08/02/2019

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Poesia e sobrevivência
A poesia portuguesa afirmou-se principalmente desde meados deste século através das revistas e, depois, pelas colecções com que algumas editoras foram desenvolvendo os veios dessa lírica. Se as revistas foram determinantes ao longo dos anos 50, caracterizando-se também um determinado ambiente social e político de cafés, de convívio e de trincheira, a partir de 60 e depois de 70 um certo desafogo económico e cultural reflectidos na vida editorial fez emergir as colecções de poesia. Livro após livro, cada, uma ganhou a sua personalidade, compondo no conjunto uma apreciável biblioteca de grande responsabilidade cultural.
A branca colecção da Ática, a verde e creme da Guimarães ou a rugosa da Portugália sobrevivem ainda hoje nas casas dos nossos amigos. Umas mais resistente, como a da Centelha, mais cosmopolitas, como os Cadernos da Dom Quixote, ou persistentes, como a da Moraes. Na verdade, cada editora procurava prestígio e história, principalmente na edição de poesia. No porto, a Inova, a Limiar e depois a Afrontamento e a Gota d’Água deram-nos excelentes livros, enquanto editoras tão diferentes como a Arcádia, Regra do Jogo, Presença ou Assírio & Alvim mantinham com orgulho as suas colecções, em certos casos já com dezenas de títulos. Desconhecem-se quanto tirava cada edição mas recordam-se as muitas reedições dos Cadernos Dom Quixote, e sei que a Assírio habitualmente ia aos 3000 exemplares de cada título. Se é verdade que andam por aí, já cansados, muito desses livros, a maioria com o tempo esgotou-se e hoje valem dinheiro nos alfarrabistas.
Mais importante: de tantas edições de tanta colecção de tanto nome, sem dúvida fátuos ou turísticos, este empenhamento editorial tomou visível a assunção de excelentes poetas que hoje pairam na nossa vida. Nos anos 80, com a seca, a doença do sobreiro e outras maleitas, veio a morte das editoras de poesia. A Portugália já lá ia; cede depois a Ática e em 1985 o Círculo de Poesia da Moraes, e o projecto da Inova com todas as suas doiradas ramificações, e a Regra do Jogo e os Cadernos de Poesia e Pedra de Canto, e a Licorne e Poesia e Verdade e depois a Rolim e a Fenda, a Centelha, a Plural, a &etc. Hoje a edição de poesia em Portugal recolhe o cuidado de três ou quatro editoras. Há bons poetas com dificuldades de publicar. Se é verdade que nomes como Herberto, Eugénio, Cesariny, Sophia, tiram 3000 ou mais exemplares, o sucesso aplica-se quase exclusivamente aos consagrados. As edições andam pelos 1000 ou 1200 exemplares, para uma venda imediata inferior a 500.
Ocuparíamos agora páginas a descrever razões, tantas são, mas podemos mesmo assim apontar o dedo a um país que de estrada em estrada corre alucinado para uma ideia de progresso há muito posta em saldo pelos países ditos avançados. E indicaríamos depois um ensino falacioso e cada vez mais inútil, uma política cultural que, no mínimo, nos deixa perplexos. Um arrogante desprezo pelo livro. Uma indisfarçável crise do espírito, e crise da palavra.
A poesia é, neste momento, uma ave acossada por patos bravos muito bem colocados num país que há décadas saía das penumbras para logo ficar entontecido com o excesso de luz chegada das «centrais nucleares» europeias.
O quadro só não é mais negro e completamente ocupado pelo desenho de uma multidão imobilizada, de cócoras a ver concursos televisivos, telenovelas e thrillers porque, apesar de terem desaparecidos os suplementos literários dos jornais que em muitos aspectos haviam substituído as revistas grupais de 50, do empobrecimento do debate, da vivência cultural, autores tão diferentes como Novalis, Whitman, São João da Cruz, Baudelaire e Hölderlin tiram hoje 3000 exemplares e rivalizam nos tops com a mais espampanante das ficções. Poesia Toda de Herberto Helder pode orgulhosamente atingir os 5000. Antologias como a de Eugénio Andrade ou de Al Berto vão às dezenas de milhar. Alguns livreiros que antes se recusavam simplesmente a receber poesia (e eu conheço uma boa dúzia de casos destes) hoje abriram-lhes as portas, timidamente dão-lhe um canto da montra e até já a bancada das novidades.
Claro que a poesia, já aqui se disse, sobreviverá sempre às conjunturas e ao abrigo que a cada momento se lhe propõe, mas, que diabo!, num tempo tão apressado, com tantos «itinerários principais» para cada um ir e infelizmente não vir à sua vida, porque é que a poesia em Portugal não pode dispor de um simples carreiro, para chegar, sem tropeções ou portagens, ao coração do seu leitor?”
Manuel Hermínio Monteiro. In “Ler – Livros & Leitores”, n.º 22, Primavera de 1993.

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