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22/04/2014

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“Conhecemos a temporalidade sequencial, o tempo ordenado em extensão e duração, anterior às tele-imagens, à teletecnologia e à temporalidade virtual, que indetermina a verdade, a representação e a realidade das imagens. Contando pois com essa possibilidade e experiência da sequencialização, Barthes pôde escrever em La Chambre Claire. «Diz-se muitas vezes  que foram os pintores que inventaram a Fotografia (…). E eu digo: não, foram os químicos. Porque o noema “Isto foi”  só foi possível a partir do dia em que uma circunstância científica (a descoberta da sensibilidade à luz dos sais de prata) permitiu captar e imprimir directamente os raios luminosos emitidos por um objecto diferentemente iluminado. A foto é literalmente uma emanação do referente». O excerto informa-nos que a fotografia não escapa nunca à circunstância da prova, porque não só representa a realidade, como em suas visualizações transporta uma sua parcela. De onde a fotografias, diz ainda Barthes, não é nem arte nem comunicação – ela é referência, índice.”

Carlos Vidal, “Imagens Sem Disciplina”, pág.133, Vendaval, Lx, 2002.

Se o poema
analisasse
a própria oscilação
interior,
cristalizasse
um outro movimento
mais subtil,
o da estrutura
em que se geram
milénios depois
estas imaginárias
flores calcárias,
acharia
o seu micro-rigor.


Carlos de Oliveira in Micropaisagem.

22/10/2012

DEBAIXO DO VULCÃO




alguém atirou um cão
morto às profundidades
Malcolm Lowry

I

Malcolm
Lowry: vivo
mal como Lowry,
bebo
bem como Mal-
colm, como
mal como
Malcolm
come:
álcool
Malcolm, al
coolm,
ó
alcolmalcolm,



II

ó frídida
tequila
no sopé do vulcão
por onde
o vulnerável cão
do espírito
ladra
e lavra
a essência
recôndita
do álcool:
conte-a
a bebidíssima
exigência


III

do meu
último copo,
sempre o último,
cante-a
o ex-extinto
vulcão
e por instinto
o vulnerável
cão,
ou plante-a
o próprio Lowry,
frágil,
entre lava
e neve:


IV

tépido mescal
para inventar
a mescaligrafia
gémea do som
ou da sombria
pauta musical
onde as notas florescem
em breves,
compactas corolas,
e hastes
que sobem, descem
esguiamente
os degraus
dum jardim,


V

enquanto
os índios passam
depressa
mas de pedra,
ficam
antepondo-se
ao norte
que fabrica
os países
com vidro,
com vinho, com visões
de videiras vitais
debaixo
do vulcão,


VI

ó tépida tequilla,
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inultilmente
dentro
da garganta
vazia,


VII

frígido mescal
como um galope
na floresta
de vinho e vidro,
filtro
litro a litro,
animal,
animais,
e mais e só
o dorido espírito
do álcool,
Malcolm,
entre neve
e lava:


VIII

os índios passam,
bebo, ficam
na sombria
pauta musical,
e o vulnerável cão
do amor
sossega pelo menos
um instante,
enquanto
os índios
sobem, descem
esguiamente
os degraus
das pirâmides.


Carlos de Oliveira in ‘Micropaisagem’, Publicações Dom Quixote, Lx, 1968.

24/09/2012

...


3

Quem soprou na gândara
a última chama?
Se quiseres, ó morte,
abro-te os lençóis
e dou-te a minha cama.

Vai meu coração
pelas aldeias moiras
onde pena e erra,
peregrinação
ao tojo da terra.

Caminheiro cansado
sem nenhum bordão,
onde houver um sonho
para ser sonhado
está meu coração.

Carlos de Oliveira in ‘Mãe Pobre’ Coimbra Editora, 1945.



23/11/2011

Grave, Greve, Grive, Grove, Groove...



CANTIGA DO ÓDIO

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria  como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

Carlos de Oliveira, in «Mãe Pobre», Coimbra Editora, 1945.

Óleo de Mário Dionísio
(…)
Sim, nós
que depois viemos,
nós, homens dispersos
que a tua voz esperou
e reuniu, recebemos o teu
amor de guardar ódios
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão; sim.
Sim, nós homens de hoje e de aqui
de novo dispersos, depois
de um tempo reunidos,
acolhemos dos teus versos
o envio da beleza
magoada e a dor do pensamento.
Aos ombros, cegos, e de cor,
contigo, arrastamos os tempos
e incendiando a treva
incendiaremos o dia

Manuel Gusmão in «A terceira Mão», Caminho, 2007.