“Coimbra,
26 de Setembro de 1949 – Blake. Uma noitada de poesia e
loucura, de que amanheci tonto e maravilhado. Nunca me aproximo deste
homem sem que saia de ao pé dele meio maluco também, carregado de
visões angélicas. Há outros poetas que admiro mais, e de cuja obra
posso tirar um alento mais consciente e positivo. Mas nenhum me seduz
tanto como este doido que nunca chegou à perdição de Hölderlin, e
que pôde levar ao fim, intacto, o cristal duma vida de poeta
possesso. Na sua fonte torrencial podem refrescar-se ainda todos
quantos acreditam que nenhum pudor, nenhum limite e nenhuma norma
devem coagir o artista.
A nossa poesia não tem loucos. Balisa-a um sentimentalismo lúcido
de craveiro estacado e florido no seu poial. Só Gomes Leal se
desbordou, mas sem grandeza. Por isso o superlúcido Pessoa, através
de Walt Whitman, veio mergulhar neste brumoso inglês as raízes
Ávidas de cósmico e de inorganizado.
A minha dúvida sobre o nosso génio nutre-se destas evidências. De
companhias como as de Blake emerge-se com estrelas agarradas aos
cabelos; do compadrio com Garrett sai-se com as asas depenadas.”
Miguel
Torga, “Diário V”
2ª ed. Revista, pág. 50-51, Coimbra Editora, 1955.
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