18/08/2022

Feira do Livro do Porto...

 

 
A livraria Edições 50kg vai estar na feira do livro do Porto no pavilhão nr. 61. Por esta razão, de 23 de Agosto a 14 de Setembro, a livraria estará encerrada. Durante este período poderão sempre contactar por email ou telemóvel.

28/06/2022

Feira do Livro da Maia...

 


De 2 a 11 de Julho estaremos na feira do livro da Maia no pavilhão nr. 9. Durante este período a livraria encontrar-se-á fechada. Esperamos ver-vos por lá.  Cumprimentos. 

28/03/2022

Novidade 50kg...

 

Primeiras Perplexidades de um Homem Vestido de Bacalhau de Manuel da Silva Ramos
Desenho da capa de Von Calhau
Edições 50kg, Porto, Março de 2022.
P.V.P: € 15,00
200 Exemplares
 

Manuel da Silva Ramos ( foto retirada daqui)
 
Von Calhau
 


24/01/2022

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 "A sua pena! Ela ali estava, inútil e abandonada, como a clava de Hércules após a realização dos doze trabalhos portentosos.

Era o galho de uma roseira, cortado no jardim, e que, aparado tôscamente a canivete, tinha o aparo seguro com várias linhas de coser. Era aquela a pena de Teófilo - a formidável pena que produziria dezenas e dezenas de trabalhos cheios de erudição.
Antes de cegar, o infatigável Teófilo chegava a escrever durante dez horas seguidas, enchendo enormes quartos de papel, dum e doutro lado, com a sua caligrafia miúda,  tão fina e irregular.
Quando imaginava qualquer novo trabalho, carregava  para junto da mesa tudo o que pudesse relacionar-se com o assunto a tratar. E, uma vez assim instalado, começava a escrever, a escrever ràpidamente, atirando para o chão as fôlhas numeradas, que depois juntava com facilidade.
Trabalhava a qualquer hora do dia ou da noite. Quando lhe acorria uma idéia, ou lhe contavam um pormenor curioso que pudesse interessar uma obra embrionária,  tomava logo nota em pequenos verbetes que depois guardava em pastas exclusivamente destinadas a cada assunto.
Quando julgava ter os elementos bastantes para a organização do trabalho a realizar,  passava, nessa altura, o seu cérebro a ser o ovário fecundo, onde tudo aquilo tomava forma, vida e vigor. Em casa, na rua, no curto espaço de tempo destinado às refeições, e até no leito  o seu pensamento não deixava um só instante que fôsse  de incidir sôbre a realização do trabalho em projecto."

Gomes Monteiro, "Vencidos da Vida"   pp.118-119. Ed. Romano Torres, Lisboa, 1944.

19/09/2021

06/08/2021

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Leiria, 6 de Agosto de 1939 Sparkenbroke. Nada que se compare com The Fountain; mas ainda assim uma grande coisa. Tinha há pouco acabado de fazer uma leitura do Eça, numa necessidade imperiosa de Europa nesta nossa cardenha das letras. Apesar daquela debilidade almofadada de ironia, fiquei em relativa paz. A cabo, ao cabo, O Crime do Padre Amaro não ficava mal de todo ao lado de Madame Bovary.
Mas, por graça ou desgraça, a Europa nem começa em Leiria, nem acaba em Yonville. Depois de se ler um inglês deste tamanho, é que se vê bem que, quando toca mesmo a quebrados cá na literatura, as autênticas fronteira dela são os montes Urais e o meridiano de Greenwich.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 100, 1941, Coimbra.

29/06/2021

Feira do livro da Maia... de 3 a 12 de Julho... Fórum Maia junto à Biblioteca

 

De 2 a 14 de Julho a Livraria Edições 50kg estará encerrada na rua Faria Guimarães porque estará a participar  nesta feira.

27/06/2021

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Graham Greene, "Viagens com a minha tia", pág. 61, Livraria Bertrand, 1977.

 

25/12/2020

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São Martinho de Anta, Natal de 1940 Quem quiser saber o que é a desigualdade de classes, e não estiver para ler quantas bibliotecas se escreveram sobre isso, pegue numa espingarda, vá à caça, apanhe uma «grade» e regresse a casa ao lado dos companheiros carregados de perdizes.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 178, 1941, Coimbra.

13/08/2020

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 "Volta-se para mim o Fernando, e com aquelle ar obstinado que caracterisa o seu bello, resoluto espirito de trabalhador e de combatente, diz, pouco mais ou menos, isto:

- Publicando o nosso pensamento. Alarguemos o circulo da nossa intimidade; fallemos a quem quizer lêr; inspiremo-nos no ideal do nosso tempo - a Perfeição pela Liberdade; integremos a Arte no Progresso. Talvez isso seja util para os outros, como o é, decerto, para nós. Livremo-nos do convivio litterario, com a sua gente suspeita. Ponhamos de parte os merdas; vamos fallar a almas.

*
Ha vinte e quatro horas que esta resolução foi tomada. Julgo-a rasoavel. Homens da penna, querendo intervir, realisamos essa intervenção com a penna. É esse o campo de batalha do escriptor que, como homem de acção, tem o seu logar reservado em todos os combates.
Estou só. Penso muito a frio. Essa resolução, hei de mantel-a.
Estou farto d'isto, - d'esta gente e até de mim. Provei cenaculos de taboletas generosas: houve charlatães que me illudiram como um papalvo, com os seus meritos de papelão apregoados como prodigios e as suas consciencias de lama doiradas de adjectivos; fallaram-me em apostolado, em insurreição, n'uma Humanidade a redimir entre cantos... Esta revolta, mesmo cochichada, breve se abandonou, e no 《lendemain》, trahido o proprio cerebro por um pataco, já o povo repugnava e a multidão era odiosa.
Alguem que lê isto sabe que não minto, e juro que sinto vergonha, por ter sido logrado por uma certa geração, cem vezes mais estupida do que eu. É isso que eu nunca me perdoarei, e o que faz com que me aborreça de mim proprio, - isso, e os dias que passo sem um grito nem um protesto. "

Fernando Reis - Mayer Garção, "Os Vermelhos - notas de dois refractários, Publicação Quinzenal, nr. 1, pp. 8-9, Lisboa, 1897

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07/08/2020

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Gerês, 7 de Agosto de 1949 – Nada poderá escandalizar tanto o homem médio de hoje, o burguês que se considera, e é, a trave mestra do presente edifício social, do que a afirmação de que será precisamente ele o coveiro dessa caricatura a que chama a civilização cristã. E, contudo, os factos falam por si. Embora cada época se queixe de que em nenhuma outra a degradação chegou a tal ponto, a verdade é que nunca, como agora, uma classe justificou tão completamente o seu fim. Pode-se dar a prova disso de todas as maneiras, mas é talvez na literatura que o caso se apresenta com maior evidência. Enquanto que no romantismo, por exemplo, o espírito era centrípeto, o poeta polarizando, com consciência própria e alheia, o clima moral e intelectual da sociedade em que vivia – um Byron a empolgar a Europa inteira e a ser a sua expressão –, nos nossos dias pode Sartre dizer mil verdades, que toda a gente se negará a reconhecer-se no que ele escreve, a confessar que é assim negra e porca a sua vida. Uma grande, uma trágica onda de mistificação tolda a realidade do nosso tempo. E o indivíduo – o médico, o advogado, o negociante, o funcionário – que tem a alma suja de mil cobardias, de mil aberrações e de mil compromissos, nega-se a reconhecê-lo, a ver n’O Muro a fotografia da sua inconfessada impotência ou secreta devassidão. O espírito deixou de ser um guia e um freio. Na medida em que o seu cristal é um espelho e uma acusação, desvia-se dele o rosto ou quebra-se. Todos querem navegar de luzes apagadas. O contrabando da vida faz-se na escuridão.
Enquanto o homem é capaz de se reconhecer nos próprios erros, o mal não é grave. A tragédia começa quando ele, relapso nos vícios e perversões, em consciência se considera um monumento de dignidade e permanência.
Então, Roma tem os dias contados, e o jogo vai começar de novo.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pp. 36-37, Coimbra Editora, 1955.

06/08/2020

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Troia e as areias brancas, invasoras, palhetadas de mica, avançando a estrangular o corredor d’entrada dos navios, e para além de Troia o mar intermino, com gargalha d’espuma em pelotões sobre os brancos d’areia afogados na agua viva, o mar risonho, o mar supremo, com seus mosqueios de chispas causticas, listras claras zebrando-lhe o azul ventre de carpa, e aquelles fundos d’azul pallido, que ao achegarem-se á rocha vem cambiando até ao verde ultramarino. Abaixo de cada ravina ou convulsão violenta das barreiras, um portinho doce, alcatifado de branco, cheio de conchas e algas, onde romanescos saveiros se balançam: – e um tal silencio, um socego, que as mesmas gaivotas caminham com o acento circumflexo das azas, á procura d’uma exclamação mais alta, p’ra velarem…”
Fialho d’Almeida, “Os Gatos – Vol. V”, pp. 12-13, 4.ª ed., Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, Lisboa, 1921.


14/07/2020

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Leiria, 14 de Julho de 1939 Tenho a impressão de que sequei por dentro. Leio, leio, leio, mas não escrevo coisa com coisa. De resto, de que vale escrever estas porcarias que eu escrevo, se por vinte escudos tenho aqui Charles Morgan à cabeceira?!

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 99, 1941, Coimbra.

12/07/2020

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Durante o confinamento a leitura e releitura da Peregrinação e da História Trágico-Marītima foi uma alegria...


11/07/2020

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"Desde o início, os guerreiros de elite dependiam de ligações a Quioto que requeriam um certo grau de alfabetização cultural. Durante o período de Kamakura, um número significativo de xoguns provinha de famílias nobres de Quioto, sem qualquer identidade militar propriamente dita. Os regimes de guerreiros de Kamakura e depois de Quioto, bem como pequenos governos locais, procuravam talentos entre as famílias nobres de grau intermédio. Assim, não era de admirar que os guerreiros literatos de elite participassem e protegessem a arte nas suas inúmeras formas - desde coleccionar arte e escrever poesia à fundação de templos e imagens budistas e à criação de obras de arte religiosas. A cidade de Kamakura tinha até o seu próprio sistema de templos budistas Zen que reproduziam o de Kyoto.
Para guerreiros com ambições a títulos associados à corte, escrever era essencial para interagir com a nobreza de elite e com o clero. Contudo, não devemos pensar na poesia no sentido moderno do termo: como uma actividade de lazer, um passatempo sem outra função que não fosse tecer comentários sobre a sociedade contemporânea. A poesia, no Japão pré-moderno, podia ser usada para comentar acontecimentos correntes, mas, mais importante que isso, a poesia demonstrava o próprio conhecimento da literatura chinesa e japonesa. Escrever bem, em termos de conteúdo e de forma - a caligrafia também interessa -, era um meio de os nobres de Quioto ascenderem profissionalmente. O monje Jien trocava poesias com Yoritomo, o que deu origem a uma relação mutuamente benéfica; Jien precisava de garantir direitos para as suas terras, e Yoritomo queria obter informações através dele. As pessoas também escreviam poesia juntas, como uma actividade social, associando poemas entre si; um cavaleiro de elite podia ser exposto à humilhação pública se não conseguisse escrever devidamente."

Michael Wert, Samurais - Uma história concisa, pp. 66-67, Esfera dos Livros, Lx, 2020.

09/07/2020

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Coimbra, 9 de Julho de 1949 –Em conversas com um amigo, discutimos esta manhã se a táctica que nos resta não será enveredar pela solução do século XVIII. Livros sem nome de autor, impressos clandestinamente
Mas o anonimato meteu-me sempre confusão. Sou um homem directo, de jogo franco, descoberto, amigo de pegar o toiro pelos cornos. Além disso tenho da arte uma ideia individualista, cada pedra da catedral marcada com a sigla do pedreiro que a lavrou.
É claro que, em última análise, votarei pela catedral contra a assinatura do canteiro…
Todas as catacumbas são legítimas.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 33, Coimbra Editora, 1955.

04/07/2020

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Coimbra, 4 de Julho de 1949 – Fazer uma literatura o mais perto possível da clandestinidade, mas publicável, é a única esperança de salvação que resta ao artista. Em guerra com o presente, mas impressa nele, a sua obra poderá ter certa grandeza. Mesmo que não consiga os louros que se dão aos puros guerrilheiros, que se coroam, mas que se desarmam, talvez conquiste a simpatia que se dá a quem renega o seu tempo, nem o quer vender ao futuro.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 31, Coimbra Editora, 1955.

27/06/2020

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"PAPOS E MILONGAS

DIZIA UM
Meu lunfa, lalau azarado está aqui. Fiz um otário com cinco giripócas, dois enforcados e um abobrão; depois mandei a chuca de uma coroa, que só tinha uns picholés, mas um James Bond estava na minha cola e, quando eu quis fazer o esquinaço, fui guindado. O tiruncho me tacou o bracelete e eu fui falar com o majurengo. Positão. Entrei no flagra. O papa-gente, na metralhadora, era uma coisa.
Resultado: Águas de Carandiru, meu irmão da ôpa.

DIZIA O OUTRO
Tu és um vagau pé de chinelo. O bonzão aqui, só mete a mão em combuca, por um pororó leguete; nem sou do espianto, nem do escruncho, nem do atraque. Meu negócio é tomar na maciota. Sou vigário linha da frente, meu chapa.
Os estácios entram na minha, fácil, fácil. O meu pla é gostoso. E até hoje não caí do cavalo.
Manja essa. Larguei o violino na mão do judeu do brexó, que me passou às mães, um arame firme; depois deixei a guitarra com o portuga do buraco quente, que abonou o papai com mil cruzeirão.
Como tu vê, tou largando a minha brasa, na praça, e não vou entrar, caindo do burro.
Para mim, na tiragem só dá ôlho de vidro.

E O OUTRO
Pois eu, meu chaporeba, sou da marijuana. Fatura horrores ali no lixão. Numa só pavuna eu marreto vários pacáus, e cada fininho vale um Santos Dumont. Os tiras estão sempre de olofotes, mas o vivaldino tem vagólio na campana.
Até hoje, só puxei uma, na casa do cão. Foi quando a Excelência me tacou três anos de galera e dois de medida.
Mas agora estou na libertina e o negócio é levantar uma nota traficando a xibaba e, se os cherloques meterem uma escama em cima, tá na cara; um vai amanhecer com a bôca cheia de formiga.
Morou?
Ziriguidum pra você.

O OUTRO AINDA
Estás por fora, ó ligação. Vou salivar. Cruzei com uma mina e quase entrei de gaiato.
Apanhei meu pé de borracha e fui sassaricar pela aí. Tirei linha com uma ragaza e ela gamou na hora. Se mandamos pro esquisito. O hotel das estrêlas tava legal às pampas. Bitoca vai, bitoca vem, tu já se mancou, né? Mas na hora da onça beber água, lá se vem os mega de cara comprida. Positório. Partimos pruma candonga, que não foi bolinho, não. No meio da confusa a muxaxa deu o pirolito e o vagolino aqui, teve de se rebolar, porque os cavaleiros da meganha entraram firmes de rabo de galo.
A dança de rato engrossou. Dei uma na tampa do milico, que o escamoso ainda está rodando; depois me arranquei no caranguejo e recebi uma chuva de azeitonas quentes; quase me queimaram as antenas.
Meu liga, enfrentar a raça não é mole, não.

DEPOIS O OUTRO
Vê se te manca, ó migué. Pra mim êsse papo é furado. Se quiseres um papo firme, mora na minha: Eu já puxei um môfo. Já fui, várias vezes cidadão Carandiru. Nunca fui da moleza. Meu negócio era tomar na marra, e nunca dei arrêglo a tira ravêsso. Já topei cada dança de rato de fechar o tempo. Arribite estourou na minha telha que nem pipocas no tacho. Quase me vestiram o camisolão.
Mas hoje tou no cachimbo da paz. Tou limpo com os homens. Dou um duro lavando cavalo cego, pra dar uma papa de bom pra minha cachanga e os cagasebo.
Larguei mão de ser vago-mestre. Pendurei as chuteiras."

Felisbelo da Silva, "Dicionário de Gíria dos Marginais". Editora Prelúdio, São Paulo, s/d.

25/05/2020

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Coimbra, 25 de Maio de 1949 – O Marquês de Sade. Um calafrio que só as leituras proibidas dão. A gente volta cada página arrepiado, com a sensação de que está a meter a alma no Inferno. E é essa inquietação que todos os livros deveriam provocar. Uma incerteza, um pavor crescente, um medo de cada vírgula. A segurança burguesa de que as suas leituras foram prèviamente policiadas, e de que tudo o que soletra é castílhico, canónico, arcádico, só pode degradar o espírito. O homem necessita do pecado para viver, como de especiarias para comer. Julgo mesmo que o futuro se esforçará por contrariar cada vez mais a sonolência beócia das páginas cor-de-rosa. Em lugar de pudins, livros com dinamite dentro.
Sade. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, e li-o com a emoção dum garoto que está a roubar peras num quintal. Quanto à pornografia, há comunicados oficiais piores.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 22, Coimbra Editora, 1955.

19/05/2020

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Coimbra, 19 de Maio de 1949 – Cansado. Não de escrever, nem de lutar, mas de correr atrás do cão que manqueja. Passa-se a vida a desfazer teias de aranha. Por detrás de cada resistência não está nada.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 18, Coimbra Editora, 1955.

18/05/2020

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Coimbra, 18 de Maio de 1945 Não há palavras para deixar testemunho de certas dores e certas humilhações. Por mais que se imagine, não se pode fazer ideia do que seria a vergonha dos filhos de certas épocas, ofendidos na dignidade de homens e cidadãos. Quando o futuro quiser saber o que se passou neste tempo, a História há-de dizer coisas de arrepiar os cabelos. Matanças, campos de concentração, o espesinhamento metódico de tudo quanto era limpo e tinha uma significação luminosa. Mas nada disto dará uma pálida ideia do que foi a tragédia de viver agora. Um escarro na cara não tem expressão. Sente-se.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 96, 1954, Coimbra.

05/05/2020

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Lisboa, 5 de Maio de 1944 No Jardim Zoológico. Um leão magnífico no cio, e duas leoas, uma absolutamente em menopausa, e outra ainda válida mas inapetente. E então foi a coisa mais espantosa que se pode imaginar: aquela força maciça e soberana, irresistível, a gemer humilhada diante duma fêmea desdenhosa. Os músculos queriam ter firmeza, mas amoleciam; a juba queria ter divindade, mas iriçava-se de despeito; o rugido queria ser trovão, e acabava num ronco libidinoso e pedinte. E no meio desta caricatura aparecia o sexo, vicioso, pornográfico, inútil e repugnante como qualquer dos pedaços de carne da alimentação, desprezados pelo chão da jaula.
De olhos fitos no leão, o meu instinto de animal menos poderoso acompanhou com ânsia durante largo tempo aquela degradação. E ou fosse cansaço, ou real entendimento do que significava o meu triunfo, o que é verdade é que o leão chegou-se a um canto, deitou-se, e, como que envergonhado de mim, escondeu a cabeça.
Haverá na natureza o sentido do ridículo como em nós?

Miguel Torga, “Diário III”, pp 36-37, 1954, Coimbra.

22/04/2020

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Coimbra, 22 de Abril de 1949 – O homem citadino não consegue continuadores. O político julga-se insubstituível; o literato cuida que depois dele ninguém mais saberá escrever; o industrial pensa que o seu génio empreendedor estancou as fontes da habilidade comercial.
Só o camponês deixa herdeiros. Exactamente porque nenhum homem da terra se considera excepção, pode ensinar naturalmente ao filho todas as aquisições da sua experiência, e torná-lo um igual e um sucessor.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 13, Coimbra Editora, 1955.

31/03/2020

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"Quase todos os viajantes que no século XVIII escreveram sobre os costumes em Portugal mencionam a natural familiaridade dos portugueses - e das portuguesas em especial - com os piolhos. Talvez a estranheza manifestada provenha mais da 'catança' que todos faziam sem qualquer rebuço ou ocultação do que propriamente da existência desses parasitas nas cabeças de homens, mulheres e crianças. Ora tal profusão desses insectos não era exclusiva dos portugueses. No que respeitava à nobreza e à burguesia ela provinha do uso das cabeleiras nos homens e dos penteados nas mulheres, e em toda a Europa se usavam cabeleiras e tais penteados, certamente com os mesmos riscos. As cabeleiras eram caras e quem as podia ter em número suficiente para as substituir, a fim de serem tratadas, acumulava as condições de criação dos insectos; os penteados das mulheres, pela quantidade de polvilhos, de pomadas e de postiços, penteados que se não desmanchavam todas as noites, cabeleiras que se não lavavam, faziam de cada cabeça um caldo de cultura. Por isso o italiano Vittorelli escrevia satiricamente: "A senhora alimenta no seu topete um batalhão secreto e é tal a quantidade de habitantes que muitos se tornam cavaleiros andantes." Portanto, o que acontecia aos portugueses da nobreza e da burguesia era o que, em maior ou menor escala, sucedia em toda a Europa e especialmente nos países do Sul, mais quentes.
Quanto às classes populares, independentes das modas mas sujeitas aos costumes, a devastação dos insectos fazia-se moderadamente, pois era crença comum que o piolho 'limpava' o sangue. A 'catança', em uso tanto nas classes mais elevadas como nas classes populares, era, ao mesmo tempo, uma operação de saneamento e de voluptuosidade."

Castelo Branco Chaves, "Os livros de viagens em Portugal no Século XVIII e a sua Projecção Europeia, pp. 38-39, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.

20/03/2020

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Acatando as medidas de contenção que a DGS apela para fazer face ao surto do novo corona vírus, a Livraria Edições 50kg opta por privilegiar a venda de livros através dos meios digitais e a respectiva distribuição pelo correio com os portes oferecidos para o território nacional. Durante este período incerto estarei na livraria, no horário habitual, apenas a executar trabalhos de encadernação. Saúde e cumprimentos a todos. Obrigado.

Rui Azevedo Ribeiro. 

Instagram: #livrariaedicoes50kg

06/03/2020

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"A minha vida foi tão extraordinariamente infeliz que não podia acabar como a da maioria dos desgraçados. Quando se ler este papel, eu estarei gozando a minha primeira hora de repouso. Não deixo nada. Deixo um exemplo. "

Camilo Castelo Branco, 22 de Novembro de 1886.