Coimbra,
5 de Julho de 1946 –
Na tipografia, a ver
trabalhar lado a lado máquinas impressoras, desde o velho prelo
renascentista até à última rotativa americana. O prelo já só
tira provas; mas dele em diante o número de folhas vai subindo até
ao infinito. Não são, porém, as características de rendimento
que, a meu ver, separam significativamente os vários modelos e
espelham a constante trajectorial de toda a criação humana. A ideia
de Gutenberg não mudou profundamente na sua essência, porque, ao
fim e ao cabo, estamos sempre diante de aparelhos de imprimir
caracteres em papel, e o maior ou menor número de exemplares
conseguidos numa unidade de tempo diz respeito apenas a um
aperfeiçoamento de articulações. O que me parece ter realmente
interesse na comparação destas realizações é a arquitectura
aparente de cada uma. O prelo pode ser comparado a uma capela
românica, sem nenhum ornamento e sem qualquer desvio da intenção
original. Há uma
simplicidade genial na sua estrutura, que lhe dá uma beleza
recolhida e perene. Mas já na máquina seguinte esta singeleza se
perdeu, e qualquer coisa de flamejante perturba a serena criação da
primeira. No último modelo, então, estamos caídos no barroco
integral, pasmados e ajoelhados perante um número infinito de
rodinhas, de parafusos, de aspiradores, de cilindros e de fios. No
colosso que há-de vir, nem vale a pena falar, de tal grandeza será
o delírio…
Quanto
aos operários que manobram estes engenhos, os que movem o prelo
estão numa espécie de fraternidade imediata com ele, que lembra a
pureza das relações com Deus na tal sé de arco redondo, onde o
corpo se sentia pelo menos tão seguro como a alma. No gótico já
pouco desta comunhão se mantém. O espírito sobe, mas a carne
desce. E é pouco mais o que acontece na máquina seguinte. Uma vez
que foi possível aplicar-lhe uma polia, o impressor começa a pairar
naquele movimento como a sombra de um defunto. Na rotativa actual, é
de ver, o homem perdeu inteiramente o pé na realidade, e, à
semelhança da posição do
crente nas igrejas setecentistas, é já só aos ornamentos que os
seus olhos ficam atidos. Basta-lhe carregar num botão, para que a sua
desumanização comece.
Por ter esta ânsia de chegar ao seu barroco imaturamente, é que a
civilização mecânica corre o perigo de se perder ou de perder a
humanidade. Matam a cabeça e o corpo equipas de sábios a conceber
um Spitfire, e ainda ele está no estaleiro já se precisa dum
Meteor! Exactamente o que aconteceu com o cinema, que, de
sofreguidão, se devorou. Parte da humanidade não tinha acabado
sequer de abrir os olhos para a maravilha (e em Portugal a maior
parte das pessoas nem diante dos olhos a tiveram), e já a maravilha
estava na sua decadência!
A máquina é dos mais perfeitos milagres do nosso tempo. Se não
fosse ela, que oporíamos nós à Grécia, nós que não fomos
capazes de uma filosofia nova, de uma arte nova, de uma plenitude
espiritual e física que se lhe comparem? Mas, como todos os
milagres, tem o seu perigo: o de a gente pôr neles uma fé tão cega
que não fique lugar para a presença céptica da razão que os fez.
Miguel Torga,
“Diário III”, pp.
178-180,
1954, Coimbra.
Sem comentários:
Enviar um comentário