S.
Martinho de Anta, 14 de Julho
de 1946 –
Mesmo que se não queira, uma
carruagem de comboio é um lar temporário. Os nossos vizinhos do
lado chegam-se a nós como irmãos, e os da frente bafejam-nos como
avós. Se a viagem é curta, a intimidade é discreta e em certa
medida higiénica. Mas se é longa, se o percurso vai do Porto ao
Pinhão, acaba-se na confidência da urina e das eructações. Como
acontece na mais respeitável família, há de tudo, ali em materia
de humanidade. A velha sabedoria de que temos cinco dedos em cada mão
e nenhum é igual, também está certa num trem. Todos os passageiros
que vinham no compartimento em que hoje viajei verificaram isso à
saciedade.
O
casal da demonstração entrou em S. Bento. Ela tinha cara de má,
viu-se logo, mas trazia um filho ao colo, e ficou, portanto, ilibada
em princípio de toda a mácula. Mulher parida é mulher absolvida.
Ele tinha apenas um dente podre. De repente, mesmo antes de o comboio
se pôr em andamento, começou o barulho. Ela encheu o compartimento
de insultos, e ele imitou-a. O filho dormia.
Como
ainda não houvesse tempo para cada qual se compenetrar dos seus
deveres, o sobressalto foi inevitável. A ideia de uma outra
carruagem e de uma
outra família passou pela cabeça de todos. Mas o comboio estava
repleto e havia malas. Por isso, assentou-se na resignação.
No
meio da ansiedade que qualquer renúncia implica, a voz da máquina,
a avisar que partia, foi como um penso. O movimento areja o corpo e o
espírito, e os dois desavindos não podiam fugir à regra. A
escuridão do túnel que veio logo, ajudou esta esperança. Mas era
uma miragem.
Apenas a luz do sol escarolou aquela sala doméstica, o conflito
continuou.
Lógicamente
a família inteira afilou então os ouvidos a fim de perceber a razão
da contenda. Já nos outros compartimentos havia risos de troça, e
era preciso documentar aquela solidariedade que o acaso impunha.
Tarefa muito difícil. Os fundamentos da zanga remontavam aos tempos
pré-históricos da vida particular dos dois, quando não eram ainda
nossos parentes.
Uma coisa se viu claramente: é que todos, à uma, se pusera ao lado
do homem. Primeiro, porque gritava menos; segundo, porque não era
ele que limpava o rabo do menino, embora ajudasse.
Por alturas de Mosteirô, já quando não havia mais insultos no
dicionário nem lágrimas nos olhos da Madalena, o mistério começou
a aclarar-se.
Estava na base do conflito a sogra, que perdera o comboio, trazia
contrabando, e talvez tivesse sido presa. O rapaz, claro, sofrera; a
mulher rejubilara. Daí a desarmonia.
O resto da família compunha-se de uma velhota corada e simpática,
que passou o caminho calada, a encher o biberão do menino. Viu o pai
aflito naquela prática, pediu licença, e fez ela o serviço.
Ninguém lhe agradeceu a gentileza, mas ela, mesmo assim, continuou a
tarefa. Toda a gente deve trabalhar, numa casa.
Mesmo ao lado da fera, sentava-se um cavalheiro de olhos azuis,
alto, que era o Gary Cooper por uma pena. Até na filosofia se
pareciam. Quando um novo passageiro entrou, como a megera ocupava
dois lugares, o pobre ficou apertado entre duas forças hostis. A que
vinha, que queria espaço, e a que estava, que não cedia espaço.
Mas não se desconcertava. Manteve um sorriso compreensivo nos
lábios, esperou, e quando a Eva por sua recriação tirou de cima do
banco a cesta dos cueiros e se compôs, passou-lhe pelos olhos o
làmpejo mais irónico e mais fino que vi.
Havia
ainda um rapaz ruivo, que tentou alegrar aquela tristeza com uma
gaita de boca, mas desistiu, e um sujeito gordo que comeu bolos de
bacalhau todo o caminho.
Os polos da família, porém, eram o casal, e também o filho, que
parecia um rato, e chupava na teta do frasco como um aspirador
mecãnico.
Ninguém olhava sequer a paisagem, que entrava pelas janelas, verde
e generosa. O rio ia ali ao pé na sua pobreza doirada, e a estrada
de Rezende, do lado de lá, fazia piruetas na encosta. Em vão.
Lembro-me ao todo de ver um cacho de malvasia pendurado numa ramada.
Tal era o constrangimento!
Na Régua, o rapaz foi telegrafar à mãe. E a mulher ficou
finalmente só, sem alvo para esvaziar aquela bílis que não tinha
fim. Ferrou, por isso, os olhos no chão, e estendia de vez em quando
a chupeta à senhora corada, que se apressava a enchê-la sem dizer
palavra.
Mas o comboio pôs-se em andamento antes de o rapaz aparecer. E a
mulher, que lhe tinha dito de todas as maneiras que a deixasse, que
não lhe pusesse mais os olhos em cima, que maldita a hora em que o
conheceu, começou aos gritos. Todos lhe garantiam que o homem vinha
atrás, noutra carruagem. Nada. O Gary Cooper, manhoso, explicou que
o vira passar para a ambulãncia. Pior. As lágrimas inundavam tudo.
No
Ferrão, o desaparecido apareceu. E todos esperaram ver finalmente, a
luz da harmonia e da paz raiar entre aquelas almas. Qual o quê! Uma
girândola de insultos coroou
miseràvelmente a cena.
Por
fim, já quando não havia
esperanças, o homem descascou um pêssego, ia a metê-lo à boca,
mas suspendeu o gesto e ofereceu-o à mulher. E o milagre deu-se.
Como no paraíso, tinha de ser um fruto a uni-los para o bem e para o
mal.
E foi então que eu deixei aquele lar que durou quatro horas,
acompanhado de um adeus compreensivo da senhora corada e de um olhar
inteligente do Gary Cooper.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
183-187,
1954, Coimbra.
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