“Coimbra,
25 de Maio de 1949 – O Marquês de Sade. Um calafrio que só as
leituras proibidas dão. A gente volta cada página arrepiado, com a
sensação de que está a meter a alma no Inferno. E é essa
inquietação que todos os livros deveriam provocar. Uma incerteza,
um pavor crescente, um medo de cada vírgula. A segurança burguesa
de que as suas leituras foram prèviamente policiadas, e de que tudo
o que soletra é castílhico, canónico, arcádico, só pode degradar
o espírito. O homem necessita do pecado para viver, como de
especiarias para comer. Julgo mesmo que o futuro se esforçará por
contrariar cada vez mais a sonolência beócia das páginas
cor-de-rosa. Em lugar de pudins, livros com dinamite dentro.
Sade. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, e li-o com a emoção
dum garoto que está a roubar peras num quintal. Quanto à
pornografia, há comunicados oficiais piores.”
Miguel
Torga, “Diário V”
2ª ed. Revista, pág. 22, Coimbra Editora, 1955.