10/01/2019

...

Actividade Esquisita
Não conheço muitos editores, quero dizer, tenho alguns amigos que são editores. Não sei, em boa verdade, como funcionará a maioria das outras casas editoras. Falo por mim. Com mais de uma década de actividade, ganha-se uma particular visão das palavras escritas que nos rodeiam. Do que aspira ao livro. O livro como ponto de chegada e, depois, o texto multiplicado como os pães do milagre. A metáfora podia ser a da ampulheta em que o produto sólido se pulveriza para descer à base. E a ampulheta é o editor, virando e revirando conforme cada edição. Mas, se o mecanismo é sempre parecido, a substância jamais se repete.
Primeiro capítulo. É verdade que todo o editor aspira a publicar os livros dos autores da sua preferência. Quer tê-los consigo, constituir a sua família. Mas nem sempre é assim. Muitas vezes são os livros que vêm ter com o editor. Alguns procuram-no há séculos, à espera da janela que dá para a rua. Fernando Rojas, Ramon Llull, Walt Whitman ou Novalis quiseram e tiveram em mim essa oportunidade. Com mais ou menos coerência, o editor vai organizando o seu catálogo. No final, ele pode ser visto como um grande cadáver esquisito surrealista. Com inesperadas intromissões, acrescentos, fugas para outras ou novas colecções, os acrescentamentos e as obliterações dos que desaparecem por «esgotamento».
Mas, no quotidiano, o editor é permanentemente bombardeado por um número impressionante de aspirantes a novos escritores. Poucos imaginarão quanto se escreve nos silêncios deste Portugal. Há uma imensidão de pessoas a mexer nas letras e nos sentimentos. A arquitectar poemas e histórias. Depois, enviam as suas obras para as editoras. Ou aparecem pessoalmente.
Guardo algumas histórias curiosas destes encontros. Desde o senhor idoso que traz os seus originais num saco de pó de talco, que o nervosismo e o sopro transformam num indescritível nevoeiro que cresce por todo o escritório, até damas envoltas em perfumes tão caros quanto insuportáveis. Uma outra senhora que envia vinte contos «para compensar o trabalho de ler o seu original». Outro que está no hospital, quase a entrar para a sala de operações, e quer saber com urgência se os seus textos têm, ou não qualidade. Há aquele que chega a trazer 4000 páginas manuscritas para publicação, e o outro que tem a certeza de que haverá, pelo menos, 100 000 pessoas determinadas e ávidas do seu texto, que seguramente «vai vender… que nem pãezinhos». Depois, há os que oferecem «todo o dinheiro que seja necessário» para ver o seu livro lá fora, e também os mais prepotentes, que julgam fazer-nos o maior favor do mundo possibilitando-nos a edição do seu livro que os acompanha há décadas e, quanto a eles, «uma verdadeira obra-prima».
No segundo capítulo aparecem escritores que até já publicaram noutros lados e acumulam uma desconfiança generalizada de que os editores são oportunistas que vivem à custa dos autores. Que falsificam as tiragens. Que é impossível que o seu livro não tenha vendido dezenas de milhar de exemplares, pois pelo menos, todos os seus amigos o compraram. Desconfiam da eficácia da promoção que lhes é feita. Convencem-se de que é o próprio editor a boicotá-los, porque o seu livro não se vê nas livrarias. O pior é que nem disfarçam o ressentimento íntimo de que o editor os explora; «fartando-se de ganhar dinheiro à custa do seu talento».
Neste exemplo caberia Miguel Torga que, até ao fim da vida, persistiu em ser senhor pleno da sua obra, evitando dar lucro editorial a terceiros. Disse-me mais do que uma vez: «Os editores, não me largam. Eu bem sei o que eles querem. Querem ganhar dinheiro à minha custa».
Finalmente, «os mistérios gloriosos». O maior prazer do editor. Senti-o mais de uma vez. A primeira vez foi no metro, nas mãos de um desconhecido em leitura atenta. Um livro que eu sabia ser bom e transportava indecifravelmente uma secreta história editorial que jamais aquele acidental leitor conheceria. Depois, o gozo de cheirar livros frescos de tinta, novos, acabados de chegar da tipografia. Vê-los nas estantes de gente que apreciamos. E surpreende-los expostos, inesperadamente, em montras de países estrangeiros. E receber uma ou outra carta a testemunhar quanto um determinado livro foi importante na sua vida. Ele há tanto mistério a envolver cada livro! Mas isso é já substância para outras histórias.”
Manuel Hermínio Monteiro. In “Ler – Livros & Leitores”, n.º 35, Verão de 1996.

06/01/2019

...

“Nasci em Fresno, na Califórnia, em 1908, e frequentei as escolas oficiais da cidade até aos dezasseis anos, altura em que passei a trabalhar nas vinhas e pomares da região. Sempre contei entre os meus colegas de turma rapazes e raparigas portugueses – açorianos, como vim mais tarde a saber, pois parece que poucos portugueses da Metrópole emigravam para a América. Ainda hoje estou para saber porquê. Frank Silveira foi um grande amigo meu e excelente jogador de baseball. Elvira Martins era uma morena muito bonita, cheia de vida e com uma linda voz – se bem que na Emerson School apenas cantasse canções populares americanas e não o fado, que tanto aprecio e ouvi pela primeira vez em Lisboa, em 1949, na Adega Machado. Há português no grande escritor americano John dos Passos, e haverá por certo vários outros notáveis escritores e artistas portugueses na América que não conheço. Foi longa a minha aprendizagem de escritor – e o certo é que durante anos receei que se prolongasse para sempre –: dos meus treze anos, quando comprei uma máquina de escrever, expressamente decidido a tornar-me escritor de profissão, até aos vinte e seis, quando publiquei o meu primeiro livro, The Daring Young Man on the Flying Trapeze and Other Short Stories. Agora, aos sessenta e três anos, sinto-me feliz por dizer que continuo escritor de profissão, que acredito no acto de escrever (mais profundamente do que nunca, colocando essa profissão acima de todas as outras – onde mais poderia acaso coloca-la?) e que continuo a ganhar a minha vida com a pena, se me é permitido empregar tão velha e pretensiosa expressão. Escrevi nos géneros mais diversos – histórias, ensaios, novelas, romances, entremezes, peças de teatro, poemas e canções (música e letra) –, mas creio que sou sobretudo conhecido pelas minhas primeiras histórias e pelas peças de teatro, especialmente The Time of Your Life. Não fiz quanto quisera com o que escrevi (esperava, por exemplo, mudar para melhor a própria raça humana, e nem eu nem nenhum outro escritor teve qualquer influência real e aparente na raça humana em geral), mas sinto-me bastante satisfeito por ter sido um trabalhador honesto e dedicado e por ter escrito até à data 44 livros. E se talvez apenas quatro se encontram realmente vivos na hora actual, já não é nada mau, nem me lamento; antes dou graças a Deus. My Name is Aram é um desses quatro livros.
William Saroyan”
William Saroyan, “O Meu Nome é Aram” Editorial Verbo, col.«livros RTP / Biblioteca Básica Verbo /89», Lisboa, 1972.

03/01/2019

...



Em suma, na imensa maioria da sociedade portuguesa não se formou um carácter cívico em harmonia com a vida moderna e fez-se todo o possível para destruir o carácter cívico antigo. Desta deficiência educativa, o sentimento de vida nacional não evoluiu normalmente e resulta um sentimento, desvirtuado em parte, em parte incompleto.”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pp.28-9, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

Porque afinal todos os actos do povo português não são actos de quem agoniza, são actos de quem não sabe, não são escabujos de povo exausto, são actos todos derivados da sua profunda ignorância. Pois que queriam que fizesse um povo que nem sequer sabe ler? Queriam talvez que esse povo fosse resolver a questão social? Queriam talvez que ele se interessasse pelos vastos problemas da filosofia social e se apaixonasse pelos transcendentes ideais da justiça, tal como a concebe e teoriza o homem moderno?”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pág. 37, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

Não; não é necessário recorrer à hipótese inconsciente da degenerescência colectiva, nem a factores antropológicos, mais duvidosos ainda, para explicar o pessimismo nacional. Este nosso doloroso mal-estar ainda não é o paroxismo duma raça decadente, ainda não é o crepúsculo dum Povo. O nosso pessimismo que dizer apenas isto: que em Portugal existe um povo, em que há, devoradas por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre porque a não educam e um minoria que sofre porque a maioria não é educada.”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pp. 40-1, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

02/01/2019

...


Veneza, 2 de Janeiro de 1938 Ora até que enfim, Veneza! Mas esta velha namorada está gasta. Não há corpo de mulher que resista às noitadas de vinte gerações.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 55, 1941, Coimbra.

01/01/2019

...


“E em 1999 os amish venderam doze vezes mais moinhos (de café) e velas e batedores de claras etc. do que era costume porque as pessoas temiam que o BUG DO MILÉNIO paralisasse os electrodomésticos e o fornecimento de energia eléctrica. Os sociólogos diziam que o medo de avaria dos sistemas electrónicos que pusesse fora de serviço as televisões e os micro-ondas e as caixas de multibanco era fruto de um milenarismo subconsciente e recalcado e algumas pessoas presumiam que iria tratar-se de um momento fatídico na história da civilização ocidental que levaria ao caos e a convulsões sociais e outras coisas que tais e haveria de permitir à sociedade ocidental libertar-se da ditadura tecnológica e entrar numa nova era que seria harmónica e espiritual e mística. E nalguns países os governos imprimiram reservas de dinheiro e no Canadá o governo organizou exercícios de evacuação de populações e em Inglaterra e na Dinamarca os cidadãos armazenaram reservas de açúcar e farinha na banheira e na Finlândia os farmacêuticos esgotaram os stocks de iodo cuja utilização era recomendada no caso de uma catástrofe nuclear e os Finlandeses temeram que o BUG DO MILÉNIO pusesse fora de serviço os sistemas de segurança nas centrais nucleares russas. Os sociólogos diziam que o BUG DO MILÉNIO fazia parte da lógica do imaginário social da era moderna e que no século XX o mal tinha assumido a forma de algo infinitesimal e que as pessoas já não tinham medo das coisas grandes e complicadas como a locomotiva etc. mas dos átomos e vírus e genes e priões. E os psicanalistas diziam que o BUG DO MILÉNIO no fundo desempenhava na vida da sociedade o papel do parricídio que haveria de permitir o prazer e a luxúria à nova geração tecnológica.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 114-15 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

31/12/2018

...


Coimbra, 1 de Janeiro de 1943 – Outro ano. Toda a gente excitada, e, de conhecido para conhecido, esta senha:
– Boas entradas!
– Igualmente! – responde o contemplado.
E lá segue cada qual o seu caminho, com o supersticioso pé direito à frente, não vá o demo tecê-las.
A estafada e monocórdica ária de sempre, que apenas moi os ouvidos de que é por condenação um rói-migalhas, e passa o tempo a reparar nas inocências do homem, e a registá-las.
Ano Novo! Os torcegões que a realidade sofre nas nossas mãos, a ver se conseguimos disfarçar-lhe a crueza! A imaginação colectiva aos sobressaltos, na grata ilusão (na triste ilusão) de que a coisa vai começar agora, – agora que o ano é novo, a idade é nova. No fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o caminho é bonito e nos apetece. Recomeçar uma, duas, cinquenta vezes, e chegar à meta com este lamento hipócrita na boca: – Ah, se eu voltasse aos vinte anos e soubesse o que hoje sei!
Que me lembre, apenas Raúl Brandão teve a grandeza e a lealdade de escrever que repetiria o calvário da vida sem lhe alterar o itinerário. Isto sim, isto é de quem entendeu a fundo que a existência não deve ter soluções de continuidade, nem ser prevista. Deus me livre de saber que por certo beijo que roubei em rapaz a uma cachopa da minha terra receberia a bofetada que recebi! A coisa foi maravilhosa por ter sido um jogo, um atrevimento, um risco, e motivar aquela réplica inesperada e ardente!
– «Se eu soubesse…»
Mas como felizmente ninguém pode voltar atrás, nem saber antes de saber, vai de recomeçar vida nova cada novo ano. Cada novo ano que passa a velho logo que se fazem 365 tolices…”


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp.102-104, Coimbra Editora, 1960.

29/12/2018

Nada de badana...



...



"AMAZING NAILS
[MATRIMÓNIO]
As Amazing Nails são entidades histéricas que variam entre o disforme e as putas do Vaudeville. Vêm da Reboleira e da Damaia montadas em maridos e namorados semiusados com muito Tunning à mistura. As Amazing Nails discutem muito sobre a ética e a moral das relações mundanas. São o verdadeiro exemplo da rivalidade feminina. Já foderam todos os gajos do lado esquerdo das suas ruas e incluíram também o lado direito porque o gel quando nasce é para todos. Dominam os cem metros quadrados à frente do estabelecimento porque lá dentro não há ninguém. Primeiro afixaram um horário, depois afixaram um cartaz e agora só por marcações. O verde e o rosa dominam o Branding. Parece um Franchise de pastilhas elásticas, rebuçados e gomas. Recebem as visitas da Máfia Local, dos filhos, sobrinhos e afilhados. Dão-se a conhecer e conhecem os segredos de meio mundo. Particularmente alimentam-se de pastéis de nata, de abatanados e dos mexericos da Borderline drogada que vai meter achas na fogueira. De vez em quando há um Gelinho para fazer que implica um cigarro depois e um gancho na cabeça.
As Amazing Nails são o centro das atenções mas não estão no Spot. Ainda distam uns cinquenta metros da Rua. Da rua à praceta vai um mundo de distância, uma distância entre Cabo Verde e as ilhas Maurícias. Lá ao fundo da rua ouve-se o crioulo, aqui na praceta diz-se mal de alguma coisa. Aqueles cem metros quadrados à frente do estabelecimento, mijados de cão e com ervas a crescer por entre as pedras da calçada, parecem uma zona desmilitarizada. As ervas verdes condizem com o reclame, o mijo do cão não dá com nada em especial.
As Amazing Nails são tão más que chegam a ser boas. Eu bem ponho os óculos escuros e enfio os cornos no chão quando passo à frente delas mas no fundo, se a minha mãe deixasse, desposaria qualquer delas. Não que elas me quisessem. Masco pouca pastilha elástica mas sempre tenho uma motoreta para levá-las a um Dolce Vita qualquer. Não sei se tenho unhas para tocar estas harpistas mas o artista que há em mim deseja-lhes toda a sorte do mundo."
Tó Carlos, “Variações Bíblicas”, pp.43-5, Momo, Lisboa, 2018

28/12/2018

...

“(…) os Americanos inventaram a Internet porque temiam que os Russos nalguma próxima guerra mundial pudessem reter quaisquer informações vitais para a liberdade e a democracia. E trezentos e setenta milhões de pessoas tinham acesso à Internet e podiam comunicar os seus pensamentos e desejos em liberdade e sem inibições. E algumas agências de viagens propunham através da Internet e por preços moderados excursões virtuais a países longínquos de acordo com os desejos pessoais de cada hipercidadão. E as mulheres podiam encomendar pela Internet o esperma de um dador anónimo e alguns laboratórios propunham o esperma de homens de qualidade superior como astrofísicos e engenheiros e jogadores de basquetebol etc. As mulheres podiam escolher o esperma de acordo com cento e cinquenta critérios diferentes nacionalidade de origem raça religião habilitações académicas preferências e passatempos pessoais profissão altura peso grupo sanguíneo cor do cabelo pilosidade circunferência dos testículos etc. e podiam por exemplo comprar esperma de um biólogo americano de trinta e seis anos e origem afegã de cabelo negro e olhos azuis ou o esperma de um engenheiro de aviação de quarenta e dois anos do Kansas de religião baptista e de origem holandeso-ucraniana ou o esperma de um xadrezista talentoso de dezassete anos e origem chinesa com testículos pequenos. Uma dose de esperma custava em média 1050 dólares americanos já com portes incluídos e as mulheres também podiam encomendar com ele uma gravação com a voz do dador do esperma. Na gravação dizia ORA VIVA! HOJE É UM DIA DEVERAS BELO COMO SE FOSSE FEITO PARA DAR UMAS PASSEATAS PELA NATUREZA. ESPERO QUE FIQUE CONTENTE COMIGO. E uma mulher que mandou vir a gravação quis saber se não poderia obter um desconto de dez por cento sobre o esperma porque o dador do esperma rolava os erres.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 108-9 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

27/12/2018

...


Recorda-se da história atribuída ao Dr. Abernethy (…) certa vez um ricaço avarento quis apanhar de borla uma consulta ao célebre médico. Arranjou conversa com êle e impingiu-lhe o relato da sua doença, como se tratasse duma pessoa imaginária. Suponha V. Ex.ª, disse o avaro, que os sintomas são estes; e agora, doutor, o que lhe aconselhava? Apenas uma coisa, volveu Abernethy: que fôsse consultar um médico.”
Edgar Allan Poe, “A Carta Roubada” op. cit in “Antologia dos Mestres do Conto Policial – série primeira”, pág. 27, Portugália Editora, Lisboa, s/d. Org. João Gaspar Simões.


26/12/2018

...

 “No ano de 2047 o amor-paixão parecerá, segundo toda a verosimilidade, tão antiquado como o cristianismo. «Amo-te» deixará de ter esse odor confessional, esse bafio de bruxaria medíocre.”
Roger Vailland, “A Roda da Fortuna”, Pág. 173, Editora Ulisseia, Lisboa, 1961.

25/12/2018

...

Eu amo os mortos. Amo-os dum modo especial. Mas não tanto como os não nascidos.”
William Soroyan, “Um Dia no Crepúsculo do Mundo”, pág.212, Editora Ulisseia, Lisboa, 1973. Trad. Marina Aparício e Fernando Lopes.

...


Marselha, 25 de Dezembro de 1937 Viajar não é bem como diz a Agência Cook. Aquela honrada companhia de mostrar o mundo é, sem saber, uma espécie de agẽncia funerária de uma prematura morte com guia e tudo. Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.
Nesta hora, aqui deitado na cama dum Hotel Continental qualquer, a ouvir os passos de um milhão de pessoas na Canebière, que sou eu? Uma pura ressonãncia morta de uma vida longínqua.
Quando amanhã me erguer, ressuscitar, e for outra vez manjerico na minha terra, deste dia, desta hora, desta grande cidade, do que fui nela, que terei eu na mão? Nada, porque não foi nada aquilo que o Lázaro trouxe da sepultura.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 50, 1941, Coimbra.

21/12/2018

...

“E os comunistas ciaram uma língua especial a que as pessoas chamaram de pau e que se devia falar na nova sociedade até que se começasse a comunicar pela força da ideia revolucionária. Os linguistas diziam que a língua de pau servia o fim de curto-circuitar a comunicação na esfera pública e fora dela e assim apagar da consciência humana as estruturas linguísticas cognitivas. A língua de pau caracterizava-se por nela as palavras entrarem num complicado sistema de conotações que remetiam para os mecanismos de poder da sociedade. Desta forma as palavras iam perdendo o seu sentido original que era substituído por um significado que era tanto mais lato quanto mais firmemente o orador estava ancorado na hierarquia política. E quando um comunista encontrava outro comunista dizia por exemplo COMO É QUE AVANÇAM AS COLHEITAS NO VOSSO CONSELHO? E o outro dizia CONVOCÁMOS OS AGRICULTORES PARA PARTICIPAREM NO CUMPRIMENTO DO PLANO DESTE ANO ou OCUPÁMO-NOS ENERGETICAMENTE DAS TAREFAS FINAIS ou OS CAMARADAS APRESENTARAM PROPOSTAS DE MELHORAMENTO. Inicialmente essa língua foi utilizada sobretudo para falar do trabalho e das decisões políticas do Estado mas com o passar do tempo as pessoas aprenderam a falar nela de tudo do tempo das férias de programas televisivos ou do facto de a mulher se ter posto a beber e não querer ir às reuniões da associação de pais.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 106-7, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

19/12/2018

...


Porto, 19 de Dezembro de 1943 Cá ando a arrastar os sapatos nestas calçadas graníticas. Um bonzo a cada esquina, mau gosto por todo o lado, mas é o Porto, a nossa cidade mãe, com cornos em lira e jugos lavrados de fantasia.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 124 1954, Coimbra.

12/12/2018

Namasté!...


NAMASTÉ

Ia eu escorreitamente e eis que tropeço
estatelando-me na calçada portuguesa.
Vi estrelas e depois passarinhos
que logo se puseram a andar
ao chegar uma gaivota zen budista.
Hi, I’m Jonathan Livingston Seagull, disse-me.
E eu: Malditos turistas vêm para cá e não aprendem
a língua do Ramos Rosa.
Eu sei-a diz-me prontamente
sou o Fernão Capelo Gaivota e tu
agora tens de escolher se ficas aqui a este nível
ou se regressas para continuares a trabalhar com o Bando.
Enxoto-a com um Aqui há gato! E um Something is fishy!
em inglês não vá ela do Rosa só perceber a ponta dos espinhos.
Mas apareceu-me logo em substituição
uma referência Hollywoodesca.
I’m Morpheus and in this hand I have a red pill
that takes you to the Lá-Lá-Land and in the other
a blue one that takes you back to your day-by-day life.
Fodasse esta calçada portuguesa está repleta de turistas!


RAR

10/12/2018

...


“No final do século as pessoas queriam manter-se jovens e dinâmicas mas também ser política e sexualmente correctas ao mesmo tempo o que significava não seduzir mulheres nem sorrir para elas de uma forma lúbrica nem coisa que o valesse nem contar piadas de Judeus e de Alemães e de homossexuais. E algumas mulheres apresentavam queixa contra os seus superiores por estes terem tido uma conversa de conotações eróticas ou lhes terem proposto levarem-nas a casa e no acto terem feito uma cara moralmente dúbia e em 1997 um advogado americano teve de pagar quatro milhões de dólares à secretária por lhe ter despejado no decote uma mão-cheia de bombons de chocolate. E em 1998 alguns americanos quiseram destituir o seu presidente que mantinha relações pouco correctas com uma estagiária e lhe apalpava os seios e lhe enfiava charutos cubanos na vagina e ela fazia-lhe sexo oral por exemplo quando ele estava ao telefone com um representante governamental e os Americanos entretanto bombardeavam o Iraque e os Iraquianos diziam que era para desviar as atenções do comportamento sexual pouco correcto do seu presidente.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 97, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

07/12/2018

...

“Os jovens consideravam que era necessário voltar às raízes da sabedoria e que a sociedade industrializada e a escolaridade obrigatória tinham alterado a relação do Homem com o verdadeiro conhecimento. E diziam que o que dantes qualquer criança sabia hoje já só era do conhecimento de meia dúzia de especialistas e que antigamente as crianças conheciam diversas plantas medicinais e sabiam fazer armadilhas para apanhar coelhos e fazer bolas de erva fresca entrelaçada e enrolar cigarros com folhas de morangueiro e bochechar a boca com uma decocção de urtigas para não lhes darem uma seca em casa. As pessoas mais velhas por seu lado diziam que o que dantes só meia dúzia de especialistas tinha conhecimento hoje qualquer criança sabia por exemplo a raiz quadrada etc. Mas os jovens consideravam que a raiz quadrada de nada servia e passaram a viajar para a Índia e para o Nepal para se familiarizar com a sabedoria oriental e diziam que a moral cristã escravizava as pessoas e que as pessoas na Europa só sabiam contar as árvores ao passo que os Indianos viam a floresta. E não queriam viver num mundo violento e miserável e poluído e partiam para zonas desabitadas na América ou na Escócia ou em França onde fundavam comunas e fumavam haxixe e marijuana e copulavam e entoavam cânticos e ensinavam aos filhos como viver em harmonia com a natureza e defendiam as tradições e tamborilavam em pandeiretas e dançavam à volta de fogueiras e apregoavam ideias.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 94-5, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

...



04/12/2018

...


“No final do século as pessoas nos países democráticos começaram a ficar com a impressão de que a democracia e a sociedade de consumo de certa forma também contribuíam para o eclipse da memória e diziam que o excesso de informação era tão perigoso como a censura comunista e que as pessoas estavam alheadas das tradições e das raízes etc. e que a sociedade de consumo tendia inevitavelmente para o esquecimento devido ao seu hedonismo. E que a longo prazo o excesso de informação acabaria por ser ainda mais perigoso que a censura comunista porque não provocava uma reacção e a vontade de resistir mas o cansaço e a resignação.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 93, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

03/12/2018

...


Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 19, 1941, Coimbra.

02/12/2018

...

“Os sociólogos diziam que a neurose e a depressão eram reflexos da transformação cultural da sociedade ocidental no século XX. E que a neurose era o reflexo de uma sociedade em que dominavam a disciplina e a hierarquia e as proibições sociais e que se tratava de uma expressão patológica do sentimento de culpa. E que a depressão era uma expressão patológica do sentimento de impotência e da consciência do vazio. E que primeiro as pessoas ficavam neuróticas porque teriam gostado de fazer coisas proibidas mas não puderam porque eram proibidas e quando violaram a proibição sentiam-se culpadas. E mais tarde quando tudo era permitido começaram a ser depressivas porque não sabiam o que queriam no fundo fazer e transformaram-se em novos sujeitos patológicos e os psiquiatras diziam que o sujeito patológico tinha mudado completamente de figura. E os sociólogos diziam que a depressão era uma compensação para um mundo em que a liberdade individual já não representava um ideal a alcançar de forma dolorosa mas um obstáculo que devemos dolorosamente ultrapassar. E que a neurose era a angústia de violar as proibições e a depressão a angústia perante o peso da liberdade. E algumas pessoas queriam procurar em tudo algum sentido e padeciam de frustração existencial. E os psicólogos diziam que a procura do sentido da vida se deve à necessidade de expulsar dela o vazio e a morte e que isso permitia viver mais intensamente. E no final dos anos oitenta a Organização Mundial da Saúde emitiu uma declaração dizendo que a depressão era a patologia mais comum no mundo ocidental. Mas dos Estados Unidos da América começaram a infiltrar-se na Europa novas proibições sociais por exemplo que não se deve fumar ou abusar do sal ou contar piadas sobre homossexuais ou viver ociosamente etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 77-8, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

30/11/2018

...

“Quando as pessoas deixaram de acreditar em Deus começaram a procurar uma forma de exprimir que o mundo era absurdo e inventaram o futurismo e o expressionismo e o dadaísmo e o existencialismo e o teatro absurdo. E os dadaístas quiseram acabar com a arte e faziam obras de arte com base em coisas com que antigamente não se faziam como arames e fósforos e palavras de ordem e títulos de jornal e listas telefónicas etc. e diziam que se tratava de uma arte nova e absoluta. Os futuristas escreviam versos cheios de interjeições como por exemplo KARAZUK ZUK ZUK DUM DUM DUM e faziam a apologia de uma tipografia expressiva e os expressionistas e os dadaístas escreviam versos em línguas novas e desconhecidas para mostrar que todas as línguas se equivaliam fossem ou não compreensíveis por exemplo BAMBLA Ó FALLI BAMBLA e os surrealistas por seu lado apregoavam a escrita automática e metáforas pouco habituais como por exmplo A MINHA BANHEIRA DE CORTIÇA É COMO O TEU OLHO DE MINHOCA e explicavam porque o sentido desse verso jorrava dele de forma espontânea e que era precisamente isso que era físico e metafísico ao mesmo tempo. Os existencialistas diziam que a metafísica estava em decadência e tudo era subjectivo mas que a objectividade ainda assim existia e que lidávamos mal com a situação porque o mais importante era a intersubjectividade. E que o que estava em causa era que tudo fosse autêntico e que a história e o seu curso decorriam da questão filosófica de saber se o Homem é capaz de comunicar de forma autêntica e se fosse esse o caso a história poderia fazer mais sentido que até então nomeadamente se fosse renovada a instância transcendental. E os linguistas diziam que a comunicação era apenas uma questão do modo de desconstrução e que há maneiras diversas de desconstruir. E as pessoas idosas diziam que a comunicação estava em maus lençóis porque as pessoas já não eram capazes de se olharem nos olhos e que desviavam o olhar mal se encontrava com o de outra pessoa e que hoje em dia as pessoas já só olhavam nos olhos os cegos.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 71-2, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.


...





29/11/2018

...

E em 1942 os representantes da Cruz Vermelha suíça ficaram a saber das câmaras de gás nos campos de concentração mas decidiram não publicar a notícia porque temiam que os Alemães poderiam abusar disso como pretexto para desacreditar as organizações humanitárias e vedar-lhes o acesso aos campos de prisioneiros e hospitais. E em 1944 os Alemães rodaram para os representantes da Cruz Vermelha e diversas comissões internacionais um documentário sobre a vida no campo de concentração de Terezín. No filme entraram 270 actores e 1600 crianças e vários milhares de figurantes adultos dos quais se excluíram à partida os de cabelo claro porque não tinham um ar suficientemente judeu. O título do filme era QUE BEM QUE SE ESTAVA EM TEREZÍN e neles os judeus iam ao café e cultivavam legumes em pequenas hortas e saltavam à água de cabeça na piscina e iam ao banco levantar dinheiro e aos correios para receber encomendas e escutavam óperas e na biblioteca local debatiam sobre o sentido da civilização europeia. E quando as filmagens terminaram os Alemães organizaram onze transportes especiais e mandaram todos os que participaram no filme para o campo de extermínio em Auschwitz.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 64-5, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

28/11/2018

...


“Nos anos cinquenta os protagonistas dos filmes copulavam sobretudo em campos de trigo porque os campos de trigo estavam associados à juventude e à nova vida que esperava os jovens protagonistas e o vento acariciava as espigas e no horizonte punha-se o Sol e os seios das mulheres inchavam e nos anos sessenta os protagonistas dos filmes copulavam nas ondas da maré nas margens do oceano porque isso era romântico e a areia colava-se-lhes à pele e viam-se-lhes os traseiros e acima da água levantava-se a maresia. Nos anos sessenta também surgiram os primeiros filmes pornográficos em que se copulava quase o tempo todo e nos lugares mais diversos. E nas revistas para jovens raparigas as redactoras mais experientes explicavam como fazer sexo oral bem feito etc. E nas revistas para jovens rapazes os redactores mais experientes explicavam como evitar a ejeculação precoce e como enfiar o preservativo sem que a rapariga o notasse. E as agências de publicidade inventavam anúncios para preservativos e reflectiam sobre a melhor forma de se interpelar os jovens espectadores (aqui está um bom exemplo de como seria confuso usar o novo acordo ortográfico: “jovens espetadores” Nota RAR) e houve uma agência que se lembrou de fazer clipes publicitários em que copulavam diversas figuras dos contos de fadas como a Branca de Neve e a Cinderela e princesa Pele de Burro e Xerazade. Também em filmes artísticos cada vez mais se copulava mas os críticos diziam que não era a mesma coisa porque o que estava em causa não era a cópula enquanto tal mas a sua representação. E quando nalgum filme artístico a cópula era abundante diziam que esse filme expressava a nossa actividade entomológica perante o amor e que estava bem assim porque tal nos permitia reflectir melhor sobre o papel da cópula não só no contexto antropológico cultural ou político mas igualmente na vida humana. Nos anos setenta os protagonistas dos filmes copulavam sobretudo dentro de automóveis porque isso era original e a vida não parava de acelerar e os jovens espectadores que não tinham carro podiam assim imaginar o que os esperava na vida. E cada vez mais os homens estavam deitados por baixo e as mulheres estavam montadas em cima deles porque entretanto se tinham emancipado. E nos anos oitenta surgiu o sexo por telefone e os homens marcavam diversos números onde mulheres lhes diziam ao auscultador ESTOU A FICAR MOLHADA ou ENFIA-MO ATÉ AO FUNDO ou DEIXAS-ME SABOREAR? etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 60-1, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

Mnemónica...

“Mnemónica para achar o valor de π com 30 decimais

Que J’aime à faire apprendre un nombre utile aux sages;
Immortèl Archimède, artiste ingénieur,
Qui de ton jugement peut donder la valeur?

Pour moi, ton problème eut de féconds avantages!…

3,141592653589793238462643383279”


Edmundo B. Bispo, “AbeCedário Profissional e Técnico”, Editores Papelaria Fernandes, 4.ª ed, Lisboa, 1949.

...


23/11/2018

...


“Os sexólogos diziam que a boneca Barbie era o primeiro instrumento para a construção de uma identidade feminina em rapariguinhas de tenra idade e que o êxito da boneca comprovava que existe uma sexualidade infantil. A sexualidade infantil deu muito que falar no século XX quando se chegou à conclusão que as rapariguinhas de tenra idade gostariam era de ter um filho do papá e que esse filho era no fundo um sucedâneo do pénis porque as rapariguinhas também gostariam de ter um pénis e que a boneca era como um filho do papá e um pénis em simultâneo. Durante muito tempo as bonecas eram unicamente fabricadas como rapariguinhas mas depois também começaram a ser fabricados bonecos rapazinhos e as bonecas rapariguinhas tinham entre as pernas uma fenda e os bonecos rapazinhos um pirilau. E nos anos setenta também começaram a fabricar-se bonecas negras ou castanhas embora a maior parte dos casos quem as comprava fossem pais brancos que assim queriam dar a entender que não eram racistas. O racismo era uma teoria do século XIX que dizia que as raças humanas tinham as suas especificidades inalteráveis e se encontravam em diversos graus de desenvolvimento e que os mais desenvolvidos eram os brancos que tinham um sentido inato para a organização da sociedade e o pensamento abstracto e convívio popular e um racista era uma pessoa que temia que a miscigenação das raças iria pôr em causa as especificidades brancas e minar o potencial genético que permitia aos brancos marcharem na vanguarda da humanidade. As pessoas que não gostavam dos Judeus não eram racista mas anti-semitas porque bem vistas as coisas os Judeus não eram considerados inferiores como por exemplo os Indianos ou os Ciganos etc. A palavra anti-semita apareceu no final do século XIX e designava uma pessoa que não desejava que os Judeus dominassem o mundo e instigava ao seus concidadãos à resistẽncia. O racismo tornou-se um importante problema social após a Segunda Guerra Mundial porque nos países europeus ricos se estabeleceram grandes minorias étnicas que a sociedade tinha de absorver. Existiam dois modelos de absorção de minorias étnicas a integração e a assimilação e a integração era posta em prática por aqueles países que acreditavam que na sociedade civil podem coexistir diversos modelos culturais e que mais vale não misturar um com o outro e preservar as especificidades de cada um e a assimilação era promovida nos países que acreditavam no universalismo e julgavam existir um interesse superior da sociedade a que se encontram subordinadas as especificidades étnicas e culturais. Durante muito tempo o modelo da assimilação era mais bem-sucedido que o da integração porque nos países que o promoviam não havia revoltas raciais como em Inglaterra ou na América mas no final do século quando se começou a falar em globalismo e mundialismo o universalismo passou de moda e cada um queria ter a sua própria identidade e ter orgulho na sua raça não no sentido de raça mas de civilização e viver de acordo com as tradições e voltar às raízes etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 56-8, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

21/11/2018

...


Leiria, 21 de Novembro de 1939 Hoje em Coimbra encontrei à cabeceira da cama de um amigo, encaixilhado, o If do Kipling. Apesar do poema a meu entender ser uma espécie de grande pílula Pink para uso do Império Britânico, o facto de o ver no lugar onde costuma ficar o Cristo, enterneceu-me. Não era precisamente o povo grego arrastado pelo ritmo do Pean, mas era um homem a benzer-se de manhã com meia dúzia de estrofes. É que isto de versos vai de mal a pior. Qualquer dia, nós, os poetas, temos mesmo que pedir desculpa à vizinhança deste feio vício.
Deste vício que Camões pagou tão caro, e que dá frutos bichosos como as Coplas do Jorge Manrique a Ode à Alegria do Schiller.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 118, 1941, Coimbra.

18/11/2018

...


“A ideia de deportar os Judeus para Madagáscar tinha surgido pela primeira vez em 1905 no livro de um exegeta vienense que tinha estudado o Velho Testamento e zoologia e inventado uma especialidade chamada teozoologia. E tinha chegado à conclusão de que Deus não existia e que o mundo tinha sido criado por deuses que eram da mesma estirpe que os humanos mas que sabiam emitir sinais eléctricos e dominavam a telapatia e eram imortais e espirituais e que com o avançar do tempo tinham começado a cruzar-se com os seres humanos e os animais e se tinham tornado mortais. E dizia que quem estava mais próximo dos deuses e da primeira geração dos homens divinos eram os Arianos nos quais ainda se podiam detectar vestígios da força electrónica e dos neutrões telepáticos e propunha a deportação dos Judeus para Madagáscar e o estabelecimento na Alemanha de ZUCHTKLÖSTER de conventos de criação onde mulheres alemãs seriam fecundadas por machos arianos e assim haveria de se recriar pela selecção genética o Homem-deus que iria comunicar telepaticamente pela força do pensamento e das descargas eléctricas. Os nazis acabaram por concluir que a deportação para Madagáscar iria custar dinheiro que seria necessário para custear o esforço de guerra e em 1942 decidiram que a partir daí a solução final iria consistir no extermínio dos Judeus por todos os meios ao seu dispor.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 42-43, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

17/11/2018

...


Coimbra, 17 de Novembro de 1939 Nova ida a Conímbriga. Mas é escusado insistir. A arqueologia, levada ao caco, reduzida a uma pedra esfarelada, faz-me sentar na primeira sombra, de onde me ponho a imaginar no pó das ruínas a vida que nelas palpitou.
Foi o que hoje aconteceu. A olhar de longe aquela muralha que cortou a cidade ao meio, ocorreu-me que ela era, afinal, uma das tantas linhas Maginot que esta velha humanidade tem construído. Mais sgnificativo que as banheiras e os mosaicos, pareceu-me o medo que fez levantar aquela cerca de pedra.
E acabei longe dali, numa abstracção: que tudo o que é realmente grande não tem muros. Que, na Idade Média, em que tanta parede se fez, só o que saíu fora das ameias ficou eterno: os trovadores e os peregrinos. A poesia e a fé.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 115, 1941, Coimbra.

12/11/2018

...


“O primeiro genocídio do século XX ocorreu na Turquia em 1915. O Governo começou por prender e fuzilar seiscentas famílias arménias que viviam em Constantinopla e depois desarmou e fuzilou os soldados de origem arménia que prestavam serviço no exército turco. E todos os arménios receberam ordens para abandonar as cidades e aldeias num prazo de vinte e quatro ou quarenta e oito horas e o exército turco ocupou posições junto das portas da cidade e quando as pessoas saíram fuzilou todos os homens e mandou as mulheres e crianças para o degredo em regiões desérticas na Mesopotâmia. E as mulheres e crianças tiveram de percorrer de trezentos a quinhentos quilómetros a pé sem comida e a maioria pereceu. E os Franceses e os Ingleses e os Russos apresentarem uma nota de protesto em que pela primeira vez na história se escrevia tratar-se de um crime contra a humanidade. E um oficial alemão que nessa altura estava com o exército turco como instrutor levou para a Alemanha sessenta e seis fotografias do genocídio arménio e enviou-as ao imperador alemão e escreveu-lhe que a Alemanha haveria de escolher melhor os seus aliados porque a vergonha da Turquia não deixava de manchar também a Alemanha. E entre 1928 e 1949 os Russos deportaram seis milhões de cidadãos de nacionalidade suspeita arménios e lituanos e ucranianos e polacos e alemães e moldavos e gregos e calmucos e curdos e inguches etc. e 30 por cento deles pereceram pelo caminho e 20 por cento morreram no ano seguinte. Os comunistas diziam mais tarde que não se tinha tratado de deportações mas de optimização do espaço geográfico e do primeiro passo rumo a uma nova sociedade supranacional onde já não teria importância quem vivia onde mas quão afincadamente trabalhava para o bem de todos. E em 1934 inventaram uma reserva para os Judeus e convidaram todos os judeus soviéticos a mudarem-se para lá. A reserva encontrava-se na fronteira com a China na região de Khabarovka e no Inverno a temperatura descia até aos -40º C e os comunistas diziam que não era uma reserva mas uma região autónoma onde os Judeus podiam estar entre os seus e gerir a sua própria vida. E em 1944 deportaram para o Cazaquistão e para o Quirguistão 477 mil chechenos em 12525 vagões para o transporte de gado e 190 mil chechenos morreram pelo caminho de fome e gelo e em 1999 inventaram para os chechenos suspeitos campos especiais denominados campos de desterro temporário. E em 1948 acusaram jornalistas e médicos e engenheiros de origem judia de cosmopolitismo e de uma mentalidade burguesa e mandaram assassinar a maioria deles e mandaram outros para campos de concentração. O número de vítimas do genocídio arménio foi estimado em um milhão a milhão e meio mas os Turcos diziam que o genocídio arménio não tinha sido um verdadeiro genocídio e a maioria dos Judeus assim pensavam também.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 45-47, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

11/11/2018

...


Coimbra, 11 de Novembro de 1942 – (…) Dizia-me ontem um amigo francês esta tristeza: – de Camilo em diante, parece que os escritores portugueses têm as raízes fora de Portugal! E é verdade. Por desgraça, somos todos, em mísero, Anatoles, Prousts, Morgans, Valérys, ou outros igualmente grandes e igualmente alheios. Daqui, deste avaro torrão, e com a consciência profunda dele, é que ninguém quer ser. E aí temos o resultado: não, existir europeu que se interesse sèriamente pela nossa literatura contemporânea. – Para quê? – perguntava-me irònicamente o mesmo sujeito. E dava-me a resposta: – Bem vê, temos lá os originais…
Mas ninguém é capaz de fazer compreender estas singelas coisas a uns pobres de Cristo que para aí fazem prosa e verso. Enfrenizam-se na asneira, e debilitam ainda mais as virtudes particulares que, pelo que diz respeito pròpriamente a Portugal, embora brandas, são as que temos para nos salvar ou perder.”

Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pág. 77, Coimbra Editora, 1960.

10/11/2018

...


“E em 1916 foi executado perto de Juvincourt um soldado que não trazia as calças regulamentares e que não quis vestir as calças de um camarada morto porque estavam sujas e cheias de sangue.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 39, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

...


08/11/2018

...


Vila Nova, 8 de Novembro de 1936 Caso, não caso, torno a casar, e acabo por concluir que a verdadeira paisagem da minha vida é uma grande serra nua.
Uma árvore a dar sombra lá do alto? Eu sei lá!
Ao sol, tenho a certeza que faço versos; à sombra, se calhar, adormeço.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 33, 1941, Coimbra.

06/11/2018

...


“A grande desilusão do século XX foi que a escolaridade obrigatória e o progresso técnico e a erudição e a cultura não levam o Homem a ser melhor e mais humano como tanto se acreditou no século XIX e que hordas de assassinos e torturadoress e chacinadores foram amantes das artes e assistiram a espectáculos de ópera e visitaram exposições e escreveram poemas e estudaram humanidades e medicina etc.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pág. 30, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.