18/02/2019

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“O CORO

Ora bem. A mola está tensa. Tudo se desenrolará por si. É esta, afinal, a comodidade da tragédia: damos um pequeno toque para que as coisas comecem, um nada, apenas um olhar para uma rapariga que passa na rua e ergue os braços; um desejo de dignidade e de glória, numa manhã ao acordar como se se tratasse de algo que se come; uma pergunta a mais feita certa noite… É o suficiente. Depois, basta deixar correr. Estamos tranquilos. Gira tudo só, com minúcia e precisão. A morte, a traição, o desespero estão lá à espera, e também os relâmpagos, as tempestades, os silêncios. Todos os silêncios: o silêncio que rodeia o carrasco, quando este ergue o braço para o fim; o silêncio que rodeia dois amantes quando, pela primeira vez, surgem na sua nudez, um em frente do outro, sem ousarem dizer uma palavra; o silêncio… quando os gritos da multidão ressoam em redor do vencedor – dir-se-ia um filme ao qual suprimiram o som e que nos mostra um conjunto de bocas abertas, das quais nada sai, como um clamor que não passa de simples imagem; e o vencedor, agora vencido, sòzinho no meio do seu silêncio… é decente, a tragédia. É repousante, acertada… No drama, com todos os seus traidores, todas as suas ruíns pessoas, toda essa inocência perseguida, esses vingadores, esses terras-novas, esses fornecedores de esperanças, com tudo isso, o drama torna-se um perigo de morte, como um acidente. Poderíamos salvar-nos; o bom rapaz talvez pudesse chegar a tempo com os polícias. Na tragédia estamos tranquilos. Estamos, desde o início, em família! Numa palavra: estão todos inocentes! Não importa que haja um que mata e outro que morre. É apenas uma questão de distribuição. E, além disso, a tragédia é, sobretudo, repousante porque sabemos que não há lugar para a esperança, essa horrível esperança; quando se é apanhado, quando se é apanhado como um rato, com o peso do céu sobre as nossas costas, e só nos resta gritar – não gemer ou queixar-se – gritar a plenos pulmões o que se tem para dizer, o que nunca se disse e que, talvez, há momentos ainda não sabíamos que iríamos dizer. E para nada: para o dizermos a nós próprios. No drama debatemo-nos porque esperamos sair dele. É ignóbil, é utilitário. Na tragédia, tudo é gratuito. É para reis. Enfim, não há nada a tentar!”

Jean Anouilh, “Antígona”, pp. 67-8, Editorial Presença, Lisboa, 1965. Trad. Manuel Breda Simões.

09/02/2019

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“Bissau, 11 de Junho de 1967. Mandaram-me defender a lama ou morrer. Enganei-me. Enganaram-me. É tudo uma extensão para recobrir problemas de herança. E ela lá está, por entre os ramos, a viúva. Com dentes muito brancos, sob o luar tropical. Para apregoar a vitória de Jeová. Estou bêbedo, vou morrer e bato com as mãos na testa…
Como é que eu não tinha percebido a engrenagem?… Eu, que aprendi a ler no almanaque a data dos eclipses, que aprendi outras coisas da ciência, que me apercebo deste imenso bando de esqueletos sem violino, tuberculosos… como é que não percebi logo que os textos sagrados me preparavam a morte? Que todo o cadáver retalhado me incitava ao heroísmo? Que toda a clausura me avisava da espera resignada? que toda a doença me aclimatava para o dever?
E ela ri, no seio de Jeová. É o nosso último encontro. Tenho de escolher: a loucura ou o fuzilamento.
Enlouqueço.”

José Martins Garcia, “Alecrim, Alecrim aos Molhos...”, pág. 128, Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite, Lisboa, 1974. Capa: Henrique Manuel.

08/02/2019

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Poesia e sobrevivência
A poesia portuguesa afirmou-se principalmente desde meados deste século através das revistas e, depois, pelas colecções com que algumas editoras foram desenvolvendo os veios dessa lírica. Se as revistas foram determinantes ao longo dos anos 50, caracterizando-se também um determinado ambiente social e político de cafés, de convívio e de trincheira, a partir de 60 e depois de 70 um certo desafogo económico e cultural reflectidos na vida editorial fez emergir as colecções de poesia. Livro após livro, cada, uma ganhou a sua personalidade, compondo no conjunto uma apreciável biblioteca de grande responsabilidade cultural.
A branca colecção da Ática, a verde e creme da Guimarães ou a rugosa da Portugália sobrevivem ainda hoje nas casas dos nossos amigos. Umas mais resistente, como a da Centelha, mais cosmopolitas, como os Cadernos da Dom Quixote, ou persistentes, como a da Moraes. Na verdade, cada editora procurava prestígio e história, principalmente na edição de poesia. No porto, a Inova, a Limiar e depois a Afrontamento e a Gota d’Água deram-nos excelentes livros, enquanto editoras tão diferentes como a Arcádia, Regra do Jogo, Presença ou Assírio & Alvim mantinham com orgulho as suas colecções, em certos casos já com dezenas de títulos. Desconhecem-se quanto tirava cada edição mas recordam-se as muitas reedições dos Cadernos Dom Quixote, e sei que a Assírio habitualmente ia aos 3000 exemplares de cada título. Se é verdade que andam por aí, já cansados, muito desses livros, a maioria com o tempo esgotou-se e hoje valem dinheiro nos alfarrabistas.
Mais importante: de tantas edições de tanta colecção de tanto nome, sem dúvida fátuos ou turísticos, este empenhamento editorial tomou visível a assunção de excelentes poetas que hoje pairam na nossa vida. Nos anos 80, com a seca, a doença do sobreiro e outras maleitas, veio a morte das editoras de poesia. A Portugália já lá ia; cede depois a Ática e em 1985 o Círculo de Poesia da Moraes, e o projecto da Inova com todas as suas doiradas ramificações, e a Regra do Jogo e os Cadernos de Poesia e Pedra de Canto, e a Licorne e Poesia e Verdade e depois a Rolim e a Fenda, a Centelha, a Plural, a &etc. Hoje a edição de poesia em Portugal recolhe o cuidado de três ou quatro editoras. Há bons poetas com dificuldades de publicar. Se é verdade que nomes como Herberto, Eugénio, Cesariny, Sophia, tiram 3000 ou mais exemplares, o sucesso aplica-se quase exclusivamente aos consagrados. As edições andam pelos 1000 ou 1200 exemplares, para uma venda imediata inferior a 500.
Ocuparíamos agora páginas a descrever razões, tantas são, mas podemos mesmo assim apontar o dedo a um país que de estrada em estrada corre alucinado para uma ideia de progresso há muito posta em saldo pelos países ditos avançados. E indicaríamos depois um ensino falacioso e cada vez mais inútil, uma política cultural que, no mínimo, nos deixa perplexos. Um arrogante desprezo pelo livro. Uma indisfarçável crise do espírito, e crise da palavra.
A poesia é, neste momento, uma ave acossada por patos bravos muito bem colocados num país que há décadas saía das penumbras para logo ficar entontecido com o excesso de luz chegada das «centrais nucleares» europeias.
O quadro só não é mais negro e completamente ocupado pelo desenho de uma multidão imobilizada, de cócoras a ver concursos televisivos, telenovelas e thrillers porque, apesar de terem desaparecidos os suplementos literários dos jornais que em muitos aspectos haviam substituído as revistas grupais de 50, do empobrecimento do debate, da vivência cultural, autores tão diferentes como Novalis, Whitman, São João da Cruz, Baudelaire e Hölderlin tiram hoje 3000 exemplares e rivalizam nos tops com a mais espampanante das ficções. Poesia Toda de Herberto Helder pode orgulhosamente atingir os 5000. Antologias como a de Eugénio Andrade ou de Al Berto vão às dezenas de milhar. Alguns livreiros que antes se recusavam simplesmente a receber poesia (e eu conheço uma boa dúzia de casos destes) hoje abriram-lhes as portas, timidamente dão-lhe um canto da montra e até já a bancada das novidades.
Claro que a poesia, já aqui se disse, sobreviverá sempre às conjunturas e ao abrigo que a cada momento se lhe propõe, mas, que diabo!, num tempo tão apressado, com tantos «itinerários principais» para cada um ir e infelizmente não vir à sua vida, porque é que a poesia em Portugal não pode dispor de um simples carreiro, para chegar, sem tropeções ou portagens, ao coração do seu leitor?”
Manuel Hermínio Monteiro. In “Ler – Livros & Leitores”, n.º 22, Primavera de 1993.

06/02/2019

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Coimbra, 6 de Fevereiro de 1932 Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em mim.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 10, 1941, Coimbra.


05/02/2019

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Coimbra, 5 de Fevereiro de 1943 – Foram quatro gritos de abrir o mundo, mas a enfermeira disse que não tinha sido nada. Apenas um homenzinho que acordara do clorofórmio e dera pela falta de uma perna.”

Miguel Torga, “Diário II”, pág. 122, Coimbra.

01/02/2019

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“Lembro-me, finalmente, da lebre de Joseph Beüys que me recordou aquela outra que parece ter fugido da Bíblia, percorrendo milénios, até entrar novamente nas Iluminações de Rimbaud: «Mal se aquietou a ideia do Dilúvio, / uma lebre parou entre os sanfenos e as ondulantes campânulas / e fez a sua prece ao arco-íris através da teia de aranha. / Oh! As pedras preciosas que se escondiam – as flores que já olhavam».”
Manuel Hermínio Monteiro. In “Ler – Livros & Leitores”, n.º 27, Verão de 1999.


LES
ILLUMINATIONS
APRÈS LE DÉLUGE


Aussitôt que l’idée du Déluge se fut rassise
Un lièvre s’arrêta dans les sainfoins et les clochettes
mouvantes, et dit sa prière à l’arc-en-ciel, à travers
la toile de l’araignée.
Oh! les pierres précieuses qui se cachaient, – les
fleurs qui regardaient déjà.
Dans la grande rue sale, les étals se dressèrent, et
l’on tira les barques vers la mer étagée là-haut com'me
sur les gravures.
Le sang coula, chez Barbe-Bleue, aux abattoirs
dans les cirques ou le sceau de Dieu blêmit les
fenêtres. Le sang et le lait coulèrent.
1

28/01/2019

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“(…) e em 1945 os Americanos inventaram a bomba nuclear e largaram-na sobre uma cidade chamada Hiroxima. O avião chamava-se ENOLA GAY e o piloto explicou mais tarde aos jornalistas que lhe tinha dado esse nome em honra da avó irlandesa porque ela tinha um nome tão engraçado. A explosão varreu a maior parte das casas num raio de três quilómetros e no céu criou-se uma nuvem de fumo que ao longe teve o aspecto de um cogumelo. Para os feridos foi criado na escola local um centro de primeiro socorros e os alunos que tinham sobrevivido à explosão andaram com pauzinhos a retirar vermes das chagas dos pacientes e depois dos pacientes terem morrido levavam-nos em carrinhos de mão até ao crematório. E mais gente foi morrendo nos meses subsequentes de doenças chamadas de enfermidades nucleares leucemia astenia etc. As pessoas que tinham sobrevivido à explosão e também às doenças nucleares metiam medo à população restante porque tinham o aspecto de leprosas e se comportavam como loucas. Muita gente pensou mais tarde que tinha sido uma crueldade escusada da parte dos Americanos terem lançado a bomba nuclear mesmo no fim da guerra mas os estrategas militares diziam que se não a lançassem os Americanos outro qualquer o teria feito porque pelo menos uma vez ela tinha de ser experimentada em condições reais para que no mundo pudesse estabelecer-se o equilíbrio do terror que garantiu que não houvesse uma terceira guerra mundial. E em 1944 os americanos inventaram um boneco em tamanho real chamado RUPERT. O Rupert estava vestido como um pára-quedista e estava recheado de granadas e explosivos e os Americanos lançavam-no de aviões atrás das linhas inimigas e quando os Alemães ou membros da resistência viam o Rupert a descer corriam para junto dele e quando o Rupert embatia no solo explodia e matava todos os que estivessem à sua volta. E em 1918 os Alemães inventaram um canhão que se chamava GRANDE BERTA e tinha um alcance de 128 quilómetros e em 1944 inventaram um míssil teleguiado chamado VERGELTUNGSWAFFE que alcançava uma velocidade de 5800 km/h e devia decidir a vitória final da Alemanha. E em 1947 os Americanos inventaram o avião supersónico e em 1957 os Russos inventaram o satélite artificial e em 1961 mandaram o primeiro homem para o espaço e em 1969 os Americanos mandaram três astronautas para a Lua e quando o primeiro astronauta desceu o escadote para pisar a superfície lunar proferiu a frase histórica ISTO É UM PEQUENO PASSO PARA O HOMEM MAS UM SALTO GIGANTESCO PARA A HUMANIDADE. O engenheiro principal do programa espacial foi um antigo coronel das unidades especiais do exército alemão SCHUTZSTAFFELN que em 1944 tinha inventado o míssil teleguiado chamado VERGELTUNGSWAFFE. Mais tarde houve disputas em torno de saber se o astronauta tinha inventado a frase histórica ele próprio ou se não lha tinha inventado de antemão algum especialista de relações públicas. O míssil teleguiado VERGELTUNGSWAFFE foi fabricado no campo de concentração em Dora e 528 milhões de telespectadores seguiram a alunagem em directo e os políticos e peritos em relações públicas diziam tratar-se de um passo importante para uma comunicação global e para a concórdia universal.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 132-4 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

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O prefaciador de Rimbaud é embaixador em Washington, vemos Baudelaire disfarçado de tomista, Hugo é deposto por Daudet num sucateiro, um tal Chassé chama Jarry um figo, Darwin condenado nos Estados Unidos, Freud arrastado na lama em França, Paul Valéry alça-se a membro da Academia Francesa, enfim, mete-se-nos pelos olhos dentro que a prosperidade ateia os negócios.”

Louis Aragon, “Tratado do Estilo”, pp. 50-1, Antígona Editores Refráctarios, Lisboa, 1995. Trad: Júlio Henriques.

26/01/2019

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“Os prisioneiros de guerra que regressaram à União Soviética foram 2,27 milhões e passaram nos campos de concentração uma média de dez anos isto é se não morreram de exaustão nem foram vencidos por doenças e epidemias. No entanto a causa de morte mais frequente nos campos de concentração foram as frieiras e as gangrenas nos pés porque as pessoas tinham medo de que alguém lhes roubasse os sapatos durante a noite e então dormiam com eles calçados.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 127-8 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

23/01/2019

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Ora porra!

Ora porra!
Então a imprensa portuguesa é
que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.

s.d.

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

22/01/2019

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Coimbra, 22 de Janeiro de 1943 – Há trinta e cinco anos que vivo como um boi resignado à canga, mas ninguém se admire se um dia não puder mais e mandar para qualquer jornalzinho da província (para não envergonhar tanto os amigos), este anúncio:
POETA
Aceita herança acima de 200 contos
Livre de quaisquer encargos."


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pág. 112, Coimbra Editora, 1960.

20/01/2019

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“O meu melhor professor de Literatura, António Bragança, no desaparecido Colégio Almeida Garrett, do Porto, costumava contar-nos uma esclarecedora história. Um célebre escritor português, penso que Eça, estava em Paris no pino do Inverno. Lia atentamente um romance cuja trama se desenrolava nos trópicos e levando tanta caloraça no enredo que chamou o garçon pedindo-lhe um refresco gelado. Ante o espanto do empregado a ver a neve cair no exterior, a alma do livro apoderava-se do enlevado leitor que desapertava a camisa transpirando. Enquanto o relógio dava as horas habituais da parede e os cafés e croissants cumpriam o ritmo de saída de todos os dias e meses, por uma pequena friesta de umas dezenas ou centenas d2e páginas impressas entrava o fulgurante clima africano no café de Paris no centro do Inverno.”
Manuel Hermínio Monteiro. In “Ler – Livros & Leitores”, n.º 25, Inverno de 1994.

19/01/2019

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É favor não sujar o offset!
Grande progresso se anunciou para o nosso «Diário de Lisboa» pela pena do seu Director-Geral Lopes do Souto! Tão grande que o cronista, amodorrado desde há meses, sentiu uma irrecusável necessidade de romper o silêncio, fita de máquina e papel para festejar, na sempre boa companhia que é a deste Jornal, a novidade grande: o offset!
Sim! Vocês já viram bem o que vai ser o offset? Do ponto de vista de quem lê ou, pelo menos, manuseia o jornal, o offset representa, pela primeira vez em Portugal, a possibilidade de não sujar as mãos com notícias frescas. Da fresca data à fresca tinta como as técnicas podem mudar!
Homens de mãos e punhos brancos, o offset não denunciará em vós o hábito de estar a par do que ocorre no mundo e seus quintais. Doravante (melhor: 6 de Outubro chegado) podeis entregar-vos, sem traiçoeira mácula, a esse vício que até agora haveis mantido quase secreto; o da informação. Vietname não sujará a mão! Golos do Eusébio não sujarão a mão! Palavras cruzadas não sujarão a mão (o offset não se responsabiliza pelo eventual derrame do conteúdo da esferográfica…)! Discursâncias (que sacrifício para um jornal que é rápido…) não sujarão a mão!
O OFFSET CONSERVA MAIS BRANCO!
Homens de mãos (honestamente) sujas, não mais podereis mostrar o sujo das vossas mãos como um dramático sinal da luta pela informação! Acabou-se o fadinho, queridos e esforçados autodidactas…
Que bom, que lindo um jornal limpo!
Assim, para rematar esta croniqueta, que ainda suja, propomos que o Diário de Lisboa offseteditado passe a trazer, em cada número, a evidência da sua preocupação de limpeza:
É FAVOR NÃO SUJAR O OFFSET!”


Alexandre O’Neill. In “Diário de Lisboa”, 9 de Setembro de 1971.

14/01/2019

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Paris, 14 de Janeiro de 1938 Ponho-me a pensar nos cinco milhões de homens que formigam nestas ruas. A pensar que, embora todas estas avenida, estas praças, estes monumentos sejam criações suas, o homem perdeu aqui, mais do que noutra parte, as rédeas da sua personalidade, consentindo que a criatura domine o seu criador. Não posso dizer ao certo por quê, mas a impressãao que se tira desta enorme multidão é de que não se trata de gente mas duma grande levada que as próprias ruas canalizam. Tem-se a impressão que a cidade actuou nela como um forte raio X, reduzindo-a a uma transparência humana que toca pelo irreal.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 61, 1941, Coimbra.

10/01/2019

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Actividade Esquisita
Não conheço muitos editores, quero dizer, tenho alguns amigos que são editores. Não sei, em boa verdade, como funcionará a maioria das outras casas editoras. Falo por mim. Com mais de uma década de actividade, ganha-se uma particular visão das palavras escritas que nos rodeiam. Do que aspira ao livro. O livro como ponto de chegada e, depois, o texto multiplicado como os pães do milagre. A metáfora podia ser a da ampulheta em que o produto sólido se pulveriza para descer à base. E a ampulheta é o editor, virando e revirando conforme cada edição. Mas, se o mecanismo é sempre parecido, a substância jamais se repete.
Primeiro capítulo. É verdade que todo o editor aspira a publicar os livros dos autores da sua preferência. Quer tê-los consigo, constituir a sua família. Mas nem sempre é assim. Muitas vezes são os livros que vêm ter com o editor. Alguns procuram-no há séculos, à espera da janela que dá para a rua. Fernando Rojas, Ramon Llull, Walt Whitman ou Novalis quiseram e tiveram em mim essa oportunidade. Com mais ou menos coerência, o editor vai organizando o seu catálogo. No final, ele pode ser visto como um grande cadáver esquisito surrealista. Com inesperadas intromissões, acrescentos, fugas para outras ou novas colecções, os acrescentamentos e as obliterações dos que desaparecem por «esgotamento».
Mas, no quotidiano, o editor é permanentemente bombardeado por um número impressionante de aspirantes a novos escritores. Poucos imaginarão quanto se escreve nos silêncios deste Portugal. Há uma imensidão de pessoas a mexer nas letras e nos sentimentos. A arquitectar poemas e histórias. Depois, enviam as suas obras para as editoras. Ou aparecem pessoalmente.
Guardo algumas histórias curiosas destes encontros. Desde o senhor idoso que traz os seus originais num saco de pó de talco, que o nervosismo e o sopro transformam num indescritível nevoeiro que cresce por todo o escritório, até damas envoltas em perfumes tão caros quanto insuportáveis. Uma outra senhora que envia vinte contos «para compensar o trabalho de ler o seu original». Outro que está no hospital, quase a entrar para a sala de operações, e quer saber com urgência se os seus textos têm, ou não qualidade. Há aquele que chega a trazer 4000 páginas manuscritas para publicação, e o outro que tem a certeza de que haverá, pelo menos, 100 000 pessoas determinadas e ávidas do seu texto, que seguramente «vai vender… que nem pãezinhos». Depois, há os que oferecem «todo o dinheiro que seja necessário» para ver o seu livro lá fora, e também os mais prepotentes, que julgam fazer-nos o maior favor do mundo possibilitando-nos a edição do seu livro que os acompanha há décadas e, quanto a eles, «uma verdadeira obra-prima».
No segundo capítulo aparecem escritores que até já publicaram noutros lados e acumulam uma desconfiança generalizada de que os editores são oportunistas que vivem à custa dos autores. Que falsificam as tiragens. Que é impossível que o seu livro não tenha vendido dezenas de milhar de exemplares, pois pelo menos, todos os seus amigos o compraram. Desconfiam da eficácia da promoção que lhes é feita. Convencem-se de que é o próprio editor a boicotá-los, porque o seu livro não se vê nas livrarias. O pior é que nem disfarçam o ressentimento íntimo de que o editor os explora; «fartando-se de ganhar dinheiro à custa do seu talento».
Neste exemplo caberia Miguel Torga que, até ao fim da vida, persistiu em ser senhor pleno da sua obra, evitando dar lucro editorial a terceiros. Disse-me mais do que uma vez: «Os editores, não me largam. Eu bem sei o que eles querem. Querem ganhar dinheiro à minha custa».
Finalmente, «os mistérios gloriosos». O maior prazer do editor. Senti-o mais de uma vez. A primeira vez foi no metro, nas mãos de um desconhecido em leitura atenta. Um livro que eu sabia ser bom e transportava indecifravelmente uma secreta história editorial que jamais aquele acidental leitor conheceria. Depois, o gozo de cheirar livros frescos de tinta, novos, acabados de chegar da tipografia. Vê-los nas estantes de gente que apreciamos. E surpreende-los expostos, inesperadamente, em montras de países estrangeiros. E receber uma ou outra carta a testemunhar quanto um determinado livro foi importante na sua vida. Ele há tanto mistério a envolver cada livro! Mas isso é já substância para outras histórias.”
Manuel Hermínio Monteiro. In “Ler – Livros & Leitores”, n.º 35, Verão de 1996.

06/01/2019

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“Nasci em Fresno, na Califórnia, em 1908, e frequentei as escolas oficiais da cidade até aos dezasseis anos, altura em que passei a trabalhar nas vinhas e pomares da região. Sempre contei entre os meus colegas de turma rapazes e raparigas portugueses – açorianos, como vim mais tarde a saber, pois parece que poucos portugueses da Metrópole emigravam para a América. Ainda hoje estou para saber porquê. Frank Silveira foi um grande amigo meu e excelente jogador de baseball. Elvira Martins era uma morena muito bonita, cheia de vida e com uma linda voz – se bem que na Emerson School apenas cantasse canções populares americanas e não o fado, que tanto aprecio e ouvi pela primeira vez em Lisboa, em 1949, na Adega Machado. Há português no grande escritor americano John dos Passos, e haverá por certo vários outros notáveis escritores e artistas portugueses na América que não conheço. Foi longa a minha aprendizagem de escritor – e o certo é que durante anos receei que se prolongasse para sempre –: dos meus treze anos, quando comprei uma máquina de escrever, expressamente decidido a tornar-me escritor de profissão, até aos vinte e seis, quando publiquei o meu primeiro livro, The Daring Young Man on the Flying Trapeze and Other Short Stories. Agora, aos sessenta e três anos, sinto-me feliz por dizer que continuo escritor de profissão, que acredito no acto de escrever (mais profundamente do que nunca, colocando essa profissão acima de todas as outras – onde mais poderia acaso coloca-la?) e que continuo a ganhar a minha vida com a pena, se me é permitido empregar tão velha e pretensiosa expressão. Escrevi nos géneros mais diversos – histórias, ensaios, novelas, romances, entremezes, peças de teatro, poemas e canções (música e letra) –, mas creio que sou sobretudo conhecido pelas minhas primeiras histórias e pelas peças de teatro, especialmente The Time of Your Life. Não fiz quanto quisera com o que escrevi (esperava, por exemplo, mudar para melhor a própria raça humana, e nem eu nem nenhum outro escritor teve qualquer influência real e aparente na raça humana em geral), mas sinto-me bastante satisfeito por ter sido um trabalhador honesto e dedicado e por ter escrito até à data 44 livros. E se talvez apenas quatro se encontram realmente vivos na hora actual, já não é nada mau, nem me lamento; antes dou graças a Deus. My Name is Aram é um desses quatro livros.
William Saroyan”
William Saroyan, “O Meu Nome é Aram” Editorial Verbo, col.«livros RTP / Biblioteca Básica Verbo /89», Lisboa, 1972.

03/01/2019

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Em suma, na imensa maioria da sociedade portuguesa não se formou um carácter cívico em harmonia com a vida moderna e fez-se todo o possível para destruir o carácter cívico antigo. Desta deficiência educativa, o sentimento de vida nacional não evoluiu normalmente e resulta um sentimento, desvirtuado em parte, em parte incompleto.”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pp.28-9, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

Porque afinal todos os actos do povo português não são actos de quem agoniza, são actos de quem não sabe, não são escabujos de povo exausto, são actos todos derivados da sua profunda ignorância. Pois que queriam que fizesse um povo que nem sequer sabe ler? Queriam talvez que esse povo fosse resolver a questão social? Queriam talvez que ele se interessasse pelos vastos problemas da filosofia social e se apaixonasse pelos transcendentes ideais da justiça, tal como a concebe e teoriza o homem moderno?”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pág. 37, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

Não; não é necessário recorrer à hipótese inconsciente da degenerescência colectiva, nem a factores antropológicos, mais duvidosos ainda, para explicar o pessimismo nacional. Este nosso doloroso mal-estar ainda não é o paroxismo duma raça decadente, ainda não é o crepúsculo dum Povo. O nosso pessimismo que dizer apenas isto: que em Portugal existe um povo, em que há, devoradas por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre porque a não educam e um minoria que sofre porque a maioria não é educada.”
Manuel Laranjeira, “Pessimismo Nacional”, pp. 40-1, Contraponto, 2.ªed., Lisboa, 1985.

02/01/2019

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Veneza, 2 de Janeiro de 1938 Ora até que enfim, Veneza! Mas esta velha namorada está gasta. Não há corpo de mulher que resista às noitadas de vinte gerações.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 55, 1941, Coimbra.

01/01/2019

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“E em 1999 os amish venderam doze vezes mais moinhos (de café) e velas e batedores de claras etc. do que era costume porque as pessoas temiam que o BUG DO MILÉNIO paralisasse os electrodomésticos e o fornecimento de energia eléctrica. Os sociólogos diziam que o medo de avaria dos sistemas electrónicos que pusesse fora de serviço as televisões e os micro-ondas e as caixas de multibanco era fruto de um milenarismo subconsciente e recalcado e algumas pessoas presumiam que iria tratar-se de um momento fatídico na história da civilização ocidental que levaria ao caos e a convulsões sociais e outras coisas que tais e haveria de permitir à sociedade ocidental libertar-se da ditadura tecnológica e entrar numa nova era que seria harmónica e espiritual e mística. E nalguns países os governos imprimiram reservas de dinheiro e no Canadá o governo organizou exercícios de evacuação de populações e em Inglaterra e na Dinamarca os cidadãos armazenaram reservas de açúcar e farinha na banheira e na Finlândia os farmacêuticos esgotaram os stocks de iodo cuja utilização era recomendada no caso de uma catástrofe nuclear e os Finlandeses temeram que o BUG DO MILÉNIO pusesse fora de serviço os sistemas de segurança nas centrais nucleares russas. Os sociólogos diziam que o BUG DO MILÉNIO fazia parte da lógica do imaginário social da era moderna e que no século XX o mal tinha assumido a forma de algo infinitesimal e que as pessoas já não tinham medo das coisas grandes e complicadas como a locomotiva etc. mas dos átomos e vírus e genes e priões. E os psicanalistas diziam que o BUG DO MILÉNIO no fundo desempenhava na vida da sociedade o papel do parricídio que haveria de permitir o prazer e a luxúria à nova geração tecnológica.”

Patrik Ouředník, “Europeana – uma breve história do século XX”, pp. 114-15 , Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2017.

31/12/2018

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Coimbra, 1 de Janeiro de 1943 – Outro ano. Toda a gente excitada, e, de conhecido para conhecido, esta senha:
– Boas entradas!
– Igualmente! – responde o contemplado.
E lá segue cada qual o seu caminho, com o supersticioso pé direito à frente, não vá o demo tecê-las.
A estafada e monocórdica ária de sempre, que apenas moi os ouvidos de que é por condenação um rói-migalhas, e passa o tempo a reparar nas inocências do homem, e a registá-las.
Ano Novo! Os torcegões que a realidade sofre nas nossas mãos, a ver se conseguimos disfarçar-lhe a crueza! A imaginação colectiva aos sobressaltos, na grata ilusão (na triste ilusão) de que a coisa vai começar agora, – agora que o ano é novo, a idade é nova. No fundo, todo o passado é um erro para cada um de nós. E como ninguém é capaz de aceitar corajosamente os erros e de fazer deles um roteiro de sinceridade, contorna-se o problema desta ingénua maneira: recomeçar. Sem nos querermos convencer de que nada pode deixar de ser como é, porque continuamos os mesmos e, só errado, o caminho é bonito e nos apetece. Recomeçar uma, duas, cinquenta vezes, e chegar à meta com este lamento hipócrita na boca: – Ah, se eu voltasse aos vinte anos e soubesse o que hoje sei!
Que me lembre, apenas Raúl Brandão teve a grandeza e a lealdade de escrever que repetiria o calvário da vida sem lhe alterar o itinerário. Isto sim, isto é de quem entendeu a fundo que a existência não deve ter soluções de continuidade, nem ser prevista. Deus me livre de saber que por certo beijo que roubei em rapaz a uma cachopa da minha terra receberia a bofetada que recebi! A coisa foi maravilhosa por ter sido um jogo, um atrevimento, um risco, e motivar aquela réplica inesperada e ardente!
– «Se eu soubesse…»
Mas como felizmente ninguém pode voltar atrás, nem saber antes de saber, vai de recomeçar vida nova cada novo ano. Cada novo ano que passa a velho logo que se fazem 365 tolices…”


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pp.102-104, Coimbra Editora, 1960.