24/01/2022

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 "A sua pena! Ela ali estava, inútil e abandonada, como a clava de Hércules após a realização dos doze trabalhos portentosos.

Era o galho de uma roseira, cortado no jardim, e que, aparado tôscamente a canivete, tinha o aparo seguro com várias linhas de coser. Era aquela a pena de Teófilo - a formidável pena que produziria dezenas e dezenas de trabalhos cheios de erudição.
Antes de cegar, o infatigável Teófilo chegava a escrever durante dez horas seguidas, enchendo enormes quartos de papel, dum e doutro lado, com a sua caligrafia miúda,  tão fina e irregular.
Quando imaginava qualquer novo trabalho, carregava  para junto da mesa tudo o que pudesse relacionar-se com o assunto a tratar. E, uma vez assim instalado, começava a escrever, a escrever ràpidamente, atirando para o chão as fôlhas numeradas, que depois juntava com facilidade.
Trabalhava a qualquer hora do dia ou da noite. Quando lhe acorria uma idéia, ou lhe contavam um pormenor curioso que pudesse interessar uma obra embrionária,  tomava logo nota em pequenos verbetes que depois guardava em pastas exclusivamente destinadas a cada assunto.
Quando julgava ter os elementos bastantes para a organização do trabalho a realizar,  passava, nessa altura, o seu cérebro a ser o ovário fecundo, onde tudo aquilo tomava forma, vida e vigor. Em casa, na rua, no curto espaço de tempo destinado às refeições, e até no leito  o seu pensamento não deixava um só instante que fôsse  de incidir sôbre a realização do trabalho em projecto."

Gomes Monteiro, "Vencidos da Vida"   pp.118-119. Ed. Romano Torres, Lisboa, 1944.

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