Milão, 31 de Dezembro de 1937 – Não se pode dormir com tanta gente lá fora, aos uivos, a festejar o ano novo. Como se fosse possível um ano novo ser melhor que o velho!
A
grande força da vida é mesmo essa: a unidade. Com muita ciência e
paciência lá se consegue contar num tronco, pelas camadas
lenhosas, os anos da sua duração. Mas
o que ninguém consegue ver naquele feixe de horas é a diferença de
oscilação do cedro num dia de trovoada e num dia de sol calmo. Como
o vento nivelador, o tempo passa por nós sem deixar covas. Quem se
lembra das arritmias passadas, lembra-se de um quimera. Do grande
calvário percorrido, não
fica em nós senão o eco da monocórdica pancada do coração.
É claro que aqui o Sr. Baptistini do lado, negociante de botas,
para quem o negócio correu mal estes 365 dias passados, bebe
champagne na esperança de que se lhe tenha acabado o azar hoje e
comece a vender muitas botas amanhã. O Senhor Baptistini.
Mas será possível que três ou quatro milhões de pessoas não vão
além desse raciocínio rudimentar e utilitário do Senhor
Baptistini?!
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 55, 1941, Coimbra.
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