Coimbra,
17 de Junho de 1946
– A
leitura do último volume do Journal
de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo do meu Diário.
Por que razão profunda eu o escrevo e publico, e que interesse
confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que
se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista?
A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia
romântica. Só uma mentalidade Byroniana pode conceber o absurdo de
se julgar polo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o
homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores
possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da
noite que decorreu. O masoquismo de Rosseau tem esta base. Ora se,
apesar de tudo, um romantismo residual existe necessàriamente em
cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas
como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se
coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase
terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro
seja um estendal doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação.
Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica
literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No
meu Diário creio que
há muita literatura, também. É certo que nem sempre escrevi que
sou intransigente, duro, obsecado, capaz de uma lógica que toca a
desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este
camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador
que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi
às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas
ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na minha
razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias,
quando na verdade estava cheio de força e alegria.
Mas
quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe
tão-pouco de artista que ignora a falta de sintonização do estado
receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é
necessàriamente um perpétuo mea culpa.
Pode ser um simples memento,
um exercício espiritual,
um caderno de apontamentos, tudo que se queira. Que nele haja sempre
um derrame de pecados e maceração, parece-me absurdo. Pela minha
parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a
esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter
mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição
confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de
silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo
assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico,
história patológica de um tímido, e não obra literária,
aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que
me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor
devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
172-174,
1954, Coimbra.
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