Perguntou-me outro dia
uma jovem estudante – interpretando a minha indiferença pelos confortos e
glórias do mercado como indiferença pela publicação – por que motivo não
guardava eu os manuscritos na gaveta.
«As pobres criaturas iriam
sufocar» – respondi. Esta frase ganhou
entoações de susto. Para uma mera hipótese, pareceu-me bastante capaz de
assassinatos. Descrevi a paisagem ressequida, as casas com bolores e vigas
rebentadas, e as personagens hirtas, com as carnes desfeitas sobre esqueletos
verdes, de boca aberta naquele grito uivante que sempre solta os emparedados já
depois de lhes ter parado o coração.
Há algures, de onde emanam os
poderes criadores, uma ficha trocada, um cabo mal metido. E essa gente, essas
terras, essas cóleras, esses lugares transtornos amorosos – em vez de
acontecerem no tempo e na matéria, com a sua existência benigna e humanal, vêm
nascer parasitariamente dentro da minha ideia, desarranjando de tal modo as
ordens, os fios naturais do pensamento, vivendo com tal folga à minha custa que
o único remédio é atirar com elas para cima do papel, pô-las a circular e
deixar que mereçam ternura, os despiques, o desprezo das várias sociedades que
frequentam. Eu, quanto a mim, suspiro com alívio e penso nelas como em
maçadores que no entanto alguma vez amámos: desejando que possam ser felizes e
que não mais nos saltem ao caminho.
Bem sei que isto parece perfeita
impertinência: primeiro, porque vem a despropósito falar assim da escrita num
tempo em que ao trabalho e à inteligência – e não à possessão por astros
ignorados – é que usa atribuir-se a feitura de um texto; segundo, porque soa a
desatino e de certa maneira a má educação pôr esta voz, num mundo em que as
literaturas se transformam em coisas respeitáveis, a queixar-se da grande
sem-cerimónia com que as personagens e os enredos se apresentam e dizem, tendo
do bolo de Alice o modo imperativo: «Conta-nos». E eu, tão rapidamente quanto posso., lá as conto e as empurro para
longe de mim.
Hélia Correia
na nota introdutória a “Montedemo”, pp.9-10, Relógio
D’Água, Lx, 1987.
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