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26/09/2019

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Coimbra, 26 de Setembro de 1949 – Blake. Uma noitada de poesia e loucura, de que amanheci tonto e maravilhado. Nunca me aproximo deste homem sem que saia de ao pé dele meio maluco também, carregado de visões angélicas. Há outros poetas que admiro mais, e de cuja obra posso tirar um alento mais consciente e positivo. Mas nenhum me seduz tanto como este doido que nunca chegou à perdição de Hölderlin, e que pôde levar ao fim, intacto, o cristal duma vida de poeta possesso. Na sua fonte torrencial podem refrescar-se ainda todos quantos acreditam que nenhum pudor, nenhum limite e nenhuma norma devem coagir o artista.
A nossa poesia não tem loucos. Balisa-a um sentimentalismo lúcido de craveiro estacado e florido no seu poial. Só Gomes Leal se desbordou, mas sem grandeza. Por isso o superlúcido Pessoa, através de Walt Whitman, veio mergulhar neste brumoso inglês as raízes Ávidas de cósmico e de inorganizado.
A minha dúvida sobre o nosso génio nutre-se destas evidências. De companhias como as de Blake emerge-se com estrelas agarradas aos cabelos; do compadrio com Garrett sai-se com as asas depenadas.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 50-51, Coimbra Editora, 1955.

06/09/2019

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Coimbra, 6 de Setembro de 1949 – Só me vem roubar tempo e maçar-me. Mas recebo-o sempre com deferência, e ouço-o com a melhor atenção que posso. Com todos os seus defeitos, é um leitor. Um homem capaz ainda de se debruçar sobre um poema, atento e enlevado horas a fio. A vida levou nos seus braços velozes a calma dos dias passados, que dava para fazer passeios, pelos campos e pelos livros. Agora reduziu tudo ao essencial, ao caldo e às batatas, e só verdadeiros heróis, sujeitos deformados e anacrónicos, têm a necessidade de ler e meditar. Por isso é preciso acarinhar estes fenómenos. E não tanto pela arte, que, afinal, se não é precisa não tem nada que fazer no mundo, mas por eles, que são doentes, diferentes, condenados paladinos duma causa perdida.”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 44, Coimbra Editora, 1955.

23/08/2019

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Guimarães, 23 de Agosto de 1949 – A Penha cheia de cruzes e memórias. Estupor de país! Não tem um sítio bonito, que lhe não ponha logo um Cristo e um Gago Coutinho!
Ó senhores! deixem as fragas em paz! Deixem os montes à solta! Não canonizem nem patriotizem tudo! Conservem um bocadinho da natureza na sua virgindade natural, quanto mais não seja para que Deus e os heróis se não sintam constrangidos, por modéstia, em toda a terra lusa!”

Miguel Torga, “Diário V” 2ª ed. Revista, pág. 42, Coimbra Editora, 1955.

07/08/2019

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Caldelas, 7 de Agosto de 1945 A primeira bomba atómica. Que maravilhoso bicho, o homem! Teimou, teimou, teimou, e descobriu a pedra filosofal!

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 110, 1954, Coimbra.

30/07/2019

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S. Miguel de Seide, 30 de Julho de 1943 Este desgraçado Camilo nem na morte tem descanso, entendo por descanso uma camada de cinza leve a cobrir pela eternidade fora as agruras mais pungentes e os instrumentos mais aguçados da tortura de cada um. Miserável em vida, miserável continua na lembrança do país que o viu nascer e lhe perpetuou o nome escancarando aos olhos da posteridade as suas domésticas misérias. É difícil a uma nação que desconhece ou despreza os seus grandes homens em vida doirar-lhes depois a memória. Se viveram em pocilgas, mal poderão depois ser relembrados em castelos, a não ser nas academias, onde a hipocrisia supre tudo, com carpideiras oficiais, louros falsos e mármores de gesso. Mas há uma maneira decente de sanar as indecências: é esquecê-las. É passar um pano pela ardósia, e não falar mais nisso. Agora julgar que se fez qualquer coisa de limpo eternizando a privada dum génio, é que me parece um crime. A função duma memória destas é não deixar que a poeira dos móveis, dos soalhos e dos tectos simbolize a indiferença dos vindouros. É manter limpa e aliciante a presença do criador diante dos olhos novos de quem vem, de maneira que o eterno brote naturalmente do cotidiano, como a beleza brotava da sua pena. Da casa dum poeta é preciso que saia poesia. E se não sai, é urgente arrasá-la. Não é o Camilo do Amor de Perdição que aqui está vivo e revelado. É um inválido, pobre e desprezado português que não escreveu coisa alguma. Via mal, usava umas palas negras, deu um tiro na cabeça, etc., mas não se vislumbra que tivesse génio nem que fosse um dos maiores desta terra.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 13-15, 1954, Coimbra.

28/07/2019

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Gerês, 28 de Julho de 1945 Thomas Mann. Os Buddenbrooks. Um romance, sobretudo uma cultura. A propósito de uma tísica pulmonar ou de um negociante de cereais, este homem tem artes de nos meter num tal emaranhado de ideias, de conceitos, de cogitações, que a vida passa a ter não apenas o seu caudal de lances e de emoções, mas uma beleza maior, feita da fisiologia íntima do saber. Eu não sei se qualquer novela de terceira não terá mais vida física, muscular, um alento possìvelmente mais cotidiano e mais aliciante. Aquela declaração de amor da Montanha Mágica, feita através de uma radiografia, ou a descrição da febre tifóide, aqui, são flores que nascem de uma técnica literária magistral, mas, mais do que isso, de conhecimentos que hão-de sempre parecer-nos sagrados e secretos. Ai da humanidade quando de todo as suas pitonisas e os seus feiticeiros se forem! Com razão alguém chamou às artistas de cinema as deusas da nossa mitologia. Contudo, é um belo espectáculo ler um livro assim. Tem a gente a impressão de que toda a Grécia e toda a Europa se diluíram na caixa de compor da tipografia.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 109, 1954, Coimbra.

14/07/2019

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S. Martinho de Anta, 14 de Julho de 1946 Mesmo que se não queira, uma carruagem de comboio é um lar temporário. Os nossos vizinhos do lado chegam-se a nós como irmãos, e os da frente bafejam-nos como avós. Se a viagem é curta, a intimidade é discreta e em certa medida higiénica. Mas se é longa, se o percurso vai do Porto ao Pinhão, acaba-se na confidência da urina e das eructações. Como acontece na mais respeitável família, há de tudo, ali em materia de humanidade. A velha sabedoria de que temos cinco dedos em cada mão e nenhum é igual, também está certa num trem. Todos os passageiros que vinham no compartimento em que hoje viajei verificaram isso à saciedade.
O casal da demonstração entrou em S. Bento. Ela tinha cara de má, viu-se logo, mas trazia um filho ao colo, e ficou, portanto, ilibada em princípio de toda a mácula. Mulher parida é mulher absolvida. Ele tinha apenas um dente podre. De repente, mesmo antes de o comboio se pôr em andamento, começou o barulho. Ela encheu o compartimento de insultos, e ele imitou-a. O filho dormia.
Como ainda não houvesse tempo para cada qual se compenetrar dos seus deveres, o sobressalto foi inevitável. A ideia de uma outra carruagem e de uma outra família passou pela cabeça de todos. Mas o comboio estava repleto e havia malas. Por isso, assentou-se na resignação.
No meio da ansiedade que qualquer renúncia implica, a voz da máquina, a avisar que partia, foi como um penso. O movimento areja o corpo e o espírito, e os dois desavindos não podiam fugir à regra. A escuridão do túnel que veio logo, ajudou esta esperança. Mas era uma miragem. Apenas a luz do sol escarolou aquela sala doméstica, o conflito continuou.
Lógicamente a família inteira afilou então os ouvidos a fim de perceber a razão da contenda. Já nos outros compartimentos havia risos de troça, e era preciso documentar aquela solidariedade que o acaso impunha. Tarefa muito difícil. Os fundamentos da zanga remontavam aos tempos pré-históricos da vida particular dos dois, quando não eram ainda nossos parentes.
Uma coisa se viu claramente: é que todos, à uma, se pusera ao lado do homem. Primeiro, porque gritava menos; segundo, porque não era ele que limpava o rabo do menino, embora ajudasse.
Por alturas de Mosteirô, já quando não havia mais insultos no dicionário nem lágrimas nos olhos da Madalena, o mistério começou a aclarar-se.
Estava na base do conflito a sogra, que perdera o comboio, trazia contrabando, e talvez tivesse sido presa. O rapaz, claro, sofrera; a mulher rejubilara. Daí a desarmonia.
O resto da família compunha-se de uma velhota corada e simpática, que passou o caminho calada, a encher o biberão do menino. Viu o pai aflito naquela prática, pediu licença, e fez ela o serviço. Ninguém lhe agradeceu a gentileza, mas ela, mesmo assim, continuou a tarefa. Toda a gente deve trabalhar, numa casa.
Mesmo ao lado da fera, sentava-se um cavalheiro de olhos azuis, alto, que era o Gary Cooper por uma pena. Até na filosofia se pareciam. Quando um novo passageiro entrou, como a megera ocupava dois lugares, o pobre ficou apertado entre duas forças hostis. A que vinha, que queria espaço, e a que estava, que não cedia espaço. Mas não se desconcertava. Manteve um sorriso compreensivo nos lábios, esperou, e quando a Eva por sua recriação tirou de cima do banco a cesta dos cueiros e se compôs, passou-lhe pelos olhos o làmpejo mais irónico e mais fino que vi.
Havia ainda um rapaz ruivo, que tentou alegrar aquela tristeza com uma gaita de boca, mas desistiu, e um sujeito gordo que comeu bolos de bacalhau todo o caminho.
Os polos da família, porém, eram o casal, e também o filho, que parecia um rato, e chupava na teta do frasco como um aspirador mecãnico.
Ninguém olhava sequer a paisagem, que entrava pelas janelas, verde e generosa. O rio ia ali ao pé na sua pobreza doirada, e a estrada de Rezende, do lado de lá, fazia piruetas na encosta. Em vão. Lembro-me ao todo de ver um cacho de malvasia pendurado numa ramada. Tal era o constrangimento!
Na Régua, o rapaz foi telegrafar à mãe. E a mulher ficou finalmente só, sem alvo para esvaziar aquela bílis que não tinha fim. Ferrou, por isso, os olhos no chão, e estendia de vez em quando a chupeta à senhora corada, que se apressava a enchê-la sem dizer palavra.
Mas o comboio pôs-se em andamento antes de o rapaz aparecer. E a mulher, que lhe tinha dito de todas as maneiras que a deixasse, que não lhe pusesse mais os olhos em cima, que maldita a hora em que o conheceu, começou aos gritos. Todos lhe garantiam que o homem vinha atrás, noutra carruagem. Nada. O Gary Cooper, manhoso, explicou que o vira passar para a ambulãncia. Pior. As lágrimas inundavam tudo.
No Ferrão, o desaparecido apareceu. E todos esperaram ver finalmente, a luz da harmonia e da paz raiar entre aquelas almas. Qual o quê! Uma girândola de insultos coroou miseràvelmente a cena.
Por fim, já quando não havia esperanças, o homem descascou um pêssego, ia a metê-lo à boca, mas suspendeu o gesto e ofereceu-o à mulher. E o milagre deu-se. Como no paraíso, tinha de ser um fruto a uni-los para o bem e para o mal.
E foi então que eu deixei aquele lar que durou quatro horas, acompanhado de um adeus compreensivo da senhora corada e de um olhar inteligente do Gary Cooper.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 183-187, 1954, Coimbra.

05/07/2019

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Coimbra, 5 de Julho de 1946 Na tipografia, a ver trabalhar lado a lado máquinas impressoras, desde o velho prelo renascentista até à última rotativa americana. O prelo já só tira provas; mas dele em diante o número de folhas vai subindo até ao infinito. Não são, porém, as características de rendimento que, a meu ver, separam significativamente os vários modelos e espelham a constante trajectorial de toda a criação humana. A ideia de Gutenberg não mudou profundamente na sua essência, porque, ao fim e ao cabo, estamos sempre diante de aparelhos de imprimir caracteres em papel, e o maior ou menor número de exemplares conseguidos numa unidade de tempo diz respeito apenas a um aperfeiçoamento de articulações. O que me parece ter realmente interesse na comparação destas realizações é a arquitectura aparente de cada uma. O prelo pode ser comparado a uma capela românica, sem nenhum ornamento e sem qualquer desvio da intenção original. Há uma simplicidade genial na sua estrutura, que lhe dá uma beleza recolhida e perene. Mas já na máquina seguinte esta singeleza se perdeu, e qualquer coisa de flamejante perturba a serena criação da primeira. No último modelo, então, estamos caídos no barroco integral, pasmados e ajoelhados perante um número infinito de rodinhas, de parafusos, de aspiradores, de cilindros e de fios. No colosso que há-de vir, nem vale a pena falar, de tal grandeza será o delírio…
Quanto aos operários que manobram estes engenhos, os que movem o prelo estão numa espécie de fraternidade imediata com ele, que lembra a pureza das relações com Deus na tal sé de arco redondo, onde o corpo se sentia pelo menos tão seguro como a alma. No gótico já pouco desta comunhão se mantém. O espírito sobe, mas a carne desce. E é pouco mais o que acontece na máquina seguinte. Uma vez que foi possível aplicar-lhe uma polia, o impressor começa a pairar naquele movimento como a sombra de um defunto. Na rotativa actual, é de ver, o homem perdeu inteiramente o pé na realidade, e, à semelhança da posição do crente nas igrejas setecentistas, é já só aos ornamentos que os seus olhos ficam atidos. Basta-lhe carregar num botão, para que a sua desumanização comece.
Por ter esta ânsia de chegar ao seu barroco imaturamente, é que a civilização mecânica corre o perigo de se perder ou de perder a humanidade. Matam a cabeça e o corpo equipas de sábios a conceber um Spitfire, e ainda ele está no estaleiro já se precisa dum Meteor! Exactamente o que aconteceu com o cinema, que, de sofreguidão, se devorou. Parte da humanidade não tinha acabado sequer de abrir os olhos para a maravilha (e em Portugal a maior parte das pessoas nem diante dos olhos a tiveram), e já a maravilha estava na sua decadência!
A máquina é dos mais perfeitos milagres do nosso tempo. Se não fosse ela, que oporíamos nós à Grécia, nós que não fomos capazes de uma filosofia nova, de uma arte nova, de uma plenitude espiritual e física que se lhe comparem? Mas, como todos os milagres, tem o seu perigo: o de a gente pôr neles uma fé tão cega que não fique lugar para a presença céptica da razão que os fez.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 178-180, 1954, Coimbra.

24/06/2019

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Coimbra, 24 de Junho de 1947 Acabar com a ideia da morte. Integrarmo-nos na natureza, para que, aos horrores das penas temporais, não juntemos ainda o castigo das eternas. O homem é, ao cabo e ao resto, um animal. Sofra pois como animal, e não como deus.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 45, 1953, Coimbra.

17/06/2019

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Coimbra, 17 de Junho de 1946 A leitura do último volume do Journal de Gide fez-me pensar mais uma vez no conteúdo do meu Diário. Por que razão profunda eu o escrevo e publico, e que interesse confessional ele tem que possa atrair e lisonjear aquele público que se masturba na ilusão de ser em certas horas o confessor do artista? A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica. Só uma mentalidade Byroniana pode conceber o absurdo de se julgar polo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. O masoquismo de Rosseau tem esta base. Ora se, apesar de tudo, um romantismo residual existe necessàriamente em cada artista (e emprego o termo, não como chancela de escola, mas como marca de qualidade), o certo é que ninguém responsável se coloca hoje numa posição tão ridícula.
Neste jornal de Gide, por exemplo, há um doseamento quase terapêutico do íntimo e do público, de maneira que nem o primeiro seja um estendal doméstico, nem o segundo uma lisa mistificação. Passadas pela oficina, as mazelas vestiram-se de uma túnica literária que as transfigura em motivos de arte e curiosidade.
No meu Diário creio que há muita literatura, também. É certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obsecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na minha razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias, quando na verdade estava cheio de força e alegria.
Mas quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe tão-pouco de artista que ignora a falta de sintonização do estado receptivo com o estado de criação? De resto, um diário não é necessàriamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo que se queira. Que nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me absurdo. Pela minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em mim, evitando-lhe o espectáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de silêncio. No diário de Amiel foi preciso mondar muito, e mesmo assim o que escreveu ficará sempre como um documento clínico, história patológica de um tímido, e não obra literária, aspiração de todo o criador.
Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.

Miguel Torga, “Diário III”, pp. 172-174, 1954, Coimbra.

15/06/2019

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Coimbra, 15 de Junho de 1945 O primeiro pedreiro que quebrou o arco, esse é que eu queria conhecer…
A conversa girava à volta do problema da criação, no seu aspecto individual e colectivo.
– Então mas a catedral não é precisamente uma prova irrefutável da arte por equipas? E Shakespeare e Camões e Goethe não se fartaram de construir sobre materiais carreados por outros?
– Embora. Entro na Sé Velha ou na Batalha, e digo: Aqui, o génio de tudo isto está na padieira da porta. Quem arredondou ou ogivou, esse é que tem a glória. Quanto ao Camões e aos outros, por cada cena que já estava imaginada antes deles, menos um valor. E tanto se me dá que me chamem individualista, como não. Enquanto não aparecer uma escola de ginástica que fabrique um Nijinski, em arte sou pelo dom e pela predestinação.

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 101, 1954, Coimbra.

19/05/2019

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Coimbra, 19 de Maio de 1946 É quase inacreditável que eu tenha nascido aqui! – dizia-me
há tempos um artista amigo, diante dos casebres serranos da sua terra. E acrescentava: – Como isto me é estranho, hostil e incompatível com o hotel em que vivo!
E eu lembro-me de vez em quando daquelas palavras, mas para as aplicar precisamente ao contrário. Sentado a certas mesas, no meio de certa gente, e enrodilhado em certas situações, digo eu:
– É quase inacreditável que eu esteja aqui! Como me é estranho, hostil e oposto à choupana onde queria e devia viiver!

Miguel Torga, “Diário III”, pág. 168, 1954, Coimbra.

18/05/2019

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Coimbra, 18 de Maio de 1947 A maior desgraça que pode acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar pela vida. Cora-se de vergonha, depois, diante das ingenuidades impressas, que são cueiros sujos e pretendem ser livros. Só a experiência, a dor e o trabalho trazem a dignidade que uma obra literária exige. Mesmo que não se tenha génio, pode-se, então, ter compostura. E seja qual for a duração do que se escreve, uma coisa ao menos os vindouros poderão respeitar: a nobreza do que vão ler. Mas poucos sabem esperar pela hora da maturação. E antes desse livro curado pelo fumo da vida, vêem-se quase sempre meia dúzia de outros, infantis, imbecis, esquemáticos como o bê-á-bá. Penitet me – creio que é a fórmula do arrependimento.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 41, 1953, Coimbra.

12/05/2019

Da série as “traições” da Musa…


Coimbra, 12 de Maio de 1947

POEMA

Foi um poema casto que eu pedi
à minha Musa.
Um poema com bibes e meninas,
e ternura no meio.
Mas quando a imagem veio,
e eu, deslumbrado, a olhava,
a menina mais velha namorava,
e as outras, ao lado, aprendiam
a instintiva lição…
Minha Musa, o poema?
Este é o mesmo poema,
numa outra versão.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 36, 1953, Coimbra.

05/05/2019

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Coimbra, 5 de Maio de 1947 Esta rapariguinha vem transtornada de Fátima. Tudo a deslumbrou. A multidão, o espectáculo e o lugar. Sobretudo o lugar. Sentiu verdadeiramente que havia nele qualquer coisa de sobrenatural, de divino.
E eu, então, falei-lhe de Roma. Contei-lhe que tanta emoção se sentia nas Catacumbas, como no Coliseu, como debaixo de um arco de triunfo. E visse o despropósito: nas Catacumbas, tinham vivido cristãos; no Coliseu tinham lutado gladiadores com feras; e sob o arco do triunfo tinham passado tiranos.
– Concebo a sua fé, e respeito-a, – acrescentei. – Mas para que um sítio qualquer fique carregado de uma electricidade emotiva, não é preciso que Deus ou a sua Mãe venham cá a baixo. O homem é muito capaz de uma façanha destas. Basta que um pastor ou um bispo se resolvam a criar um mito. Então, as pedras transformam-se em altares, e uma mangedoira no berço mágico de um redentor.

Miguel Torga, “Diário IV”, pág. 35, 1953, Coimbra.

14/04/2019

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Coimbra, 14 de Abril de 1939 – (…) Crio em volta de mim um tal gelo, um vazio de tal modo hostil, que só quem é do meu meridiano me estende a mão. Os outros, rosnam, rosnam, mas vão passando de largo.
Não presta, nunca deu nada esta Coimbra, mas só aqui pude até hoje ser poeta à minha rica vontade.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 95, 1941, Coimbra.

01/03/2019

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Coimbra, 1 de Março de 1933 Continuam as matanças de gatos, à mocada, cá na república. Uma selvajaria. Só quem assiste a isto pode avaliar o que é um homem primitivo. Não há Universidade que nos tire da idade da pedra lascada

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 10, 1941, Coimbra.

06/02/2019

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Coimbra, 6 de Fevereiro de 1932 Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em mim.

Miguel Torga, “Diário I”, pág. 10, 1941, Coimbra.


05/02/2019

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Coimbra, 5 de Fevereiro de 1943 – Foram quatro gritos de abrir o mundo, mas a enfermeira disse que não tinha sido nada. Apenas um homenzinho que acordara do clorofórmio e dera pela falta de uma perna.”

Miguel Torga, “Diário II”, pág. 122, Coimbra.

22/01/2019

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Coimbra, 22 de Janeiro de 1943 – Há trinta e cinco anos que vivo como um boi resignado à canga, mas ninguém se admire se um dia não puder mais e mandar para qualquer jornalzinho da província (para não envergonhar tanto os amigos), este anúncio:
POETA
Aceita herança acima de 200 contos
Livre de quaisquer encargos."


Miguel Torga, “Diário II” 3ª ed. Revista, pág. 112, Coimbra Editora, 1960.