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21/01/2016

05/10/2015

...


Nesta bandeja
de inox
como pêches Melba
te trago meu Senhor
os meus dois peitos
virgens
acabados de amputar
com empatia
pelo atento oncologista
de serviço
com os dois farás duas
cúpulas
a dos Invalides
e a do Sacré-Coeur
e Santa Ágata sobe
aos céus
mas sem os peitos
que ficam em Paris
a arder


Adília Lopes, “A Continuação do Fim do Mundo”, pág. 42, &etc, 1995.




O IMPÉRIO DAS LÃS


Maria Andrade come
os túbaros
com a bruta brusquidão
do patriarcal carneiro
signo seu à nascença
Túlio-Teseu descobre
que o Minotauro
é uma camisola grenat
com duas amarelas
agulhas-farpas de tricot
enterradas
Maria Andrade-Ariadne
deu-lhe o cordão umbilical
que o devolveu
à sala vazia
onde está a camisola
é bom dentro e fora
da mãe
mais fora que dentro
e dentro é óptimo
é Natal em Nárnia
o bode expiatório
ressuscitou morreu e nasceu
Túlio gosta de touradas
à espanhola
à Hemingway
Maria Andrade vai dormir
para o sofá
ao saber disto
lavada em lágrimas
a rezar pelos touros-mártires
à Malcolm Lowry
(malhas que a Benetton tece!)


Adília Lopes, “A Continuação do Fim do Mundo”, pp. 58-9, &etc, 1995.


O que é que eu te pareci
da primeira vez
que me viste
no comboio?
tinha perguntado
Maria Andrade
a Túlio
a vespa de Carroll
e a Hermínia Silva
e eu?
o chinês da Pearl Buck
que estudou
medicina ocidental
mas que casa
com a chinesa tradicional
que vê pela primeira vez
no dia do casamento
a quem desata os pés atados
dentro de uma bacia
com água morna
para não doer tanto
antes de fazerem amor
pela primeira vez
meses depois
do dia do casamento
e o William Hurt
que faz de cirurgião
a dizer à operada
que tem receio
de mostrar a costura
com agrafos
ao marido
que ela parece
uma beldade
saída das páginas da Playboy
com os agrafos e tudo


Adília Lopes, “A Continuação do Fim do Mundo”, pp. 70-1, &etc, 1995.




Maria Andrade vai
à casa de banho
do aeroporto de Kinshasa
para rezar
precisa de agradecer
o encontro fortuito
com Túlio
como nas igrejas
em que entra
pela primeira vez
(é a primeira vez
que entra na casa de banho
do aeroporto de Kinshasa)
pede três graças
que mantém secretas
o Pai bate na testa
o Filho entre as maminhas
o Espírito na maminha esquerda
e o Santo na direita
às vezes o Espírito Santo
fica todo na maminha esquerda
outras vezes o Santo
fica no ar entre as maminhas
Maria Andrade
de joelhos
de mãos postas
reza
mas as maminhas interferem
com os antebraços
Maria Andrade
nunca viu nada escrito
sobre este assunto


Adília Lopes, “A Continuação do Fim do Mundo”, pp. 80-1, &etc, 1995.

02/03/2015

...


      “Aos 21 anos recorri a uma psicanalista estúpida. Contei-lhe que tinha lido o Em busca do tempo perdido. Ela disse-me: Ainda não perdeu muito tempo! As professoras e as psicanalistas não leram livros. Percebi isto tarde. Não vale a pena.”

17/11/14


Adília Lopes, “Manhã”, p.126, Assírio & Alvim, 2015.

23/04/2014

DE 24 PARA 25 É O NATAL…


Eu quero foder foder
achadamente
se esta revolução
não me deixa
foder até morrer
é porque
não é revolução
nenhuma
a revolução
não se faz
nas praças
nem nos palácios
(essa é a revolução
dos fariseus)
a revolução
faz-se na casa de banho
da casa
da escola
do trabalho
a relação entre
as pessoas
deve ser uma troca
hoje é uma relação
de poder
(mesmo no foder)
a ceifeira ceifa
contente
ceifa nos tempos livres
(semana de 24 x 7 horas já!)
a gestora avalia
a empresa
pela casa de banho
e canta
contente
porque há alegria
no trabalho
o choro da bebé
não impede a mãe
de se vir
a galinha brinca
com a raposa
eu tenho o direito
de estar triste

Não sou
menos
que Einstein
nem que
Claudia Schiffer
não sou
mais
que uma osga
ou que uma barata
não sou mais
inteligente
que um mongolóide
tenho um Q. I.
no limite
superior
da média
todos diferentes
todos iguais
incluo também
os animais
o que nos separa
dos animais
é o pecado original
não é o reconhecimento
no espelho
nem o complexo de Édipo

Os pássaros voam
porque têm asas
os pássaros têm asas
para voar

Mas não se deve perguntar
porquê? nem para quê?
mas para quem?

Darwin Lamarck Afonso Lopes Vieira Cuvier
passarinhos nos ninhos feitos
com mil cuidados
ninhos caídos das árvores
nos caminhos
passarinhos sozinhos
desdentados

A segunda lei da Termodinâmica
a lei leteia
a seta do tempo
a serpente do Paraíso
a entropia
existe
mas também
o Novo Testamento
e as sete artes
existem
para a contrariar
(desejo, logo sou
e eu não acabo
de ser)

Tempestade
num copo
de água
tentar escrever
e não conseguir
o texto é público
é privado
o texto é penico
é púlpito
descarado como o macaco
tímido como a osga
o leitor
ou o autor
partiu uma perna
e o texto
é janela
das traseiras

O amor
é foda
o amor
é boda
(a senhora sabe
da poda?)
o amor
está sempre
fora
de moda
é preciso amar
atrever-se a amar
andar com este
e com este

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa

Gosto de me deitar
sem sono
para ficar
a lembrar-me
das coisas boas
deitada
dentro da cama
às escuras
de olhos fechados
abraçada a mim


Adília Lopes, “Florbela Espanca espanca”, pp. 7-12, Black Sun Editores, 1999.

09/04/2014

Sophia...


Uma tarde Maria Cristina
obrigou-me a comer osgas
e a repetir
com a boca cheia de osgas
as pessoas sensíveis
gostam de comer osgas
mas não gostam
de ver matar osgas
por isso têm de comer
as osgas vivas
se querem fazer na vida
aquilo que gostam


Adília Lopes, “Maria Cristina Martins”, p.12, Black Sun Editores, 1992.

09/10/2011

A fatal-lista...


I

Voltou de Pondichéry no meio
de sedas damascos diamantes concubinas
o cordão de ouro da mãe
não serviu para pagar
a edição dos seus poemas
mas para pagar a passagem
para Pondichéry
onde veio a fazer fortuna
nenhuma musa teve a caridade
de gelar a tinta no seu tinteiro
também nunca lhe faltou o pão com queijo branco
nem o papel
tanto o papel para escrever poemas
como o papel de carta
escreveu cartas a Diderot
a que juntou poemas
Diderot nunca lhe respondeu
no regresso recebeu-o com frieza
dei-lhe um conselho sensato
o que é que queria mais?
a obstinação do poeta de Pondichéry
em escrever poemas que Diderot acha maus
é como a de Sísifo
mas há uma diferença
nos montes não há pedras boas e pedras más
e nos livros há poemas bons e poemas maus
as concubinas as sedas os damascos e os diamantes
não o consolam de escrever maus poemas
emenda muito os seus poemas
os papéis que  os herdeiros vão encontrar
depois da sua morte
parecem palimpsestos
mas as emendas são como um eczema
sobre uma pele de que nunca se gostou

2.XII.1985

Adília Lopes in «O Poeta de Pondichéry seguido de Maria Cristina Martins», p.13, ed. Angelus Novus, Braga-Coimbra, 1998.
O Poeta de Pondichéry seguido de Maria Cristina Martins de Adília Lopes