“Coimbra,
1 de Janeiro de 1943 – Outro ano. Toda a gente excitada, e, de
conhecido para conhecido, esta senha:
–
Boas entradas!
–
Igualmente! – responde o contemplado.
E
lá segue cada qual o seu caminho, com o supersticioso pé direito à
frente, não vá o demo tecê-las.
A
estafada e monocórdica ária de sempre, que apenas moi os ouvidos de
que é por condenação um rói-migalhas, e passa o tempo a reparar
nas inocências do homem, e a registá-las.
Ano
Novo! Os torcegões que a realidade sofre nas nossas mãos, a ver se
conseguimos disfarçar-lhe a crueza! A imaginação colectiva aos
sobressaltos, na grata ilusão (na triste ilusão) de que a coisa vai
começar agora, – agora que o ano é novo, a idade é nova. No
fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém
é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um
roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua
maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode
deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o
caminho é bonito e nos apetece. Recomeçar uma, duas, cinquenta
vezes, e chegar à meta com este lamento hipócrita na boca: – Ah,
se eu voltasse aos vinte anos e soubesse o que hoje sei!
Que
me lembre, apenas Raúl Brandão teve a grandeza e a lealdade de
escrever que repetiria o calvário da vida sem lhe alterar o
itinerário. Isto sim, isto é de quem entendeu a fundo que a
existência não deve ter soluções de continuidade, nem ser
prevista. Deus me livre de saber que por certo beijo que roubei em
rapaz a uma cachopa da minha terra receberia a bofetada que recebi! A
coisa foi maravilhosa por ter sido um jogo, um atrevimento, um risco,
e motivar aquela réplica inesperada e ardente!
–
«Se eu soubesse…»
Mas
como felizmente ninguém pode voltar atrás, nem saber antes de
saber, vai de recomeçar vida nova cada novo ano. Cada novo ano que
passa a velho logo que se fazem 365 tolices…”
Miguel
Torga, “Diário
II” 3ª ed. Revista, pp.102-104, Coimbra Editora, 1960.
Sem comentários:
Enviar um comentário