cintra, “Bicho de Sede”, p.24, Ulmeiro, Lisboa, 1986.
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Manuel Cintra, "Bicho de Sede", col. «Imagem do Corpo N.º31, Ed. Ulmeiro, 45 pág., Lisboa, Fevereiro de 1986. Capa de Cristina Reis. |