Porta fora da aula de poesia
Por Hugo Pinto Santos
13/03/2015
Esta
é a história de um livro de poesia e do editor que o escreveu. Mas, na
verdade, é uma história que envolve três editores, além do livro que fez
de um deles, Vitor Silva Tavares, o autor desse livro que é um
sobressalto em algum do ramerrame da paisagem editorial portuguesa. Por
fim, esta é a história de quem não queria falar do seu livro. Não por
isto, nem por aquilo, mas porque não. O editor não queria despir a pele,
nem mudar dela. Não teve de o fazer.
Vitor
Silva Tavares é o lendário editor da &etc, experiência
profundamente devedora de uma forma manual de compor livros, letra a
letra, vírgula a vírgula.
Na
origem de tudo, está o editor e poeta Ricardo Álvaro. Foi ele quem
pediu um ou dois poemas a Vitor Silva Tavares, cuja existência e
actividade se misturam com a edição muito para lá da designação,
demasiado cómoda, de editor. São dele estas palavras: “Sou editor? O que
é isso? Já me irritei com alguém, que me chamou editor. Também compro a
minha comida e cozinho, e não me chamam cozinheiro.”
Destinavam-se aqueles poemas ao número dez da revista Piolho
(Porto, Setembro de 2012). Com uma generosidade que não escancara a sua
nobreza – porque, nesse triste caso, deixaria de o ser –, Vitor Silva
Tavares enviou mais poemas do que os dois que deveriam figurar na
revista. Assim se chegou, após a publicação inicial, a um conjunto
poético que perfazia oito composições, que deixou nas mãos, até hoje
gratamente sideradas, de Ricardo Álvaro. Com ele ficou ainda o título
que é hoje o mesmo: Púsias. É ele devedor da ironia de Vitor
Silva Tavares, e da sua graça (maior e mais total do que o humor).
“Tinha-as para aí, mas não sei onde púsias”, terá dito.
Autoria: Vitor Silva Tavares
Edições 50Kg
A ideia de uma plaquette
começou então a fermentar no espírito destes agentes secretos da
agitação poética. Aos dois primeiros poemas de Vitor Silva Tavares
vindos a lume no referido número da publicação (Je suis prêt e Era uma vez),
juntavam-se, assim, os que este príncipe dos editores legava ao espanto
crescente dos que iam rodeando este milagre. Porque em décadas de
agitação poética, que foram anos e anos de profícua acção cultural
(termo usado, decerto, à revelia de Vitor Silva Tavares), no âmbito
tantas vezes carneiro da bibliografia nacional, nunca a pena do autor
tinha acedido a pousar em poesia própria. Não, pelo menos, para um
público que tivesse a dita de o poder ler em letra de forma. E é por bem
pouco que a palavra “pena” constitui uma pobre metáfora. Porque Vitor
Silva Tavares escreveu à mão os seus poemas. E estes conheceram a
passagem a limpo em mais do que uma etapa, e por mais do que um
executante.
Por esta altura, dizíamos, solidificava a noção de converter em plaquette
aqueles poemas que cresciam em número e em consistência. É então que
Ricardo Álvaro aponta a sua mira (generosa, humana mira) a um outro
editor, Rui Azevedo Ribeiro, artífice solitário das Edições 50Kg, e
derradeiro editor desta trilogia. E eis que essa qualidade raríssima, a
generosidade, se repete. Talvez para nunca mais. Foi a Rui Azevedo
Ribeiro que Ricardo Álvaro entregou os poemas de Vitor Silva Tavares,
para que os editasse. Essas composições que Vitor Silva Tavares primeiro
manuscrevera, Ricardo Álvaro depois transcrevera a computador, e a que
Rui Azevedo Ribeiro, por fim, imprimiria a última passagem.
Neste
ponto da narrativa, entra Luís Henriques, a cujo labor devemos o
prodígio que hoje fornece portada ao livro de Vitor Silva Tavares.
Segundo rezam as crónicas, quando o autor viu o desenho que hoje está na
capa do seu livro de poemas terá pronunciado: “Mas os poemas não estão à
altura desta capa. É preciso mais.” A grandeza destas frases escusa
comentários. Tanto mais que elas não se limitam a referir o número dos
poemas, que viria, efectivamente, a quase triplicar, mas à exigência que
o poeta se faz perante si e perante a arte dos outros. O resultado
final contou com 22 poemas. A capa que os antecede foi palco de uma
notável gesta. Luís Henriques homenageia e parodia o famoso quadro de
Almada que representa Fernando Pessoa. Insere-o, ademais, no quase
quadrado que não pode esquecer os livros da &etc. Em vez da pose
hierática e, sobretudo, canónica de um Pessoa rectilíneo e vertical, um
poeta demasiado humano, que se verga e quase quebra. Que se baixa, não
para pedir, mas para apanhar do chão a beata do vício e da sua
humanidade ditosamente suja. A palavra a Luís Henriques: “Quando li as
primeiras quadras, desatei a rir. Paródia? Antiliteratura? Quadras ao
gosto popular? Não sei. Cá para mim, são 50 kg de puro sainete (uma
palavra ao gosto do autor), impróprios para chatos e sisudos. Um pouco
antes de o Rui me falar na capa, ouvi o Vitor recordar o Dr. Fernando
Amado, as cenografias e o convívio com o Almada. Alguma memória dessa
conversa terá passado para o desenho. Jogo por jogo, desvio por desvio,
desenhei o poeta a apanhar as priscas dos outros. Que mais poderia
fazer?”
nuno ferreira santos
Isto
são umas coisas que o Vitor às vezes vem para aqui e põe no papel. Nuns
papelinhos. E depois ponho p’ra aí nesta gaveta (...). Sempre tive um
certo jeito assim para umas coisas. Mas são brincadeiras
Vitor Silva Tavares
Os
motivos da peça de Luís Henriques, bem como a coloração que lhe dá
corpo, formaram os incalculáveis obstáculos a transpor com tanta
dificuldade. As nervuras da madeira, explicou-nos Rui Azevedo Ribeiro,
mas sobretudo a cor – um negro de uma qualidade, uma intensidade, a que
todos os materiais resistiram. O delicadíssimo equilíbrio entre o
excesso e a escassez de tinta. Aspectos que puseram à prova este artesão
da prensa e do prelo, que passou pela matemática, pela economia, pela
filosofia e interrompeu a sua demanda na estação onde moram os tipos e
as caixas deles, onde repousam os prelos e as tintas. E onde a magia,
realmente, acontece. Foi um ano de trabalho. De muitas tentativas, mas
de não menos erros. Esses erros são medalhas invisíveis que ornam o
peito deste cavaleiro sem soberano nem reino. A sua luta, mas também a
sua alegria, está nos livros que conseguiu produzir. É ele quem o diz.
Mas não seria preciso. Mesmo que andássemos muito distraídos de tudo. Os
300 exemplares de Púsias são o que resta dessa centelha. Os
cadernos que os compõem – descendentes das folhas que, dobradas e
cortadas, produzem oito páginas, cada um – representam três meses de
trabalho, compostos, do meio para fora, a uma razão impensável de cem
exemplares por mês. A esse mês há que juntar e relembrar o ano em que
maturou a capa. Ainda a cheirar aos materiais e à forja que lhe deram
vida, estes livros são mais do que objectos bibliográficos. São o fruto
de uma arte perdida, formam o último acto de um processo que funde
denodo e entrega, minúcia e uma elegância de que o mundo parece querer
desistir.
A partir do desenho de Luís Henriques, Rui Azevedo
Ribeiro teve de mandar executar uma zincogravura. Levou o seu projecto a
oficinas de trabalho em que o chamado “corte e vinco” se aplica na
feitura de caixas de cartão para os mais diversos fins. Fins esses que
não se compatibilizavam com as especificidades, cromáticas e outras, da
capa que o editor tentava levar a bom termo. Quando, no seu atribulado
trilho, Rui Azevedo Ribeiro se cruzou com Maria João Macedo, surgiu, por
sugestão desta última, a hipótese da serigrafia. Mas nem com esta, que
foi a técnica por fim eleita, as dificuldades se desvaneceram. Obter uma
transparência – um fotolito – que permitisse produzir o negro
pretendido para a capa passou a ser o fito do editor, secundado por
Maria João, que se tornou uma ajuda fundamental, e que por isso merece
um agradecimento final, em Púsias, juntamente com Ricardo
Álvaro. E que justifica, explicitamente, as palavras que Rui Azevedo
Ribeiro nos confiou. Foram várias as empresas e casas da especialidade
contactadas, tantas quantas as tentativas goradas que marcaram esta via
sinuosa. A cada tentativa, a logística que havia que montar era complexa
e múltipla. Todas as novas investidas implicavam lavar o quadro de
serigrafia, e sensibilizá-lo, como nos esclarece Rui Azevedo Ribeiro. A
Escola Superior de Belas-Artes do Porto foi um dos portos desta jornada
tempestuosa. A cedência de espaço e materiais revelou-se fundamental
para o continuado laboratório que precedeu Púsias. A descoberta
do fotolito que, enfim, permitia o resultado cromático pretendido fez
disparar a urgência da impressão das 300 capas de Púsias. No
entanto, como não podia deixar de ser, o processo negava-se a uma
conclusão imediata. Obtido o negro da capa, o interior desta, num branco
excessivamente contrastante, desagradou ao editor, que optou por uma
impressão integralmente a negro (em ambas as faces, por conseguinte),
que apenas não se manteve na contracapa, de modo a garantir a
integralidade do logótipo das Edições 50Kg, o que determinou que a face
visível da contracapa surgisse num branco apenas suspenso pelos dizeres
identificativos da chancela.
Púsias é um livro de poemas
de Vitor Silva Tavares. Será preciso dizer mais. Não é. As palavras que
se seguem são uma tentativa de explicar porquê. Se esta poesia aprendeu
alguma lição, na sua rebeldia de não querer a pata dos senhores, foi a
da liberdade. Que assimilou por parte de quem menos queria ser mestre:
os surrealistas. Esta poesia não tira o chapéu. Porque não é cortês. Por
essa “grande razão”, não pede licença, nem peca por nenhum ademane. É
pura sublevação – “Como se alguém arrancasse a cabeça/ e a escondesse no
bolso das calças". A única coisa que esta poesia agradece é o salutar
trânsito (intestinal) de uma Boa cagada.
Como tudo aquilo
que arde em Rimbaud, a poesia de Vitor Silva Tavares não pode se não
ser absolutamente moderna. Contrária à cartilha de professores e avessa
ao vinco das tradições. Salvo a nobre tradição da rebeldia. A de Rimbaud
e a dos surrealistas. Mas também a dos passeantes da orla mais externa
do romantismo. E de um Lautréamont – “a poesia deve ser feita por todos”
é uma frase queo autor gosta de recordar –, mas também de Rabelais e
dos libertinos de Setecentos. De poucos, poucos mais, tão senhores do
seu próprio destino. Essa “liberdade livre”, de que Rimbaud falava, não
precisa de se anunciar, porque respira e vive em cada palavra de Púsias. Na medição aparentemente desprevenida de todo o verso.
Vitor
Silva Tavares põe o mesmo cuidado na manufactura do seu verso que põe
na edição. No fundo é o mesmo desvelo que existe no seu modo de preparar
o peixe: “quase à japonesa”, nos seus termos. É fácil imaginá-lo no
manejo das facas e dos gumes mais afiados e certeiros. O corte do verso,
o modo como ele opta, as direcções que toma, têm, todos eles, essa
elegância sólida e honesta que Vitor Silva Tavares imprime no trabalho
editorial que é conhecido. Nada pode ser lido como consequência do
acaso, nem do descaso: desde a incisão exacta de “imagens raiadas de
sonhos” (p. 10) até à peste que possa estourar na cidade. E o verbo
“estourar” não podia ser mais importante. Na sua desadequação ao uso
corrente (“grassar”, por exemplo), ele é um só dos índices da impecável
artesania destes versos.
nuno ferreira santos
Não
é contra, mas à margem, que estamos (...). O &etc é um exemplo de
longevidade e fidelidade. Querem chamar-lhe contracultura? ‘ Tá bem. Com
que linhas me coso? Não me vou preocupar com isso
Vitor Silva Tavares
Poesia
satírica, de escárnio de não pouco maldizer (mas nada arqueológica
dessas memórias antigas), a safra de Vitor Silva Tavares conhece
oportunidades para a musa que nunca está em férias. Como na fingida
cançoneta Foi na lagoa de Santo André, em que mecenas e
pedintes, ou o “pátrio panteão”, são lidados a tratos de interjeição
brejeira mas sem relaxe. "Ai olá ai olé" não é notação calmamente
musical, nem concessão lúdica, mas instrumento de crítica. Crítica
discreta e sub-reptícia, como quem não quisesse dignar-se gritar. Mas o
“pintor d’arte” e o “aracnídeo
com a sua-dele fisgada:/ um subsídio”
(p. 22) levam em cheio no flanco, sejam lá eles quem forem. Mas poesia
lírica e pungente. Poesia do ser e do estar, que não cede na dose
homeopática de simpatia, nem abdica de uma empatia tão humana – “Que
importa pois/ a Terceira Mundial/ se nós os dois/ etecétera e tal?” (p.
15). Poema político e poema amoroso pouco mais precisam de dizer para
que se saiba que tudo é tensão e contingência.
Não o dissemos a
Vitor Silva Tavares, mas a verdade é que seria preciso acreditar em
seres de outros planetas, e que eles nos lessem, para perguntar o que é
&etc. Portanto, a pergunta ficou directa e só.
O que é &etc?
Tudo
isto começou porque eu meti conversa com um senhor de uma tipografia.
Entro, vejo um homem grande, pesadão, a tirar cartões-de-visita. Era o
Palma. O Palma Cavalão, como lhe chamava o Luiz Pacheco. Ao fundo estava
Mestre José Apolinário Ramos. Isto, de eles estarem só a fazer cartões e
envelopes, porque o Agostinho Fernandes, da Portugália, se tinha
empenhado para comprar máquinas modernas. A composição mecânica… Era um
salto tecnológico. E o resto, o que está para trás? Vai tudo para o
lixo. Porque este país é assim, é um país de milionários. Quando vem uma
coisa nova, zás, o que é antigo, torna-se obsoleto, e deita-se fora. Se
eu quiser, agora, fazer um livro todo à mão, não posso. Quer dizer,
posso, sim, na Suíça, na América. Isto é, começo agora a poder. Com a
Oficina do Cego, o Homem do Saco, as Edições 50 Kg.
Então, comecei
fazer os livros da Contra-Margem, e da Subterrâneo Três, com aqueles
dois tipógrafos. Quando eles me diziam “Estamos velhos, isto não dá
nada. Demora muito tempo, sabe?, e dá muito trabalho”, eu respondia:
“Tempo é coisa que não me falta. Eu não tenho pressa. ‘Eu e o rio Tejo’,
como dizia o Pessoa.” O Palma era tipógrafo e filho de tipógrafos. Eles
tinham lá feito livros do Aquilino e do Raul de Carvalho. Coisas lindas
como os amores. E eu fidelizei-me a fazer livros lá. O próprio João
Apolinário Ramos não era só tipógrafo. Era poeta. Um poeta singelo, com
livros muito puros, ingénuos. Além disso, ao fim do dia, despia a bata,
vestia o casaco, e ia ter com a namorada. Mas eu já lhe digo quem era a
namorada… Então, ele descia a Calçada de São Francisco e ia a pé até à
Rua da Voz do Operário. E lá estava a namorada dele, a Biblioteca da Voz
do Operário. Era ele que cuidava dela. Ele era mas é pai, mãe e avó
daquela biblioteca.
A minha ideia, com Mestre José Apolinário Ramos e
com o Palma, era fazer a chamada composição em cheio. Sabe o que é? São
os livros. Porque, naquela altura, eles faziam cartões, envelopes,
coisas assim. E foi assim que eu fiz esse livro fabuloso que é A Morte de Camões, do Gomes Leal, com os caracteres todos, ali, tudo feito segundo os cânones. Porque isto já me vem do tempo d' O Intransigente,
de Benguela. Lá, em Benguela, é que eu comecei com essas vanguardices.
Outras vanguardas. E outros gozos. Por exemplo, eu compunha tudo em
caixas baixas, como se diz nesta linguagem para as minúsculas. Mesmo os
títulos (arranjava um corpo maior). O que dava àquilo tudo um ar
estranho e, claro, muito diferente. A arte de paginar vem de eu
trabalhar directamente nas tipografias. Porque eu sempre fui de me
envolver nesse trabalho. Ia para as oficinas, para a casa das máquinas, e
ajudava a compor. A minha escola foi esta. A basezinha foi esta. Minha e
do Paulo da Costa Domingos. A Tipografia Ideal e a Minerva, onde se
fazia o Borda D’Água. Depois, a colecção Contra-Margem veio no
seguimento de querer fazer reviver, das reminiscências, dos folhetos de
cordel. De cordel porque eles eram vendidos assim e dependurados com um
cordel. Por isso nós começámos com títulos como Maria não Me Mates,
do Camilo Castelo Branco. Para lhe dar aquele perfume… E por isso
usámos outros suportes, como o papel manteigueiro. Que era mais barato.
Mas também se nobilitava o material, assim. Não é que embrulhar manteiga
não seja uma coisa muito nobre, mas embrulhar Camilo Castelo Branco não
é o mesmo que embrulhar manteiga. Além disso, é um material com
personalidade. Tem pêlo. Pode embeber, tipo mata-borrão. Oferece
resistência. Põe à prova.
Não fui pioneiro. Em parte, eu e o &etc
prolongámos um pouco a experiência do Luiz Pacheco. Eu entrei para a
Ulisseia há mais de 50 anos. E já nessa altura eu tinha esse gosto pelos
materiais. O papel alcatrão da colecção Poesia e Ensaio. O mesmo que usámos no Zola [em Como se Morre, de Émile Zola, que Vitor Silva Tavares traduziu, facto que nunca mencionou nesta conversa]. Mas podíamos recuar à revista Contemporânea, do José Pacheco. Isto porque o Orpheu não tem relevância gráfica. Uma das capas é do Pacheco, mas… Agora, quando o José Pacheco e o Agostinho Fernandes fundam a Contemporânea,
tudo aquilo é um prodígio e uma beleza gráfica. Tudo isso me foi
influenciando. Isso e o Almada, o Amadeu, o Jorge Barradas. O Abel Manta
Pai e, depois, o filho.
Qual é a característica mais importante da &etc?
Aventuras
destas – com gentes dos bonecos, das escritas – são cometas. A
característica principal do &etc é ter 42 anos e continuar na mesma.
Não houve alterações na filosofia de estar. Por exemplo, no magazine &etc,
nunca houve uma só reunião de redacção. Não era preciso. Foi através do
humor que esta gente pôde sobreviver. Havia companheirismo. O &etc é
um espaço de liberdade por excelência. E há hoje uma quantidade de
editores que vieram daqui. Podemos dizer que são os filhotes do
&etc. A Contexto, a Fenda, até a própria Averno. Claro que tudo isso
nos podia ter transformado assim numa espécie de mausoléu. A distância
em relação à indústria e comércio da edição é que impediram isso. Não é
contra, mas à margem, que estamos E é essa sucessão de malta nova que é a
injecção de oxigénio. O &etc é um exemplo de longevidade e
fidelidade. Querem chamar-lhe contracultura? ’Tá bem. Com que linhas me
coso? Não sei. Não sou eu que me vou preocupar com isso.
Estes livros, que não são quadrados…
Os
livros do &etc não são quadrados. São rectângulos com um quadrado
lá dentro. Porque esta história do quadrado – o quadrado é lixado! – vem
em parte daquele senhor ali (aponta para uma fotografia de Almada,
retirada do Diário de Lisboa). Esta forma canónica que é o
quadrado, que está dentro do rectângulo dos livrinhos, é que os
identifica. Uma forma destas é limitativa? Não é, não senhor. Disciplina
a criação. Porque, assim, independentemente das ideias e noções
diferentes que cada um tem, todos se têm de circunscrever àquele cânone.
Isto é como o soneto. Há tetraliões de sonetos. E mesmo quando não
estão lá as duas quadras e os dois tercetos, têm de lá estar, ora deixa
ver, os 14 versos, não é? É um cânone que implica disciplina, mas que
também apela à criatividade. Uma vez fui ao atelier do Almada – o de
Lisboa, porque ele tinha um em Bicesse –, e ele estava com os estudos
sobre Nuno Gonçalves. Cada figura estava resumida ao seu espectro
geométrico. “Sabes como é que eu cheguei aqui?”, perguntou-me ele. “Eu
não, mestre”, respondo. “Cheguei aqui sem cálculo!”, disse-me ele, com
ar muito espanhol. E foi assim que eu fiz, depois cheguei à conclusão:
“Eh, ele tinha mesmo razão”. Chega-se lá sem cálculo. Primeiro fiz,
depois medi. Isto lembra-me a história do Picasso e do Braque, cada um
no seu lado do Sena, e rivais, digamos assim. Com amigos comuns, estavam
sempre a saber das coisas um do outro. Até que o Picasso se sai com
esta: “Eu não procuro, encontro.” É, de facto, uma frase… Parece que tem
duende, como o Lorca. Mas o Braque teve esta: “Eu encontro, depois
procuro.” Ou seja, arranjo uma arquitectura onde encaixo a invenção.
E agora?
Quarenta
e dois anos já cá cantam. Continuidade, não há. Aqui a chafarica, eu
chamo a isto chafarica, é uma acção poética. Tudo isto são linhas de
força. Tudo isto sem capital. E como se chegou até aqui sem dinheiro?
Aventuras semelhantes, como a do Pauvert [Jean-Jacques Pauvert, o editor
desaparecido em Setembro passado], já foram à vida. Entre nós, é caso
único, esta duração na fidelidade ao que aqui nos trouxe. Tudo isto
passou por ligações muito fortes. O Manuel João Gomes, por exemplo.
Qual é o mais recente &etc?
É este (À Barbárie Seguem-se os Estendais, de Miguel Cardoso). Este livro vem em linha de continuidade com Os Engenhos Necessários (&etc, 2014) dele. Mas também com uma coisa que eu fui fazer ao Porto, há 30 anos, O Retratado, da Fiama [Hasse Pais Brandão]. O mesmo papel vegetal. Aqui, no À Barbárie,
também a paginação acompanha o espírito do livro. Está a ver isto
(aponta uma página, encontrada com mão conhecedora). Agora, acho que
vamos regressar ao papel craft. Vamos regressar ao papel craft.
Podemos falar de Púsias?
Isto
são umas coisas que o Vitor às vezes vem para aqui e põe no papel. Nuns
papelinhos. E depois ponho p'ra aí nesta gaveta. Tenho esta gaveta
cheia de coisas. Isto são umas quadrinhas. Eu sempre tive um certo jeito
assim para umas coisas. Mas são umas brincadeiras. No entanto, tudo
isto se inscreve numa estrutura que é literária, como é óbvio. Mas são
umas brincadeiras. A intenção inicial não era nada disto. O ideal teria
sido fazer só uns exemplares e distribuir – para usar assim uma frase… –
pelas primas. Por amigos. Mas uma vez que o editor pôs os livros em
alguns postos de venda, em algumas livrarias… Que eu não sei, não ando
por aí a ver. A coisa assim é diferente. Isto passa fazer parte de um
circuito que é livreiro, editorial. Mas a intenção não era nada disto.
Ao princípio, eu mandei dois poemas para o Ricardo Álvaro, para a Piolho, e os outros ficaram por aí. Depois surgiu a ideia de fazer uma plaquette,
não ia ser mais do que isso. E depois apareceu o Luís Henriques com
aquela capa… Aí eu disse: "Eh, pá. Os poemas não estão à altura desta
capa. Tem de se fazer de outra maneira." Está a ver, eu não podia
apresentar, para uma capa destas, uma caquinha. Teve de se pré-formar
para aquela capa. Aquela capa.
É claro que estas… coisas [os poemas de Púsias]
estão carregadas de referentes, de informações que são literárias, ou
culturais, se quisermos. Embora com a palavra “cultura” eu fique com
pele de galinha… Porque a cultura pode levar para outras coisas, que,
enfim, já não têm muito a ver com a escrita e a literatura. Quando eu
digo, desde logo, “Estava eu só realisto/ menor a espairecer”,
percebe-se bem aonde é que eu quero chegar com isto, não é? Mas é claro
que há mais. E que se pode relacionar com esta capa do Luís Henriques,
que é uma coisa espantosa. Está aqui o Pessoa, é claro, aquela coisa
toda: “Finjo que sou mas não sou/ Eu nem sei o que é ser./ Pra’ qui
estou./ Até ver.” Mas também o Sá-Carneiro. E até um poema, que por
acaso até podia ter estado aqui. Deve andar para aí: “Eu não sou eu nem
sou o outro,/ Sou qualquer coisa de intermédio:/ Pilar da ponte de
Tejo…” [uma paródia a 7, de Mário de Sá-Carneiro].
Depois há
o trabalho do Rui [Azevedo Ribeiro]. Porque isto é um trabalho. Está
claro que é uma arte. Mas há um trabalho. Tudo isto é feito à mão, à
força de braços. Você imagina, alguém imagina, o que é estar a compor
isto, desta forma, letrinha a letrinha? Olhe para aqui [aponta para o
índice]. Já viu o que é meter aqui, nos ferrinhos, uma vírgula, uma
vírgula? Já viu isto, com os espacinhos, assim? Porque isto é um
trabalho de artista. É preciso uma paciência… Olhe, é preciso um curso
superior de Buda. Porque temos de ver que uma coisa é arte gráfica, e
outra é indústria gráfica. Está a perceber a diferença? É que há
alterações significativas, na semântica, repare. Isto é artesania. Mas
é, sobretudo, uma outra forma de ver a vida. É o desenho das letras, são
os ferros e as vinhetas. Aqui, está-se com as mãos na arte.