31/12/2018

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Coimbra, 1 de Janeiro de 1943 – Outro ano. Toda a gente excitada, e, de conhecido para conhecido, esta senha:
– Boas entradas!
– Igualmente! – responde o contemplado.
E lá segue cada qual o seu caminho, com o supersticioso pé direito à frente, não vá o demo tecê-las.
A estafada e monocórdica ária de sempre, que apenas moi os ouvidos de que é por condenação um rói-migalhas, e passa o tempo a reparar nas inocências do homem, e a registá-las.
Ano Novo! Os torcegões que a realidade sofre nas nossas mãos, a ver se conseguimos disfarçar-lhe a crueza! A imaginação colectiva aos sobressaltos, na grata ilusão (na triste ilusão) de que a coisa vai começar agora, – agora que o ano é novo, a idade é nova. No fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o caminho é bonito e nos apetece. Recomeçar uma, duas, cinquenta vezes, e chegar à meta com este lamento hipócrita na boca: – Ah, se eu voltasse aos vinte anos e soubesse o que hoje sei!
Que me lembre, apenas Raúl Brandão teve a grandeza e a lealdade de escrever que repetiria o calvário da vida sem lhe alterar o itinerário. Isto sim, isto é de quem entendeu a fundo que a existência não deve ter soluções de continuidade, nem ser prevista. Deus me livre de saber que por certo beijo que roubei em rapaz a uma cachopa da minha terra receberia a bofetada que recebi! A coisa foi maravilhosa por ter sido um jogo, um atrevimento, um risco, e motivar aquela réplica inesperada e ardente!
– «Se eu soubesse…»
Mas como felizmente ninguém pode voltar atrás, nem saber antes de saber, vai de recomeçar vida nova cada novo ano. Cada novo ano que passa a velho logo que se fazem 365 tolices…”


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp.102-104, Coimbra Editora, 1960.

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