Enquadramento com cavaletes e ferros de dourar... |
24/07/2019
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Sobre as encadernações e os livros da série Downton Abbey
22/07/2019
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“Rebeldias
de calaceiros trouxeram a língua portuguesa ao ponto em que hoje se
encontra. Sempre é mais fácil, para imagens e pensamentos plagiados
de segunda mão, aproveitar a expressão já poluída, do que ir ver,
nos antigos, como seria que eles os coariam em vernáculo.
Uma
das modas actuais é não empregar as palavras no seu sentido
preciso; as aproximações dos chamados sinónimos bastam. De aí,
naturalmente, a imprecisão e confusão de ideias. O conhecimento
exacto da significação das palavras é indispensável à expressão
pontual do pensamento. É essencial estudar os clássicos, não só
para escrever e falar com elegância, mas, sobretudo, para «saber o
que se diz», escrevendo ou falando.
E,
então, para alcançar a ponderação, o equilíbrio?
Um
livro onde a indignação estruge, crónica, perpétua, sem tréguas:
facilmente se lhe apercebe a falta de reflexão, e o interesse pelo
estado mórbido do autor substitui-se, pouco a pouco, ao que a
matéria tratada devia inspirar. Por fim, enfastia e até os melhores
argumentos do polemista se embotam, e os seus mais valentes golpes
nem ferem nem causam comoção de espécie alguma.
Na
grande maioria dos casos, estes escritores ferozes e furiosos são
reaccionários e, portanto, pessimistas…
O
pessimista: em pose literária, clamando contra a desilusão que traz
o comércio do mundo; contra a miséria e desconsolo desta pobre
terra em que vivemos; contra a infidelidade das mulheres, e a traição
e abandono dos amigos; nunca lhe acode perguntar e investigar sobre o
que a sua própria natureza, física e moral, concorreu para
enegrecer um quadro, que, para tantos outros, só tem riso e festas;
e se lho perguntam, irrita-se, levando logo à conta de estupidez ou
insensibilidade e nem dúvida sequer de que a vida seja outra
do que ele a descreve.
Por
via de regra, o escritor pessimista foi, em menino, uma inteligência
muito espevitada que se embotou, pouco a pouco, no correr dos anos…
Este
caso das inteligências precoces!...
Há,
com efeito, certos génios prematuros, que deslizam pelo estudo das
matérias mais variadas e difíceis, com desembaraço tal e tal
aproveitamento que, antes, parecem recordar do que aprender, mas
geralmente desaparecem ainda novos.
O
tipo mais comum é assim, como vários que conheci pessoalmente:
muito esperto, inteligente e espevitado em menino; já, aos trinta,
se especializara em gastronomia e, dos quarenta em diante, ninguém
lhe arrancava um conceito, uma palavra, uma exclamação, que se não
referisse às hemorróidas…
A
experiência da vida confirma o aforismo aventado pelos críticos
amaros: depois dos quarenta anos, é que é difícil ser inteligente!
Esse
fenómeno da obliteração da inteligência (tão viva, em geral, na
mocidade) com o andar dos anos é, sobretudo, sensível nas
populações germânicas (ou neolatinas?) onde os rapazes são
extraordinariamente animados, perspicazes, intuitivos, argutos,
audazes, e, quando vão para velhos, descambam na timidez, no
obscurantismo, na insulsez, e natural e insensivelmente se alistam na
ala dos ultraconservadores.
E
é, ali, também, que mais abundam as caras que simulam
admiravelmente a inteligência e que surpreendidas, um dia, por
acaso, na sua expressão verdadeira, causam pavor pelo abismo de
estupidez que desvendam”.
M.
Teixeira-Gomes,
“2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pp-25-27,
Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.
16/07/2019
...
“Uma
das características, senão a principal, da produção literária do
moralista está na sua incapacidade de arquitectar um sistema ou
desenvolver uma tese. Procede pelo exclusivo exame dos detalhes e
desentranha-se em sentenças. Daí vem o desarranjo, o desconcerto
das suas obras, onde são frequentes as contradições.
Moralistas
de jornais: a simples reportagem, por mais hábil e perspicaz que
seja o seu autor, embora filosófica, moralista, pitoresca e faceta,
não dá mais do que o superficial aspecto dos acontecimentos. Para
penetrar à intimidade, ao sentido profundo dos factos, exige-se
aturada experiência do país onde se produzem, perfeito conhecimento
da sociedade que os pratica.”
M.
Teixeira-Gomes,
“2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pág. 45,
Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.
15/07/2019
...
“O
modo de jogar com a linguagem absolve de toda a classe de desvarios,
como põe em relevo a miséria intelectual de muitos pretensiosos sem
fundamento, e isso de forma que o leitor se interessa igualmente pelo
bom e pelo mau, e encontra especial satisfação em lhes fazer a
síntese.
Três
exemplos:
1.º
Explorador incansável da mentira poética; aventureiro audaz do
campo das ideias; criador inexaurível de imagens resplandecentes; o
mundo em que se move é o puro espelho da sua sensibilidade e da sua
inteligência: não conhece limites e jamais enfastia.
2.º
Há neste escritor muita fantasia premeditada, arranjada, combinada
adrede para produzir efeitos de ordem puramente literária, mas
salva-se pelo fundo de genuíno lirismo em que todos os seus bordados
assentam.
3.º
A existência, a descoberta, de criatura assim tão supinamente besta
não nos deve causar indignação, mas consumado júbilo. É como se
víssemos agora aparecer completo, vivo, perfeito, um desses monstros
fabulosos, da idade pré-histórica, de que um só osso constitui a
glória de museus famosos.
Mas
não será isto um enigma, uma adivinhação, própria para ser posta
a concurso na grande imprensa? O leitor que lhe ponha os nomes certos
e ganha… um folar para a Festa.”
M.
Teixeira-Gomes,
“2.ª Parte de Miscelânea – Carnaval Literário”, pp. 31-32,
Livraria Bertrand, 3.ª ed., 1993.
14/07/2019
...
S.
Martinho de Anta, 14 de Julho
de 1946 –
Mesmo que se não queira, uma
carruagem de comboio é um lar temporário. Os nossos vizinhos do
lado chegam-se a nós como irmãos, e os da frente bafejam-nos como
avós. Se a viagem é curta, a intimidade é discreta e em certa
medida higiénica. Mas se é longa, se o percurso vai do Porto ao
Pinhão, acaba-se na confidência da urina e das eructações. Como
acontece na mais respeitável família, há de tudo, ali em materia
de humanidade. A velha sabedoria de que temos cinco dedos em cada mão
e nenhum é igual, também está certa num trem. Todos os passageiros
que vinham no compartimento em que hoje viajei verificaram isso à
saciedade.
O
casal da demonstração entrou em S. Bento. Ela tinha cara de má,
viu-se logo, mas trazia um filho ao colo, e ficou, portanto, ilibada
em princípio de toda a mácula. Mulher parida é mulher absolvida.
Ele tinha apenas um dente podre. De repente, mesmo antes de o comboio
se pôr em andamento, começou o barulho. Ela encheu o compartimento
de insultos, e ele imitou-a. O filho dormia.
Como
ainda não houvesse tempo para cada qual se compenetrar dos seus
deveres, o sobressalto foi inevitável. A ideia de uma outra
carruagem e de uma
outra família passou pela cabeça de todos. Mas o comboio estava
repleto e havia malas. Por isso, assentou-se na resignação.
No
meio da ansiedade que qualquer renúncia implica, a voz da máquina,
a avisar que partia, foi como um penso. O movimento areja o corpo e o
espírito, e os dois desavindos não podiam fugir à regra. A
escuridão do túnel que veio logo, ajudou esta esperança. Mas era
uma miragem.
Apenas a luz do sol escarolou aquela sala doméstica, o conflito
continuou.
Lógicamente
a família inteira afilou então os ouvidos a fim de perceber a razão
da contenda. Já nos outros compartimentos havia risos de troça, e
era preciso documentar aquela solidariedade que o acaso impunha.
Tarefa muito difícil. Os fundamentos da zanga remontavam aos tempos
pré-históricos da vida particular dos dois, quando não eram ainda
nossos parentes.
Uma coisa se viu claramente: é que todos, à uma, se pusera ao lado
do homem. Primeiro, porque gritava menos; segundo, porque não era
ele que limpava o rabo do menino, embora ajudasse.
Por alturas de Mosteirô, já quando não havia mais insultos no
dicionário nem lágrimas nos olhos da Madalena, o mistério começou
a aclarar-se.
Estava na base do conflito a sogra, que perdera o comboio, trazia
contrabando, e talvez tivesse sido presa. O rapaz, claro, sofrera; a
mulher rejubilara. Daí a desarmonia.
O resto da família compunha-se de uma velhota corada e simpática,
que passou o caminho calada, a encher o biberão do menino. Viu o pai
aflito naquela prática, pediu licença, e fez ela o serviço.
Ninguém lhe agradeceu a gentileza, mas ela, mesmo assim, continuou a
tarefa. Toda a gente deve trabalhar, numa casa.
Mesmo ao lado da fera, sentava-se um cavalheiro de olhos azuis,
alto, que era o Gary Cooper por uma pena. Até na filosofia se
pareciam. Quando um novo passageiro entrou, como a megera ocupava
dois lugares, o pobre ficou apertado entre duas forças hostis. A que
vinha, que queria espaço, e a que estava, que não cedia espaço.
Mas não se desconcertava. Manteve um sorriso compreensivo nos
lábios, esperou, e quando a Eva por sua recriação tirou de cima do
banco a cesta dos cueiros e se compôs, passou-lhe pelos olhos o
làmpejo mais irónico e mais fino que vi.
Havia
ainda um rapaz ruivo, que tentou alegrar aquela tristeza com uma
gaita de boca, mas desistiu, e um sujeito gordo que comeu bolos de
bacalhau todo o caminho.
Os polos da família, porém, eram o casal, e também o filho, que
parecia um rato, e chupava na teta do frasco como um aspirador
mecãnico.
Ninguém olhava sequer a paisagem, que entrava pelas janelas, verde
e generosa. O rio ia ali ao pé na sua pobreza doirada, e a estrada
de Rezende, do lado de lá, fazia piruetas na encosta. Em vão.
Lembro-me ao todo de ver um cacho de malvasia pendurado numa ramada.
Tal era o constrangimento!
Na Régua, o rapaz foi telegrafar à mãe. E a mulher ficou
finalmente só, sem alvo para esvaziar aquela bílis que não tinha
fim. Ferrou, por isso, os olhos no chão, e estendia de vez em quando
a chupeta à senhora corada, que se apressava a enchê-la sem dizer
palavra.
Mas o comboio pôs-se em andamento antes de o rapaz aparecer. E a
mulher, que lhe tinha dito de todas as maneiras que a deixasse, que
não lhe pusesse mais os olhos em cima, que maldita a hora em que o
conheceu, começou aos gritos. Todos lhe garantiam que o homem vinha
atrás, noutra carruagem. Nada. O Gary Cooper, manhoso, explicou que
o vira passar para a ambulãncia. Pior. As lágrimas inundavam tudo.
No
Ferrão, o desaparecido apareceu. E todos esperaram ver finalmente, a
luz da harmonia e da paz raiar entre aquelas almas. Qual o quê! Uma
girândola de insultos coroou
miseràvelmente a cena.
Por
fim, já quando não havia
esperanças, o homem descascou um pêssego, ia a metê-lo à boca,
mas suspendeu o gesto e ofereceu-o à mulher. E o milagre deu-se.
Como no paraíso, tinha de ser um fruto a uni-los para o bem e para o
mal.
E foi então que eu deixei aquele lar que durou quatro horas,
acompanhado de um adeus compreensivo da senhora corada e de um olhar
inteligente do Gary Cooper.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
183-187,
1954, Coimbra.
13/07/2019
...
“O
grosso dos contratos de aforamento, arrendamento ou compra-e-venda
dos séculos X, XI e XII mencionam pagamento em géneros, muitas
vezes combinado com dinheiro. Nem o Conde D. Henrique nem D. Teresa
julgaram necessário cunhar moeda, embora o pudessem ter feito.
Circulavam os dinheiros de bilhão leoneses, juntamente com o dinar
de ouro e o
dirham
de prata islâmicos e até
nomismata
áureos de Bizâncio. Afonso Henriques, cujo longo reinado implicou
acréscimo de fortuna, desenvolvimento do comércio e necessidade de
prestígio, fez cunhar os primeiros morabitinos de ouro portugueses,
que copiavam em tamanho e em valor, assim como em nome (morabitino
vem de al-Murabitun,
o dinheiro dos Almorávidas), o seu modelo muçulmano. Cunhou também
dinheiros de bulhão e porventura meios-dinheiros ou mealhas da mesma
liga. Este duplo aspecto monetário espelhava com muita precisão a
integração económica de Portugal, compromisso entre a influência
meridional (muçulmana) e a origem setentrional (cristã). O comércio
português nascera da viabilidade das correntes de intercâmbio,
tanto com Leão como com o mundo islâmico (mais exactamente o reino
de Badajoz). Portugal, porém, não tinha ainda muito que oferecer em
troca. Foi, assim, vagarosamente, que esse comércio se desenvolveu.
Pelos fins do século XI, já se mencionavam mercados em diversas
cidades e aldeias, mas as primeiras feiras só surgiram nos finais da
centúria seguinte, se esquecermos o exemplo único da feira de Ponte
de Lima, criada antes de 1125.
Em
torno dos castelos do Porto, Guimarães, Constantim de Panóias,
Mesão Frio, Gaia e outros, assim como em redor de alguns mosteiros
fortificados, foram-se juntando pequenas colónias de mercadores. Nas
«cidades» (Braga, Coimbra, Lamego, Viseu, Chaves) viviam outros
mercadores. É possível que Coimbra desempenhasse, neste caso, um
papel de relevo, próxima que estava do território muçulmano. Foi
também em Coimbra, pouco antes de 1111, que se registou a única
revolta «comunal» de que temos notícia, obrigando o Conde D.
Henrique a conceder-lhe novo e mais favorável foral.”
A.
H. de Oliveira Marques, “História
de Portugal – Desde os tempos mais antigos até ao governo do Sr.
Palma Carlos”, 4.ª ed., pág. 83, Ed. Palas Editores, Lisboa,
1974.
12/07/2019
...
“Nas
horas em que a maré deixa a descoberto a antiga Praça
do Comércio
e a Avenida
Marginal
do século XX, já tenho feito algumas ligeiras explorações, e
recolhido alguns fósseis e exemplares arqueológicos, de que
minuciosamente falarei no meu Diário.
À
míngua de interesse científico, não deixa de ser curioso um dos
primeiros objectos que se me depararam numa pequena exploração, a
leste da minha tenda, no mesmo sítio, talvez, em que se emaranhavam
as vielas de Alfama.
É
uma prancha, ou lâmina, petrificada, e recoberta de calcário e grés
de formação marina. Fi-la imergir numa solução de corrosivo
antilítico, e, desligado o calcário da prancha primitiva, pude ler
nela, em indecisos caracteres:
ALTO
AQUI!
LEGÍTIMO
VINHO DO CARTAXO!
As
memórias escritas do quinto período geológico, um pouco mais
claras que as do período terciário e quaternário, e bem assim as
preciosas informações do cenobita açoriano, convenceram-me de que
a prancha aludida era uma tabuleta comercial; e de que a aparente
redundância da expressão vinho
legítimo
era a mais legítima consequência do estado económico e social dos
portugueses, no século XX, ou fins do século XIX, a que a prancha
provavelmente pertencia.
Cartaxo
devia ser algum burgo vinhateiro; mas, com o seu nome, vendia-se
vinho legítimo e vinho falsificado. Parece que o mesmo sucedia com
outras regiões vinhateiras, porque havia vinho do Porto, que era da
Bairrada; vinho de Colares , que era de Tomar; vinho de Bordéus, que
era de Carcavelos; vinho de Champagne, que era do Poço do Bispo.
Este
quiproquó industrial estava tão radicado nos costumes do povo e no
interesse das grandes indústrias, que, quando um governo julgou
indispensável dar o nome às vacas e pôr os pontos nos ii, como
então se dizia, uma empresa poderosa, Mixórdia & C.ª, fez uma
revolta, que obrigou o governo a cantar a palinódia e deixar correr
o marfim. Em todo o caso, não havia desdouro na transigência,
porque estava ainda em voga uma ciência, chamada economia
política,
de cujos princípios bastará citar este: «laissez
faire…
mixórdia e tudo».
O
que se dava com o vinho reproduzia-se nas demais indústrias: a
manteiga era margarina; o café era grão-de-bico, o açucar era
farinha, os panos da Covilhã eram panos de além-Caia. Por desamor a
estes panos e outras fazendas suspeitas, esteve um ministro em risco
de ser crucificado por uma seita de contrabandistas, que infestava o
país.
E
as falsificações estendiam-se a tudo, desde as indústrias até aos
industriais, desde o povo até aos governos. Comerciantes de gente
negra, bandidos de casaca e luvas, marçanos anónimos que surgiam
endinheirados dos alçapões da fortuna, tinham no seu tempo o
cognome de homens
de bem,
beneméritos e sustentáculos da pátria.”
Cândido
de Figueiredo,
“Lisboa no Ano Três Mil – revelações arqueológicas obtidas
pela hipnose e publicadas em 1892”, pp. 25-27, Frenesi, Lisboa,
2003.
11/07/2019
...
“Falava-se numa botica de província (nas capitais já ninguém
discorre sobre semelhantes assuntos) de alguns extravagantes artigos
da velha farmacopeia. Alguém aludiu ao óleo de lacrau e um
campónio, que, por acaso, assistia à conversa, advertiu:
– «Pois
se fossem precisos lacraus era só dizerem-mo, que lá para os meus
sítios não faltam.»
Retorquiu-lhe
um dos circunstantes, gracioso encartado:
– «Arranje
você uma boa canastra deles que aqui o Sr. Crespo compra-lhos.»
– «E
por bom preço – reforçou com malícia o Crespo, dono da farmácia
– mas que venham vivos…»
E
todos riram à socapa, o que não escapou ao lapuz, embora não desse
sinal de que o notara.
Quando
ele saiu houve um coro geral:
– «Arre,
que é burro!...»
Passado
poucos dias volta o campónio com um cesto cheio de lacraus.
– «Aqui
estão eles.»
– «O
quê?...»
– «Os
lacraus.»
– «Os
lacraus?»
– «Sim
senhor, e todos vivos como V. S.ª recomendou.»
– «Você
é parvo, homem, pois você não viu que tudo aquilo era troça e
para chuchar consigo…»
– «Ah!
era troça… então tome-os lá de graça», e despejou-lhe o cesto
dos lacraus pelos quatro cantos da casa.
Quando
souberam isto os habituais frequentadores daquele centro de má-língua
recusaram-se a lá voltar; a freguesia diminuiu consideravelmente, e o
Sr. Crespo levou meses a caçar lacraus, antes que se visse livre
deles…
Porém
onde está a moralidade do conto, que meta filósofos, lapuzes e
lacraus, todos juntos?
Isso
é com o leitor, não é comigo…
05/07/2019
...
Coimbra,
5 de Julho de 1946 –
Na tipografia, a ver
trabalhar lado a lado máquinas impressoras, desde o velho prelo
renascentista até à última rotativa americana. O prelo já só
tira provas; mas dele em diante o número de folhas vai subindo até
ao infinito. Não são, porém, as características de rendimento
que, a meu ver, separam significativamente os vários modelos e
espelham a constante trajectorial de toda a criação humana. A ideia
de Gutenberg não mudou profundamente na sua essência, porque, ao
fim e ao cabo, estamos sempre diante de aparelhos de imprimir
caracteres em papel, e o maior ou menor número de exemplares
conseguidos numa unidade de tempo diz respeito apenas a um
aperfeiçoamento de articulações. O que me parece ter realmente
interesse na comparação destas realizações é a arquitectura
aparente de cada uma. O prelo pode ser comparado a uma capela
românica, sem nenhum ornamento e sem qualquer desvio da intenção
original. Há uma
simplicidade genial na sua estrutura, que lhe dá uma beleza
recolhida e perene. Mas já na máquina seguinte esta singeleza se
perdeu, e qualquer coisa de flamejante perturba a serena criação da
primeira. No último modelo, então, estamos caídos no barroco
integral, pasmados e ajoelhados perante um número infinito de
rodinhas, de parafusos, de aspiradores, de cilindros e de fios. No
colosso que há-de vir, nem vale a pena falar, de tal grandeza será
o delírio…
Quanto
aos operários que manobram estes engenhos, os que movem o prelo
estão numa espécie de fraternidade imediata com ele, que lembra a
pureza das relações com Deus na tal sé de arco redondo, onde o
corpo se sentia pelo menos tão seguro como a alma. No gótico já
pouco desta comunhão se mantém. O espírito sobe, mas a carne
desce. E é pouco mais o que acontece na máquina seguinte. Uma vez
que foi possível aplicar-lhe uma polia, o impressor começa a pairar
naquele movimento como a sombra de um defunto. Na rotativa actual, é
de ver, o homem perdeu inteiramente o pé na realidade, e, à
semelhança da posição do
crente nas igrejas setecentistas, é já só aos ornamentos que os
seus olhos ficam atidos. Basta-lhe carregar num botão, para que a sua
desumanização comece.
Por ter esta ânsia de chegar ao seu barroco imaturamente, é que a
civilização mecânica corre o perigo de se perder ou de perder a
humanidade. Matam a cabeça e o corpo equipas de sábios a conceber
um Spitfire, e ainda ele está no estaleiro já se precisa dum
Meteor! Exactamente o que aconteceu com o cinema, que, de
sofreguidão, se devorou. Parte da humanidade não tinha acabado
sequer de abrir os olhos para a maravilha (e em Portugal a maior
parte das pessoas nem diante dos olhos a tiveram), e já a maravilha
estava na sua decadência!
A máquina é dos mais perfeitos milagres do nosso tempo. Se não
fosse ela, que oporíamos nós à Grécia, nós que não fomos
capazes de uma filosofia nova, de uma arte nova, de uma plenitude
espiritual e física que se lhe comparem? Mas, como todos os
milagres, tem o seu perigo: o de a gente pôr neles uma fé tão cega
que não fique lugar para a presença céptica da razão que os fez.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
178-180,
1954, Coimbra.
28/06/2019
24/06/2019
...
Coimbra,
24 de Junho de 1947 –
Acabar com a ideia da morte.
Integrarmo-nos na natureza, para que, aos horrores das penas
temporais, não juntemos ainda o castigo das eternas. O homem é, ao
cabo e ao resto, um animal. Sofra pois como animal, e não como deus.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
45,
1953,
Coimbra.
17/06/2019
...
Coimbra,
17 de Junho de 1946
– A
leitura do último volume do Journal
de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo do meu Diário.
Por que razão profunda eu o escrevo e publico, e que interesse
confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que
se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista?
A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia
romântica. Só uma mentalidade Byroniana pode conceber o absurdo de
se julgar polo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o
homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores
possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da
noite que decorreu. O masoquismo de Rosseau tem esta base. Ora se,
apesar de tudo, um romantismo residual existe necessàriamente em
cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas
como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se
coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase
terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro
seja um estendal doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação.
Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica
literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No
meu Diário creio que
há muita literatura, também. É certo que nem sempre escrevi que
sou intransigente, duro, obsecado, capaz de uma lógica que toca a
desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este
camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador
que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi
às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas
ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na minha
razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias,
quando na verdade estava cheio de força e alegria.
Mas
quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe
tão-pouco de artista que ignora a falta de sintonização do estado
receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é
necessàriamente um perpétuo mea culpa.
Pode ser um simples memento,
um exercício espiritual,
um caderno de apontamentos, tudo que se queira. Que nele haja sempre
um derrame de pecados e maceração, parece-me absurdo. Pela minha
parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a
esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter
mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição
confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de
silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo
assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico,
história patológica de um tímido, e não obra literária,
aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que
me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor
devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
172-174,
1954, Coimbra.
15/06/2019
...
Coimbra,
15 de Junho de 1945
– O
primeiro pedreiro que quebrou o arco, esse é que eu queria conhecer…
A conversa girava à volta do problema da criação, no seu aspecto
individual e colectivo.
– Então mas a catedral não é precisamente uma prova
irrefutável da arte por equipas? E Shakespeare e Camões e Goethe
não se fartaram de construir sobre materiais carreados por outros?
– Embora. Entro na Sé Velha ou na Batalha, e digo: Aqui, o
génio de tudo isto está na padieira da porta. Quem arredondou ou
ogivou, esse é que tem a glória. Quanto ao Camões e aos outros,
por cada cena que já estava imaginada antes deles, menos um valor. E
tanto se me dá que me chamem individualista, como não. Enquanto não
aparecer uma escola de ginástica que fabrique um Nijinski, em arte
sou pelo dom e pela predestinação.
Miguel Torga, “Diário
III”, pág. 101, 1954, Coimbra.
07/06/2019
01/06/2019
22/05/2019
19/05/2019
...
Coimbra,
19 de Maio de 1946 –
É quase inacreditável que
eu tenha nascido aqui! – dizia-me
há tempos um artista amigo, diante dos casebres serranos da sua
terra. E acrescentava: – Como isto me é estranho, hostil e
incompatível com o hotel em que vivo!
E eu lembro-me de vez em quando daquelas palavras, mas para as
aplicar precisamente ao contrário. Sentado a certas mesas, no meio
de certa gente, e enrodilhado em certas situações, digo eu:
– É quase inacreditável que eu esteja aqui! Como me é estranho,
hostil e oposto à choupana onde queria e devia viiver!
Miguel Torga,
“Diário III”, pág. 168,
1954, Coimbra.
18/05/2019
...
Coimbra,
18 de Maio de 1947 –
A maior desgraça que pode
acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar
pela vida. Cora-se de vergonha, depois, diante das ingenuidades
impressas, que são cueiros sujos e pretendem ser livros. Só a
experiência, a dor e o trabalho trazem a dignidade que uma obra
literária exige. Mesmo que não se tenha génio, pode-se, então,
ter compostura. E seja qual for a duração do que se escreve, uma
coisa ao menos os vindouros poderão respeitar: a nobreza do que vão
ler. Mas poucos sabem esperar pela hora da maturação. E antes desse
livro curado pelo fumo da vida, vêem-se quase sempre meia dúzia de
outros, infantis, imbecis, esquemáticos como o bê-á-bá. Penitet
me – creio que é a fórmula
do arrependimento.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
41,
1953,
Coimbra.
15/05/2019
14/05/2019
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É bom ver "resgatado" de um certo esquecimento um dos elementos da tertúlia, ou "tortúria", do Café Gelo. Foi escritor e violinista em "orquestras" de navios cruzeiros. Ainda por cima com a fotografia dele (o que é raro!). A foto é do Eduardo Gageiro o livro é da editora Ponto de Fuga.
Mais aqui
12/05/2019
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“Toda
a nossa actividade literária é de uma mesquinhez atroz. Nós não
temos o direito de escrever.
Falo de nós todos. Postos de parte os Tónios e as Marias dos
imbecis, que nos fica? O romance de gabinete, essa porcaria
«inteligente», essa masturbaçãozinha de impotentes. Ou então, o
romancezinho «psicológico», em que se trata o homem com desprezo,
se vem contar, com petulância, como é feito por dentro e dá entre
nós um génio em cada cinco anos, esse romancezinho feminino que
Proust, como «mulher» que era, põs em moda. Sim, que só mesmo uma
mulher podia inventar essa coscuvilhice íntima, essas histórias, e
històriazinhas cheias de pequenininhas observações, esses períodos
longos e complicados como folhos e rendas de uma boneca. Contra mim
falo, meu amigo, ah, contra mim falo. Mas não há outra saída. E
todavia a hora é da ardência, do sangue!”
Vergílio
Ferreira, “Cântigo
Final”, pág. 22, Portugália Editora, Lx, s/d. (escrito em Évora
em 1956).
Da série as “traições” da Musa…
Coimbra,
12 de Maio de 1947
POEMA
Foi
um poema casto que eu pedi
à
minha Musa.
Um
poema com bibes e meninas,
e
ternura no meio.
Mas
quando a imagem veio,
e
eu, deslumbrado, a olhava,
a
menina mais velha namorava,
e
as outras, ao lado, aprendiam
a
instintiva lição…
–
Minha Musa, o poema?
–
Este é o mesmo poema,
numa outra versão.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
36,
1953,
Coimbra.
05/05/2019
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Coimbra,
5 de Maio de 1947 –
Esta rapariguinha vem
transtornada de Fátima. Tudo a deslumbrou. A multidão, o
espectáculo e o lugar. Sobretudo o lugar. Sentiu verdadeiramente que
havia nele qualquer coisa de sobrenatural, de divino.
E eu, então, falei-lhe de Roma. Contei-lhe que tanta emoção se
sentia nas Catacumbas, como no Coliseu, como debaixo de um arco de
triunfo. E visse o despropósito: nas Catacumbas, tinham vivido
cristãos; no Coliseu tinham lutado gladiadores com feras; e sob o
arco do triunfo tinham passado tiranos.
–
Concebo a sua fé, e respeito-a, – acrescentei. – Mas para que um
sítio qualquer fique carregado de uma electricidade emotiva, não é
preciso que Deus ou a sua Mãe venham cá a baixo. O homem é muito
capaz de uma façanha destas. Basta que um pastor ou um bispo se
resolvam a criar um mito. Então, as pedras transformam-se em
altares, e uma mangedoira no berço mágico de um redentor.
Miguel Torga,
“Diário IV”,
pág.
35,
1953,
Coimbra.
02/05/2019
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“Mas com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação a vida das pessoas na Europa ia ficando cada vez mais igual em todo o lado e alguns sociólogos e historiadores achavam que reflectir em conceitos nacionais era algo que estava ultrapassado e diziam que a característica mais saliente da sociedade ocidental desenvovida era o cosmopolitismo e que no fundo não existia nada como Alemães ou Romenos ou Suecos e que tudo isso não passava de autoprojecções sobre estereótipos e preconceitos sociais. Mas outros sociólogos não estavam pelos ajustes e diziam que com o desenvolvimento da sociedade de consumo e dos meios de comunicação as pessoas foram perdendo a maior parte dos pontos de orientação e que de um modo paradoxal a comunidade nacional se tinha tornado mais importante que nunca. E que os estereótipos eram imprescindíveis para a preservação da memória colectiva e histórica sem a qual a sociedade ocidental perderia a sua unidade porque a unidade não podia ser heterogénea. E que a memória colectiva era uma interacção de compromisso entre o passado e o futuro e que os estereótipos e preconceitos tinham a vantagem de envelhecer mais devagar que a história e as novidades tecnológicas etc. e que representavam a última área e ao mesmo tempo a mais activa em que se preservava a identidade social. Os etnólogos e os antropólogos diziam que a historicidade podia assumir duas formas e que uma era própria das sociedades que queriam manter-se na sua existẽncia simbólica e a outra das sociedades que vão buscar à história a acção e a energia. E que tradicionalmente a sociedade ocidental fizera parte do segundo grupo mas que no momento actual talvez estivesse a meio de uma transição para o primeiro. E os filósofos diziam que a aceleração da história que ocorreu no século XX conduzia à indiferença relativamente ao tempo e ao desaparecimento da historicidade na sua forma tradicional e se devesse aparecer uma nova forma de historicidade era preciso refrear a história e alguns deles exigiam que à Declaração Universal dos Direitos Humanos fosse acrescentado o direito do Homem ao tempo.”
Patrik
Ouředník,
“Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 138-9 ,
Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.
30/04/2019
20/04/2019
19/04/2019
16/04/2019
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Uma das relações mais famosas entre escritores e gatos, provavelmente a mais famosa, é a de Samuel Johnson e o seu gato Hodge... No século XVIII... Há uma estátua em Londres (Gough Square), onde não faltam sequer as ostras sobre a capa do livro... Pois, segundo James Boswell's Life Of Dr. Samuel Johnson, o gato Hodge de Samuel Johnson era mimado e alimentado a ostras...
14/04/2019
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Coimbra, 14 de Abril de 1939 – (…) Crio em volta de mim um tal gelo, um vazio de tal modo hostil, que só quem é do meu meridiano me estende a mão. Os outros, rosnam, rosnam, mas vão passando de largo.
Não presta, nunca deu nada esta Coimbra, mas só aqui pude até hoje ser poeta à minha rica vontade.
Miguel
Torga, “Diário I”, pág. 95, 1941, Coimbra.
13/04/2019
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