“Nas
horas em que a maré deixa a descoberto a antiga Praça
do Comércio
e a Avenida
Marginal
do século XX, já tenho feito algumas ligeiras explorações, e
recolhido alguns fósseis e exemplares arqueológicos, de que
minuciosamente falarei no meu Diário.
À
míngua de interesse científico, não deixa de ser curioso um dos
primeiros objectos que se me depararam numa pequena exploração, a
leste da minha tenda, no mesmo sítio, talvez, em que se emaranhavam
as vielas de Alfama.
É
uma prancha, ou lâmina, petrificada, e recoberta de calcário e grés
de formação marina. Fi-la imergir numa solução de corrosivo
antilítico, e, desligado o calcário da prancha primitiva, pude ler
nela, em indecisos caracteres:
ALTO
AQUI!
LEGÍTIMO
VINHO DO CARTAXO!
As
memórias escritas do quinto período geológico, um pouco mais
claras que as do período terciário e quaternário, e bem assim as
preciosas informações do cenobita açoriano, convenceram-me de que
a prancha aludida era uma tabuleta comercial; e de que a aparente
redundância da expressão vinho
legítimo
era a mais legítima consequência do estado económico e social dos
portugueses, no século XX, ou fins do século XIX, a que a prancha
provavelmente pertencia.
Cartaxo
devia ser algum burgo vinhateiro; mas, com o seu nome, vendia-se
vinho legítimo e vinho falsificado. Parece que o mesmo sucedia com
outras regiões vinhateiras, porque havia vinho do Porto, que era da
Bairrada; vinho de Colares , que era de Tomar; vinho de Bordéus, que
era de Carcavelos; vinho de Champagne, que era do Poço do Bispo.
Este
quiproquó industrial estava tão radicado nos costumes do povo e no
interesse das grandes indústrias, que, quando um governo julgou
indispensável dar o nome às vacas e pôr os pontos nos ii, como
então se dizia, uma empresa poderosa, Mixórdia & C.ª, fez uma
revolta, que obrigou o governo a cantar a palinódia e deixar correr
o marfim. Em todo o caso, não havia desdouro na transigência,
porque estava ainda em voga uma ciência, chamada economia
política,
de cujos princípios bastará citar este: «laissez
faire…
mixórdia e tudo».
O
que se dava com o vinho reproduzia-se nas demais indústrias: a
manteiga era margarina; o café era grão-de-bico, o açucar era
farinha, os panos da Covilhã eram panos de além-Caia. Por desamor a
estes panos e outras fazendas suspeitas, esteve um ministro em risco
de ser crucificado por uma seita de contrabandistas, que infestava o
país.
E
as falsificações estendiam-se a tudo, desde as indústrias até aos
industriais, desde o povo até aos governos. Comerciantes de gente
negra, bandidos de casaca e luvas, marçanos anónimos que surgiam
endinheirados dos alçapões da fortuna, tinham no seu tempo o
cognome de homens
de bem,
beneméritos e sustentáculos da pátria.”
Cândido
de Figueiredo,
“Lisboa no Ano Três Mil – revelações arqueológicas obtidas
pela hipnose e publicadas em 1892”, pp. 25-27, Frenesi, Lisboa,
2003.
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