05/04/2019
26/03/2019
...
“E nos países ocupados pelos Alemães organizaram-se após a guerra grandes operações de caça aos colaboracionistas e traidores da pátria e outros que tais e às mulheres que tinham andado a dormir com alemães cortavam o cabelo e um prisioneiro de um campo de concentração voltou para casa de cabeça rapada e foi a um bailarico com uma amiga da sua irmã a que os cidadãos locais tinham cortado o cabelo porque tinha andado enrolada com os ocupantes alemães e dançaram junto e encostaram as cabeças uma à outra e as outras pessoas acharam a sua atitude pouco apropriada e quase repugnante.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 137-8 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
21/03/2019
...
“O tiroliroliro
A
Mãe voltou à carga com o tiroliroliro. Quando se trata do complexo
de inferioridade lusitano, a Senhora não perdoa. «O menino trauteie
lá a cantiguinha tonta», pediu, sorridente. «Qual cantiguinha
tonta?» Fingi-me de parvo para fugir com o rabo à seringa. Os
Andresen-Hastings tinham trazido de Cascais dois casais portugueses
que eu não conhecia, estávamos todos a louvar a beleza nautural do
Gerês, o fim de tarde sereno não convidava a polémica. A Mãe
insistiu.
«A
cantiguinha tonta. Está farto de saber. Lá em cima… Como é
que é o resto?»
«Está
o tiroliroliro, Freddy», acudiu Andresen-Hastings que não entendeu
a manobra de diversão. «Desta vez lembrei-me melhor de uma coisa do
que tu», acrescentou divertido. Tive de fazer a vontade à Senhora e
cantarolei, no meu melhor português
Lá
em cima está o tiroliroliro
Cá
em baixo está o tiroliroló
Juntaram-se
os dois à esquina…
«Chega»,
interrompeu a Mãe. «Vocês não acham extraordinário?», perguntou
virada para as visitas.
Ficaram
todas a olhar para ela, sem perceber. Eu sabia onde ela queria
chegar, mas achei preferível não interferir. Seja o que Deus
quiser,1
pensei com os meus botões.
«Cante
lá outra vez. Só os dois primeiros versos», comandou a Senhora.
Obedeci.
«Então?»,
perguntou ela. Senti nos olhares embaraçados perpassar a suspeita de
que a Mãe estivesse gagá. «Já imaginaram como seria esta cantiga
se tivesse sido inventada por um inglês?», perguntou ela. «Eu
digo-vos», continuou sem esperar resposta. Seria assim:
Up
Here is the teeroleeroleero
Down
there is the teeroleerolaw
«E
em espanhol?», acrescentou para esfregar vinagre nas feridas.
«Também vos digo:
Aqui
arriba está el tiroliroliro
Aliá
abajo está el tiroliroló
Continuam
a não achar nada de esquisito? Então eu explico-vos. O inglês e o
espanhol olham o mundo de cima para baixo; o português olha o mundo
de baixo para cima. Não é realmente extraordinário?»
Eu
e os Andresen-Hastings (ela é francesa) ficámos embaraçadíssimos.
Os quatro portugueses não. Riram-se muito, cumprimentaram a Senhora
pela sua perspicácia e começaram a enumerar coisas de marca
estrangeira – desde aparelhos electrodomésticos a bolachas
digestivas – que tinham deixado de comprar assim que elas haviam
passado a ser feitas cá, sob licença. «A qualidade piora logo
imenso», disse uma. «A qualidade e a produtividade são os nossos
calcanhares de Aquiles», sentenciou outro, rolando entre os dedos o
copo de Black Label.
Confesso
que fiquei espantado por se fabricar tanta coisa em Portugal. A fiel
Margarida tinha-me convencido de agora vinha quase tudo de Espanha.”
A.
B. Kotter, “Bilhete de Colares”, Visão, 22 Setembro 1994, p.
97.
1«Close
your eyes and think of England» no original (N. do T.).
18/03/2019
17/03/2019
12/03/2019
...
“Alguns filósofos diziam que a ordem do mundo corresponde aos mecanismos do discurso que tem os seus símbolos mutáveis mas simultaneamente dados e que a bem dizer o ordenamento dos símbolos não dá grande sentido e que tudo não passa de um jogo e de um acaso e de anarquia e processo e desconstrução e intertextualidade etc. mas que o símbolo por si só é no fundo um portador de sentido embora não saibamos bem qual. Mas outros filósofos diziam ainda que os símbolos dos quais o discurso e o mundo são construídos carecem de sentido e que com a ausência de significado desaparece o sujeito e a própria realidade e que a história não passa de um movimento ininterrupto e informe que nada exprime e que tudo é ficção e simulação. E que a decadência do humanismo tinha entrado num beco sem saída precisamente porque tinha conseguido o que tivera a conseguir e tinha imposto os valores que lhes eram próprios a liberdade e o individualismo e o pluralismo e a transparência etc. E que os humanistas estavam a colher os frutos da sua própria sementeira um mundo individualista e interactivo e positivo e translúcido e operacional que se extingue com a sua própria simulação e cuja resolução final é a troca da realidade pela hiper-realidade. E alguns matemáticos diziam que a realidade era uma ilusão e que na realidade tudo não passava de uma construção matemática no cérebro humano que interpreta as frequências vindas de uma outra dimensão qualquer e que esta transcende o espaço e o tempo e que o cérebro é um holograma que reflecte o Universo que por seu lado também é um holograma. E em 1993 uma velha senhora que outrora tinha sido nazi convicta legou o seu cérebro a um laboratório em Copenhaga para que as imagens nele armazenadas fossem projectadas aos seus netos e netas porque nunca tinha sido capaz de lhes relatar a sua vida.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 130-1 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
01/03/2019
...
Coimbra,
1 de Março de 1933 –
Continuam
as matanças de gatos, à mocada, cá na república. Uma selvajaria.
Só quem assiste a isto pode avaliar o que é um homem primitivo. Não
há Universidade que nos tire da idade da pedra lascada
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 10,
1941, Coimbra.
28/02/2019
...
“O
doido mais perigoso que encontrei era um tipo que se fazia passar
pelo volume XVI do «Dicionário Otto». Implorava aos amigos que o
abrissem e procurassem o que dizia o Dicionário na palavra «operária
de cartonagens»; se não lhe fizessem esse favor ficava perdido. Só
a camisa de forças era capaz de lhe dar alguma alegria. Nessa altura
sentia-se feliz e dizia que já não era cedo para entrar no prelo, e
exigia uma encadernação moderna.”
Jaroslav
Hasek, “O Valente
Soldado Chvéĭk”,
pág. 42,
Portugália Editora, Lisboa, s/d. Trad. Alexandre Cabral. Capa de
Paulo Guilherme.
26/02/2019
18/02/2019
...
“O
CORO
Ora
bem. A mola está tensa. Tudo se desenrolará por si. É esta,
afinal, a comodidade da tragédia: damos um pequeno toque para que as
coisas comecem, um nada, apenas um olhar para uma rapariga que passa
na rua e ergue os braços; um desejo de dignidade e de glória, numa
manhã ao acordar como se se tratasse de algo que se come; uma
pergunta a mais feita certa noite… É o suficiente. Depois, basta
deixar correr. Estamos tranquilos. Gira tudo só, com minúcia e
precisão. A morte, a traição, o desespero estão lá à espera, e
também os relâmpagos, as tempestades, os silêncios. Todos os
silêncios: o silêncio que rodeia o carrasco, quando este ergue o
braço para o fim; o silêncio que rodeia dois amantes quando, pela
primeira vez, surgem na sua nudez, um em frente do outro, sem ousarem
dizer uma palavra; o silêncio… quando os gritos da multidão
ressoam em redor do vencedor – dir-se-ia um filme ao qual
suprimiram o som e que nos mostra um conjunto de bocas abertas, das
quais nada sai, como um clamor que não passa de simples imagem; e o
vencedor, agora vencido, sòzinho no meio do seu silêncio… é
decente, a tragédia. É repousante, acertada… No drama, com todos
os seus traidores, todas as suas ruíns pessoas, toda essa inocência
perseguida, esses vingadores, esses terras-novas, esses fornecedores
de esperanças, com tudo isso, o drama torna-se um perigo de morte,
como um acidente. Poderíamos salvar-nos; o bom rapaz talvez pudesse
chegar a tempo com os polícias. Na tragédia estamos tranquilos.
Estamos, desde o início, em família! Numa palavra: estão todos
inocentes! Não importa que haja um que mata e outro que morre. É
apenas uma questão de distribuição. E, além disso, a tragédia é,
sobretudo, repousante porque sabemos que não há lugar para a
esperança, essa horrível esperança; quando se é apanhado, quando
se é apanhado como um rato, com o peso do céu sobre as nossas
costas, e só nos resta gritar – não gemer ou queixar-se –
gritar a plenos pulmões o que se tem para dizer, o que nunca se
disse e que, talvez, há momentos ainda não sabíamos que iríamos
dizer. E para nada: para o dizermos a nós próprios. No drama
debatemo-nos porque esperamos sair dele. É ignóbil, é utilitário.
Na tragédia, tudo é gratuito. É para reis. Enfim, não há nada a
tentar!”
Jean
Anouilh, “Antígona”, pp. 67-8, Editorial Presença, Lisboa,
1965. Trad. Manuel Breda Simões.
09/02/2019
...
*
“Bissau,
11 de Junho de 1967. Mandaram-me defender a lama ou morrer.
Enganei-me. Enganaram-me. É tudo uma extensão para recobrir
problemas de herança. E ela lá está, por entre os ramos, a viúva.
Com dentes muito brancos, sob o luar tropical. Para apregoar a
vitória de Jeová. Estou bêbedo, vou morrer e bato com as mãos na
testa…
Como
é que eu não tinha percebido a engrenagem?… Eu, que aprendi a ler
no almanaque a data dos eclipses, que aprendi outras coisas da
ciência, que me apercebo deste imenso bando de esqueletos sem
violino, tuberculosos… como é que não percebi logo que os textos
sagrados me preparavam a morte? Que todo o cadáver retalhado me
incitava ao heroísmo? Que toda a clausura me avisava da espera
resignada? que toda a doença me aclimatava para o dever?
E
ela ri, no seio de Jeová. É o nosso último encontro. Tenho de
escolher: a loucura ou o fuzilamento.
Enlouqueço.”
José
Martins Garcia, “Alecrim, Alecrim aos Molhos...”, pág. 128,
Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite, Lisboa, 1974. Capa:
Henrique Manuel.
08/02/2019
...
“Poesia
e sobrevivência
A
poesia portuguesa afirmou-se principalmente desde meados deste século
através das revistas e, depois, pelas colecções com que algumas
editoras foram desenvolvendo os veios dessa lírica. Se as revistas
foram determinantes ao longo dos anos 50, caracterizando-se também
um determinado ambiente social e político de cafés, de convívio e
de trincheira, a partir de 60 e depois de 70 um certo desafogo
económico e cultural reflectidos na vida editorial fez emergir as
colecções de poesia. Livro após livro, cada, uma ganhou a sua
personalidade, compondo no conjunto uma apreciável biblioteca de
grande responsabilidade cultural.
A
branca colecção da Ática, a verde e creme da Guimarães ou a
rugosa da Portugália sobrevivem ainda hoje nas casas dos nossos
amigos. Umas mais resistente, como a da Centelha, mais cosmopolitas,
como os Cadernos da Dom Quixote, ou persistentes, como a da Moraes.
Na verdade, cada editora procurava prestígio e história,
principalmente na edição de poesia. No porto, a Inova, a Limiar e
depois a Afrontamento e a Gota d’Água deram-nos excelentes livros,
enquanto editoras tão diferentes como a Arcádia, Regra do Jogo,
Presença ou Assírio & Alvim mantinham com orgulho as suas
colecções, em certos casos já com dezenas de títulos.
Desconhecem-se quanto tirava cada edição mas recordam-se as muitas
reedições dos Cadernos Dom Quixote, e sei que a Assírio
habitualmente ia aos 3000 exemplares de cada título. Se é verdade
que andam por aí, já cansados, muito desses livros, a maioria com o
tempo esgotou-se e hoje valem dinheiro nos alfarrabistas.
Mais
importante: de tantas edições de tanta colecção de tanto nome,
sem dúvida fátuos ou turísticos, este empenhamento editorial tomou
visível a assunção de excelentes poetas que hoje pairam na nossa
vida. Nos anos 80, com a seca, a doença do sobreiro e outras
maleitas, veio a morte das editoras de poesia. A Portugália já lá
ia; cede depois a Ática e em 1985 o Círculo de Poesia da Moraes, e
o projecto da Inova com todas as suas doiradas ramificações, e a
Regra do Jogo e os Cadernos de Poesia e Pedra de Canto, e a Licorne e
Poesia e Verdade e depois a Rolim e a Fenda, a Centelha, a Plural, a
&etc. Hoje a edição de poesia em Portugal recolhe o cuidado de
três ou quatro editoras. Há bons poetas com dificuldades de
publicar. Se é verdade que nomes como Herberto, Eugénio, Cesariny,
Sophia, tiram 3000 ou mais exemplares, o sucesso aplica-se quase
exclusivamente aos consagrados. As edições andam pelos 1000 ou 1200
exemplares, para uma venda imediata inferior a 500.
Ocuparíamos
agora páginas a descrever razões, tantas são, mas podemos mesmo
assim apontar o dedo a um país que de estrada em estrada corre
alucinado para uma ideia de progresso há muito posta em saldo pelos
países ditos avançados. E indicaríamos depois um ensino falacioso
e cada vez mais inútil, uma política cultural que, no mínimo, nos
deixa perplexos. Um arrogante desprezo pelo livro. Uma indisfarçável
crise do espírito, e crise da palavra.
A
poesia é, neste momento, uma ave acossada por patos bravos muito bem
colocados num país que há décadas saía das penumbras para logo
ficar entontecido com o excesso de luz chegada das «centrais
nucleares» europeias.
O
quadro só não é mais negro e completamente ocupado pelo desenho de
uma multidão imobilizada, de cócoras a ver concursos televisivos,
telenovelas e thrillers porque, apesar de terem desaparecidos
os suplementos literários dos jornais que em muitos aspectos haviam
substituído as revistas grupais de 50, do empobrecimento do debate,
da vivência cultural, autores tão diferentes como Novalis, Whitman,
São João da Cruz, Baudelaire e Hölderlin tiram hoje 3000
exemplares e rivalizam nos tops com a mais espampanante das
ficções. Poesia Toda de Herberto Helder pode orgulhosamente
atingir os 5000. Antologias como a de Eugénio Andrade ou de Al Berto
vão às dezenas de milhar. Alguns livreiros que antes se recusavam
simplesmente a receber poesia (e eu conheço uma boa dúzia de casos
destes) hoje abriram-lhes as portas, timidamente dão-lhe um canto da
montra e até já a bancada das novidades.
Claro
que a poesia, já aqui se disse, sobreviverá sempre às conjunturas
e ao abrigo que a cada momento se lhe propõe, mas, que diabo!, num
tempo tão apressado, com tantos «itinerários principais» para
cada um ir e infelizmente não vir à sua vida, porque é que a
poesia em Portugal não pode dispor de um simples carreiro, para
chegar, sem tropeções ou portagens, ao coração do seu leitor?”
Manuel
Hermínio Monteiro.
In
“Ler – Livros & Leitores”, n.º 22, Primavera de 1993.
06/02/2019
...
Coimbra,
6 de Fevereiro de 1932 –
Passo por esta Universidade
como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em
mim.
Miguel
Torga,
“Diário I”,
pág. 10,
1941, Coimbra.
05/02/2019
...
“Coimbra,
5 de Fevereiro de 1943 – Foram
quatro gritos de abrir o mundo, mas a enfermeira disse que não tinha
sido nada. Apenas um homenzinho que acordara do clorofórmio e dera
pela falta de uma perna.”
Miguel
Torga, “Diário II”, pág. 122,
Coimbra.
01/02/2019
...
“Lembro-me, finalmente, da lebre de Joseph Beüys que me recordou
aquela outra que parece ter fugido da Bíblia, percorrendo milénios,
até entrar novamente nas Iluminações de Rimbaud: «Mal se
aquietou a ideia do Dilúvio, / uma lebre parou entre os sanfenos e
as ondulantes campânulas / e fez a sua prece ao arco-íris através
da teia de aranha. / Oh! As pedras preciosas que se escondiam – as
flores que já olhavam».”
Manuel
Hermínio Monteiro.
In
“Ler – Livros & Leitores”, n.º 27, Verão de 1999.
LES
ILLUMINATIONS
APRÈS
LE DÉLUGE
Aussitôt
que l’idée du Déluge se fut rassise
Un
lièvre s’arrêta dans les sainfoins et les clochettes
mouvantes,
et dit sa prière à l’arc-en-ciel, à travers
la
toile de l’araignée.
Oh!
les pierres précieuses qui se cachaient, – les
fleurs
qui regardaient déjà.
Dans
la grande rue sale, les étals se dressèrent, et
l’on
tira les barques vers la mer étagée là-haut com'me
sur
les gravures.
Le
sang coula, chez Barbe-Bleue, aux abattoirs
dans
les cirques ou le sceau de Dieu blêmit les
fenêtres.
Le sang et le lait coulèrent.
1
29/01/2019
28/01/2019
...
“(…) e em 1945 os Americanos inventaram a bomba nuclear e largaram-na sobre uma cidade chamada Hiroxima. O avião chamava-se ENOLA GAY e o piloto explicou mais tarde aos jornalistas que lhe tinha dado esse nome em honra da avó irlandesa porque ela tinha um nome tão engraçado. A explosão varreu a maior parte das casas num raio de três quilómetros e no céu criou-se uma nuvem de fumo que ao longe teve o aspecto de um cogumelo. Para os feridos foi criado na escola local um centro de primeiro socorros e os alunos que tinham sobrevivido à explosão andaram com pauzinhos a retirar vermes das chagas dos pacientes e depois dos pacientes terem morrido levavam-nos em carrinhos de mão até ao crematório. E mais gente foi morrendo nos meses subsequentes de doenças chamadas de enfermidades nucleares leucemia astenia etc. As pessoas que tinham sobrevivido à explosão e também às doenças nucleares metiam medo à população restante porque tinham o aspecto de leprosas e se comportavam como loucas. Muita gente pensou mais tarde que tinha sido uma crueldade escusada da parte dos Americanos terem lançado a bomba nuclear mesmo no fim da guerra mas os estrategas militares diziam que se não a lançassem os Americanos outro qualquer o teria feito porque pelo menos uma vez ela tinha de ser experimentada em condições reais para que no mundo pudesse estabelecer-se o equilíbrio do terror que garantiu que não houvesse uma terceira guerra mundial. E em 1944 os americanos inventaram um boneco em tamanho real chamado RUPERT. O Rupert estava vestido como um pára-quedista e estava recheado de granadas e explosivos e os Americanos lançavam-no de aviões atrás das linhas inimigas e quando os Alemães ou membros da resistência viam o Rupert a descer corriam para junto dele e quando o Rupert embatia no solo explodia e matava todos os que estivessem à sua volta. E em 1918 os Alemães inventaram um canhão que se chamava GRANDE BERTA e tinha um alcance de 128 quilómetros e em 1944 inventaram um míssil teleguiado chamado VERGELTUNGSWAFFE que alcançava uma velocidade de 5800 km/h e devia decidir a vitória final da Alemanha. E em 1947 os Americanos inventaram o avião supersónico e em 1957 os Russos inventaram o satélite artificial e em 1961 mandaram o primeiro homem para o espaço e em 1969 os Americanos mandaram três astronautas para a Lua e quando o primeiro astronauta desceu o escadote para pisar a superfície lunar proferiu a frase histórica ISTO É UM PEQUENO PASSO PARA O HOMEM MAS UM SALTO GIGANTESCO PARA A HUMANIDADE. O engenheiro principal do programa espacial foi um antigo coronel das unidades especiais do exército alemão SCHUTZSTAFFELN que em 1944 tinha inventado o míssil teleguiado chamado VERGELTUNGSWAFFE. Mais tarde houve disputas em torno de saber se o astronauta tinha inventado a frase histórica ele próprio ou se não lha tinha inventado de antemão algum especialista de relações públicas. O míssil teleguiado VERGELTUNGSWAFFE foi fabricado no campo de concentração em Dora e 528 milhões de telespectadores seguiram a alunagem em directo e os políticos e peritos em relações públicas diziam tratar-se de um passo importante para uma comunicação global e para a concórdia universal.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 132-4 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
...
“O
prefaciador de Rimbaud é embaixador em Washington, vemos Baudelaire
disfarçado de tomista, Hugo é deposto por Daudet num sucateiro, um
tal Chassé chama Jarry um figo, Darwin condenado nos Estados Unidos,
Freud arrastado na lama em França, Paul Valéry alça-se a membro da
Academia Francesa, enfim, mete-se-nos pelos olhos dentro que a
prosperidade ateia os negócios.”
Louis
Aragon, “Tratado do Estilo”, pp. 50-1, Antígona Editores
Refráctarios, Lisboa, 1995. Trad: Júlio Henriques.
26/01/2019
...
“Os prisioneiros de guerra que regressaram à União Soviética foram 2,27 milhões e passaram nos campos de concentração uma média de dez anos isto é se não morreram de exaustão nem foram vencidos por doenças e epidemias. No entanto a causa de morte mais frequente nos campos de concentração foram as frieiras e as gangrenas nos pés porque as pessoas tinham medo de que alguém lhes roubasse os sapatos durante a noite e então dormiam com eles calçados.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 127-8 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
23/01/2019
...
Ora porra!
Ora porra!
Então a imprensa portuguesa é
que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.
Então a imprensa portuguesa é
que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.
s.d.
Álvaro de Campos - Livro de Versos
. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
22/01/2019
...
“Coimbra,
22 de Janeiro de 1943 – Há trinta e cinco anos que vivo como
um boi resignado à canga, mas ninguém se admire se um dia não
puder mais e mandar para qualquer jornalzinho da província (para não
envergonhar tanto os amigos), este anúncio:
POETA
Aceita
herança acima de 200 contos
Livre
de quaisquer encargos."
20/01/2019
...
“O meu melhor professor de Literatura, António Bragança, no
desaparecido Colégio Almeida Garrett, do Porto, costumava contar-nos
uma esclarecedora história. Um célebre escritor português, penso
que Eça, estava em Paris no pino do Inverno. Lia atentamente um
romance cuja trama se desenrolava nos trópicos e levando tanta
caloraça no enredo que chamou o garçon pedindo-lhe um
refresco gelado. Ante o espanto do empregado a ver a neve cair no
exterior, a alma do livro apoderava-se do enlevado leitor que
desapertava a camisa transpirando. Enquanto o relógio dava as horas
habituais da parede e os cafés e croissants cumpriam o
ritmo de saída de todos os dias e meses, por uma pequena friesta de
umas dezenas ou centenas d2e páginas impressas entrava o fulgurante
clima africano no café de Paris no centro do Inverno.”
Manuel
Hermínio Monteiro.
In
“Ler – Livros & Leitores”, n.º 25, Inverno de 1994.
19/01/2019
...
“É
favor não sujar o offset!
Grande
progresso se anunciou para o nosso «Diário de Lisboa» pela
pena do seu Director-Geral Lopes do Souto! Tão grande que o
cronista, amodorrado desde há meses, sentiu uma irrecusável
necessidade de romper o silêncio, fita de máquina e papel para
festejar, na sempre boa companhia que é a deste Jornal, a novidade
grande: o offset!
Sim!
Vocês já viram bem o que vai ser o offset? Do ponto de vista de
quem lê ou, pelo menos, manuseia o jornal, o offset representa, pela
primeira vez em Portugal, a possibilidade de não sujar as mãos com
notícias frescas. Da fresca data à fresca tinta como as técnicas
podem mudar!
Homens
de mãos e punhos brancos, o offset não denunciará em vós o hábito
de estar a par do que ocorre no mundo e seus quintais. Doravante
(melhor: 6 de Outubro chegado) podeis entregar-vos, sem traiçoeira
mácula, a esse vício que até agora haveis mantido quase secreto; o
da informação. Vietname não sujará a mão! Golos do Eusébio não
sujarão a mão! Palavras cruzadas não sujarão a mão (o offset não
se responsabiliza pelo eventual derrame do conteúdo da
esferográfica…)! Discursâncias (que sacrifício para um jornal
que é rápido…) não sujarão a mão!
O
OFFSET CONSERVA MAIS BRANCO!
Homens
de mãos (honestamente) sujas, não mais podereis mostrar o sujo das
vossas mãos como um dramático sinal da luta pela informação!
Acabou-se o fadinho, queridos e esforçados autodidactas…
Que
bom, que lindo um jornal limpo!
Assim,
para rematar esta croniqueta, que ainda suja, propomos que o Diário
de Lisboa offseteditado passe a trazer, em cada número, a evidência
da sua preocupação de limpeza:
É
FAVOR NÃO SUJAR O OFFSET!”
Alexandre
O’Neill. In
“Diário de Lisboa”, 9 de Setembro de 1971.
18/01/2019
14/01/2019
...
Paris,
14 de Janeiro de 1938
– Ponho-me
a pensar nos cinco milhões de homens que formigam nestas ruas. A
pensar que, embora todas estas avenida, estas praças, estes
monumentos sejam criações suas, o homem perdeu aqui, mais do que
noutra parte, as rédeas da sua personalidade, consentindo que
a criatura domine o seu criador. Não posso dizer ao certo por quê,
mas a impressãao que se tira desta enorme multidão
é de que não se trata de gente mas duma grande levada que
as próprias ruas canalizam. Tem-se a impressão que a cidade actuou
nela como um forte raio X,
reduzindo-a a uma transparência humana que toca pelo irreal.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 61, 1941, Coimbra.
10/01/2019
...
“Actividade
Esquisita
Não
conheço muitos editores, quero dizer, tenho alguns amigos que são
editores. Não sei, em boa verdade, como funcionará a maioria das
outras casas editoras. Falo por mim. Com mais de uma década de
actividade, ganha-se uma particular visão das palavras escritas que
nos rodeiam. Do que aspira ao livro. O livro como ponto de chegada e,
depois, o texto multiplicado como os pães do milagre. A metáfora
podia ser a da ampulheta em que o produto sólido se pulveriza para
descer à base. E a ampulheta é o editor, virando e revirando
conforme cada edição. Mas, se o mecanismo é sempre parecido, a
substância jamais se repete.
Primeiro
capítulo. É verdade que todo o editor aspira a publicar os livros
dos autores da sua preferência. Quer tê-los consigo, constituir a
sua família. Mas nem sempre é assim. Muitas vezes são os livros
que vêm ter com o editor. Alguns procuram-no há séculos, à espera
da janela que dá para a rua. Fernando Rojas, Ramon Llull, Walt
Whitman ou Novalis quiseram e tiveram em mim essa oportunidade. Com
mais ou menos coerência, o editor vai organizando o seu catálogo.
No final, ele pode ser visto como um grande cadáver esquisito
surrealista. Com inesperadas intromissões, acrescentos, fugas para
outras ou novas colecções, os acrescentamentos e as obliterações
dos que desaparecem por «esgotamento».
Mas,
no quotidiano, o editor é permanentemente bombardeado por um número
impressionante de aspirantes a novos escritores. Poucos imaginarão
quanto se escreve nos silêncios deste Portugal. Há uma imensidão
de pessoas a mexer nas letras e nos sentimentos. A arquitectar poemas
e histórias. Depois, enviam as suas obras para as editoras. Ou
aparecem pessoalmente.
Guardo
algumas histórias curiosas destes encontros. Desde o senhor idoso
que traz os seus originais num saco de pó de talco, que o nervosismo
e o sopro transformam num indescritível nevoeiro que cresce por todo
o escritório, até damas envoltas em perfumes tão caros quanto
insuportáveis. Uma outra senhora que envia vinte contos «para
compensar o trabalho de ler o seu original». Outro que está no
hospital, quase a entrar para a sala de operações, e quer saber com
urgência se os seus textos têm, ou não qualidade. Há aquele que
chega a trazer 4000 páginas manuscritas para publicação, e o outro
que tem a certeza de que haverá, pelo menos, 100 000 pessoas
determinadas e ávidas do seu texto, que seguramente «vai vender…
que nem pãezinhos». Depois, há os que oferecem «todo o dinheiro
que seja necessário» para ver o seu livro lá fora, e também os
mais prepotentes, que julgam fazer-nos o maior favor do mundo
possibilitando-nos a edição do seu livro que os acompanha há
décadas e, quanto a eles, «uma verdadeira obra-prima».
No
segundo capítulo aparecem escritores que até já publicaram noutros
lados e acumulam uma desconfiança generalizada de que os editores
são oportunistas que vivem à custa dos autores. Que falsificam as
tiragens. Que é impossível que o seu livro não tenha vendido
dezenas de milhar de exemplares, pois pelo menos, todos os seus
amigos o compraram. Desconfiam da eficácia da promoção que lhes é
feita. Convencem-se de que é o próprio editor a boicotá-los,
porque o seu livro não se vê nas livrarias. O pior é que nem
disfarçam o ressentimento íntimo de que o editor os explora;
«fartando-se de ganhar dinheiro à custa do seu talento».
Neste
exemplo caberia Miguel Torga que, até ao fim da vida, persistiu em
ser senhor pleno da sua obra, evitando dar lucro editorial a
terceiros. Disse-me mais do que uma vez: «Os editores, não me
largam. Eu bem sei o que eles querem. Querem ganhar dinheiro à minha
custa».
Finalmente,
«os mistérios gloriosos». O maior prazer do editor. Senti-o mais
de uma vez. A primeira vez foi no metro, nas mãos de um desconhecido
em leitura atenta. Um livro que eu sabia ser bom e transportava
indecifravelmente uma secreta história editorial que jamais aquele
acidental leitor conheceria. Depois, o gozo de cheirar livros frescos
de tinta, novos, acabados de chegar da tipografia. Vê-los nas
estantes de gente que apreciamos. E surpreende-los expostos,
inesperadamente, em montras de países estrangeiros. E receber uma ou
outra carta a testemunhar quanto um determinado livro foi importante
na sua vida. Ele há tanto mistério a envolver cada livro! Mas isso
é já substância para outras histórias.”
Manuel
Hermínio Monteiro.
In
“Ler – Livros & Leitores”, n.º 35, Verão de 1996.
08/01/2019
06/01/2019
...
“Nasci em Fresno, na Califórnia, em
1908, e frequentei as escolas oficiais da cidade até aos dezasseis
anos, altura em que passei a trabalhar nas vinhas e pomares da
região. Sempre contei entre os meus colegas de turma rapazes e
raparigas portugueses – açorianos, como vim mais tarde a saber,
pois parece que poucos portugueses da Metrópole emigravam para a
América. Ainda hoje estou para saber porquê. Frank Silveira foi um
grande amigo meu e excelente jogador de baseball.
Elvira Martins era uma morena muito bonita, cheia de vida e com uma
linda voz – se bem que na Emerson School apenas cantasse canções
populares americanas e não o fado, que tanto aprecio e ouvi pela
primeira vez em Lisboa, em 1949, na Adega Machado. Há português no
grande escritor americano John dos Passos, e haverá por certo vários
outros notáveis escritores e artistas portugueses na América que
não conheço. Foi longa a minha aprendizagem de escritor – e o
certo é que durante anos receei que se prolongasse para sempre –:
dos meus treze anos, quando comprei uma máquina de escrever,
expressamente decidido a tornar-me escritor de profissão, até aos
vinte e seis, quando publiquei o meu primeiro livro, The
Daring Young Man on the Flying Trapeze and Other Short Stories.
Agora, aos sessenta e três anos, sinto-me feliz por dizer que
continuo escritor de profissão, que acredito no acto de escrever
(mais profundamente do que nunca, colocando essa profissão acima de
todas as outras – onde mais poderia acaso coloca-la?) e que
continuo a ganhar a minha vida com a pena, se me é permitido
empregar tão velha e pretensiosa expressão. Escrevi nos géneros
mais diversos – histórias, ensaios, novelas, romances, entremezes,
peças de teatro, poemas e canções (música e letra) –, mas creio
que sou sobretudo conhecido pelas minhas primeiras histórias e pelas
peças de teatro, especialmente The
Time of Your Life. Não fiz
quanto quisera com o que escrevi (esperava, por exemplo, mudar para
melhor a própria raça humana, e nem eu nem nenhum outro escritor
teve qualquer influência real e aparente na raça humana em geral),
mas sinto-me bastante satisfeito por ter sido um trabalhador honesto
e dedicado e por ter escrito até à data 44 livros. E se talvez
apenas quatro se encontram realmente vivos na hora actual, já não é
nada mau, nem me lamento; antes dou graças a Deus. My
Name is Aram é um desses
quatro livros.
William
Saroyan”
William
Saroyan, “O Meu
Nome é Aram”
Editorial Verbo,
col.«livros RTP / Biblioteca Básica Verbo /89», Lisboa, 1972.
03/01/2019
...
“Em
suma, na imensa maioria da sociedade portuguesa não se formou um
carácter cívico em harmonia com a vida moderna e fez-se todo o
possível para destruir o carácter cívico antigo. Desta deficiência
educativa, o sentimento de vida nacional não evoluiu normalmente e
resulta um sentimento, desvirtuado em parte, em parte incompleto.”
Manuel
Laranjeira,
“Pessimismo Nacional”, pp.28-9, Contraponto, 2.ªed., Lisboa,
1985.
“Porque
afinal todos os actos do povo português não são actos de quem
agoniza, são actos de quem não sabe, não são escabujos de povo
exausto, são actos todos derivados da sua profunda ignorância. Pois
que queriam que fizesse um povo que nem sequer sabe ler? Queriam
talvez que esse povo fosse resolver a questão social? Queriam talvez
que ele se interessasse pelos vastos problemas da filosofia social e
se apaixonasse pelos transcendentes ideais da justiça, tal como a
concebe e teoriza o homem moderno?”
Manuel
Laranjeira,
“Pessimismo Nacional”, pág. 37, Contraponto, 2.ªed., Lisboa,
1985.
“Não;
não é necessário recorrer à hipótese inconsciente da
degenerescência colectiva, nem a factores antropológicos, mais
duvidosos ainda, para explicar o pessimismo nacional. Este nosso
doloroso mal-estar ainda não é o paroxismo duma raça decadente,
ainda não é o crepúsculo dum Povo. O nosso pessimismo que dizer
apenas isto: que em Portugal existe um povo, em que há, devoradas
por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre
porque a não educam e um minoria que sofre porque a maioria não é
educada.”
Manuel
Laranjeira,
“Pessimismo Nacional”, pp. 40-1, Contraponto, 2.ªed., Lisboa,
1985.
02/01/2019
...
Veneza,
2 de Janeiro de 1938
– Ora
até que enfim, Veneza! Mas esta velha namorada está gasta. Não há
corpo de mulher que resista às noitadas de vinte gerações.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 55, 1941, Coimbra.
01/01/2019
...
“E em 1999 os amish venderam doze vezes mais moinhos (de café) e velas e batedores de claras etc. do que era costume porque as pessoas temiam que o BUG DO MILÉNIO paralisasse os electrodomésticos e o fornecimento de energia eléctrica. Os sociólogos diziam que o medo de avaria dos sistemas electrónicos que pusesse fora de serviço as televisões e os micro-ondas e as caixas de multibanco era fruto de um milenarismo subconsciente e recalcado e algumas pessoas presumiam que iria tratar-se de um momento fatídico na história da civilização ocidental que levaria ao caos e a convulsões sociais e outras coisas que tais e haveria de permitir à sociedade ocidental libertar-se da ditadura tecnológica e entrar numa nova era que seria harmónica e espiritual e mística. E nalguns países os governos imprimiram reservas de dinheiro e no Canadá o governo organizou exercícios de evacuação de populações e em Inglaterra e na Dinamarca os cidadãos armazenaram reservas de açúcar e farinha na banheira e na Finlândia os farmacêuticos esgotaram os stocks de iodo cuja utilização era recomendada no caso de uma catástrofe nuclear e os Finlandeses temeram que o BUG DO MILÉNIO pusesse fora de serviço os sistemas de segurança nas centrais nucleares russas. Os sociólogos diziam que o BUG DO MILÉNIO fazia parte da lógica do imaginário social da era moderna e que no século XX o mal tinha assumido a forma de algo infinitesimal e que as pessoas já não tinham medo das coisas grandes e complicadas como a locomotiva etc. mas dos átomos e vírus e genes e priões. E os psicanalistas diziam que o BUG DO MILÉNIO no fundo desempenhava na vida da sociedade o papel do parricídio que haveria de permitir o prazer e a luxúria à nova geração tecnológica.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 114-15 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
31/12/2018
...
“Coimbra,
1 de Janeiro de 1943 – Outro ano. Toda a gente excitada, e, de
conhecido para conhecido, esta senha:
–
Boas entradas!
–
Igualmente! – responde o contemplado.
E
lá segue cada qual o seu caminho, com o supersticioso pé direito à
frente, não vá o demo tecê-las.
A
estafada e monocórdica ária de sempre, que apenas moi os ouvidos de
que é por condenação um rói-migalhas, e passa o tempo a reparar
nas inocências do homem, e a registá-las.
Ano
Novo! Os torcegões que a realidade sofre nas nossas mãos, a ver se
conseguimos disfarçar-lhe a crueza! A imaginação colectiva aos
sobressaltos, na grata ilusão (na triste ilusão) de que a coisa vai
começar agora, – agora que o ano é novo, a idade é nova. No
fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém
é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um
roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua
maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode
deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o
caminho é bonito e nos apetece. Recomeçar uma, duas, cinquenta
vezes, e chegar à meta com este lamento hipócrita na boca: – Ah,
se eu voltasse aos vinte anos e soubesse o que hoje sei!
Que
me lembre, apenas Raúl Brandão teve a grandeza e a lealdade de
escrever que repetiria o calvário da vida sem lhe alterar o
itinerário. Isto sim, isto é de quem entendeu a fundo que a
existência não deve ter soluções de continuidade, nem ser
prevista. Deus me livre de saber que por certo beijo que roubei em
rapaz a uma cachopa da minha terra receberia a bofetada que recebi! A
coisa foi maravilhosa por ter sido um jogo, um atrevimento, um risco,
e motivar aquela réplica inesperada e ardente!
–
«Se eu soubesse…»
Mas
como felizmente ninguém pode voltar atrás, nem saber antes de
saber, vai de recomeçar vida nova cada novo ano. Cada novo ano que
passa a velho logo que se fazem 365 tolices…”
Miguel
Torga, “Diário
II” 3ª ed. Revista, pp.102-104, Coimbra Editora, 1960.
29/12/2018
...
"AMAZING
NAILS
[MATRIMÓNIO]
As
Amazing Nails
são entidades histéricas que variam entre o disforme e as putas do
Vaudeville.
Vêm da Reboleira e da Damaia montadas em maridos e namorados
semiusados com muito Tunning
à mistura. As Amazing
Nails discutem muito
sobre a ética e a moral das relações mundanas. São o verdadeiro
exemplo da rivalidade feminina. Já foderam todos os gajos do lado
esquerdo das suas ruas e incluíram também o lado direito porque o
gel quando nasce é para todos. Dominam os cem metros quadrados à
frente do estabelecimento porque lá dentro não há ninguém.
Primeiro afixaram um horário, depois afixaram um cartaz e agora só
por marcações. O verde e o rosa dominam o Branding.
Parece um Franchise
de pastilhas elásticas, rebuçados e gomas. Recebem as visitas da
Máfia Local, dos filhos, sobrinhos e afilhados. Dão-se a conhecer e
conhecem os segredos de meio mundo. Particularmente alimentam-se de
pastéis de nata, de abatanados e dos mexericos da Borderline
drogada que vai
meter achas na fogueira. De vez em quando há um Gelinho para fazer
que implica um cigarro depois e um gancho na cabeça.
As
Amazing Nails
são o centro das atenções mas não estão no Spot.
Ainda distam uns cinquenta metros da Rua. Da rua à praceta vai um
mundo de distância, uma distância entre Cabo Verde e as ilhas
Maurícias. Lá ao fundo da rua ouve-se o crioulo, aqui na praceta
diz-se mal de alguma coisa. Aqueles cem metros quadrados à frente do
estabelecimento, mijados de cão e com ervas a crescer por entre as
pedras da calçada, parecem uma zona desmilitarizada. As ervas verdes
condizem com o reclame, o mijo do cão não dá com nada em especial.
As
Amazing Nails
são tão más que chegam a ser boas. Eu bem ponho os óculos escuros
e enfio os cornos no chão quando passo à frente delas mas no fundo,
se a minha mãe deixasse, desposaria qualquer delas. Não que elas me
quisessem. Masco pouca pastilha elástica mas sempre tenho uma
motoreta para levá-las a um Dolce
Vita qualquer. Não
sei se tenho unhas para tocar estas harpistas mas o artista que há
em mim deseja-lhes toda a sorte do mundo."
Tó
Carlos, “Variações
Bíblicas”, pp.43-5, Momo, Lisboa, 2018
28/12/2018
...
“(…) os Americanos inventaram a Internet porque temiam que os Russos nalguma próxima guerra mundial pudessem reter quaisquer informações vitais para a liberdade e a democracia. E trezentos e setenta milhões de pessoas tinham acesso à Internet e podiam comunicar os seus pensamentos e desejos em liberdade e sem inibições. E algumas agências de viagens propunham através da Internet e por preços moderados excursões virtuais a países longínquos de acordo com os desejos pessoais de cada hipercidadão. E as mulheres podiam encomendar pela Internet o esperma de um dador anónimo e alguns laboratórios propunham o esperma de homens de qualidade superior como astrofísicos e engenheiros e jogadores de basquetebol etc. As mulheres podiam escolher o esperma de acordo com cento e cinquenta critérios diferentes nacionalidade de origem raça religião habilitações académicas preferências e passatempos pessoais profissão altura peso grupo sanguíneo cor do cabelo pilosidade circunferência dos testículos etc. e podiam por exemplo comprar esperma de um biólogo americano de trinta e seis anos e origem afegã de cabelo negro e olhos azuis ou o esperma de um engenheiro de aviação de quarenta e dois anos do Kansas de religião baptista e de origem holandeso-ucraniana ou o esperma de um xadrezista talentoso de dezassete anos e origem chinesa com testículos pequenos. Uma dose de esperma custava em média 1050 dólares americanos já com portes incluídos e as mulheres também podiam encomendar com ele uma gravação com a voz do dador do esperma. Na gravação dizia ORA VIVA! HOJE É UM DIA DEVERAS BELO COMO SE FOSSE FEITO PARA DAR UMAS PASSEATAS PELA NATUREZA. ESPERO QUE FIQUE CONTENTE COMIGO. E uma mulher que mandou vir a gravação quis saber se não poderia obter um desconto de dez por cento sobre o esperma porque o dador do esperma rolava os erres.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 108-9 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
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